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João Lima: a gastronomia como agente de transformação
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João Lima: a gastronomia como agente de transformação

Chef João Lima aborda políticas públicas na área gastronômica e reflete sobre cultura alimentar no Ceará
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Chef João Lima, diretor do Mercado AlimentaCE (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Chef João Lima, diretor do Mercado AlimentaCE

Com a primeira formação em arquitetura, o chef João Lima passou por cozinhas de locais como Madrid e São Paulo até chegar ao território cearense. Na Capital, firmou função como assessor especial para Gastronomia do Governo do Estado e pôde auxiliar no desenvolvimento da Lei nº 17.608, que estabelece a Política Estadual de Gastronomia e Cultura Alimentar Cearense.

O profissional atua como diretor do Mercado AlimentaCE, parte do Complexo Cultural Estação das Artes Belchior. Em entrevista, João discute sobre a importância da salvaguarda cultural e compartilha projetos de incentivo ao desenvolvimento da gastronomia cearense.

O POVO - João, como se deu a sua aproximação com a gastronomia?

João Lima - Eu cozinho desde criança, minha avó é uma grande cozinheira, meu pai também. Mas só fui entrar na cozinha, de fato, quando tinha 25 anos. Eu fiz um mestrado na Alemanha e, para ter uma graninha extra para voltar para casa, consegui um trabalho lavando pratos num restaurante. Um mês depois faltou um servente, acabei indo para a cozinha e nunca mais saí. Fiquei dois anos como sous chef desse restaurante espanhol. Em paralelo, eu fazia o meu mestrado. Quando eu voltei para o Brasil, acabei fazendo uns projetos em Fernando de Noronha. Isso me levou a um MBA em Gestão de Luxo em Hotelaria no Hotel Fasano. Por conta disso acabei ficando mais próximo da cozinha, entendendo fluxos e serviços. Uma coisa foi levando a outra, fui fazer uma reforma de um restaurante em São Paulo e já fiquei de vez. Essa foi a transição de fato.

OP - E como aconteceu o convite para trabalhar no Governo do Ceará?

João - Eu ainda estava em São Paulo, no segundo restaurante que trabalhava, e por volta de 2016 o então secretário da Casa Civil Alexandre Landim me fez um convite para ver o que a gente podia fazer na participação do Ceará num evento que chama "Farturas - Comidas do Brasil". É a maior plataforma de gastronomia do Brasil e o Ceará queria começar a fazer parte disso. Esse trabalho virou um convite oficial para deixar São Paulo, depois de dez anos que estava lá, e já vir pro Governo do Estado pensando de que forma a gente poderia entender gastronomia como, de fato, um recurso de desenvolvimento econômico, entendendo toda a cadeia produtiva. Aceitei esse convite e, desde então, eu trabalho com esse movimento que já virou quase uma missão de vida.

OP - Um ponto a ser considerado no seu trabalho é a proposta de valorização dos costumes locais. Como você definiria a cultura alimentar cearense? Neste sentido, o que nos difere dos demais estados?

João - É muito particular a questão de cultura e definição porque o que nos define é como a gente come, como a gente aprende a cozinhar o que a terra nos dá, cada estado tem uma definição muito própria. Acho que o que nos diferencia nesse momento é justamente essa visão de perceber que isso pode ser um grande agente transformador, no que a gente entende a cadeia produtiva inteira, indo desde o produtor até o descarte. O que define o Ceará hoje em dia é o nível de organização que a gente tem em perceber o tamanho dessa cadeia, a importância social, cultural e econômica, e fazer disso base de projetos. Em relação a cultura, cada um tem a sua e eu não posso dizer que a nossa é melhor do que outra, porque estaria sendo desonesto com o restante do Brasil. Para mim é uma questão organizacional agora.

OP - Ainda nesta linha, como você avalia o avanço de políticas públicas e privadas no setor gastronômico do Ceará em comparação ao cenário nacional?

João - Quando eu entrei na Casa Civil, em 2016, ainda se pensava gastronomia como um cara de branco e um prato pronto. A relação do chef com a comida que ele serve é, muitas vezes, uma relação elitizada. Com a nossa entrada e participação em vários eventos nacionais e internacionais, a gente começou a trazer para o Governo, principalmente, a parte dele. Para a comunidade e a população em forma geral, a gente trouxe importância de realmente pensar o caminho do alimento todo. Entender que dentro da gastronomia a gente tem o turismo, a educação, a cultura alimentar, o desenvolvimento econômico. Basta pensar que se a gente tiver um apanhado de números de tudo que se produz de alimento no Estado, a nível de agricultura familiar e de agronegócio, do que se exporta, do que se consome no turismo, a gente tem um impacto no PIB consideravelmente grande. Quando a gente conseguir, a nível de cozinha de Estado, fazer com que isso seja entendido, esse movimento todo vai ter mais força. O que a gente precisava, além de ter conseguido essa força, era fazer com que essa voz conseguisse ter um espaço para ser ouvida. Em 2018, eu consegui criar junto com a Agência de Desenvolvimento Econômico (ADES), ligada à secretaria do Trabalho, a primeira Câmara Temática de Gastronomia ligada ao desenvolvimento econômico do Brasil. A partir da Câmara, nós trouxemos esses representantes para um palco único, onde a gente podia desenvolver e pensar projetos para fazer crescer a cadeia toda. Foram dessas discussões, junto com a sociedade civil, a iniciativa privada e o próprio poder público, que saiu o primeiro desenho do que seria a Lei da Gastronomia e Cultura Alimentar, que foi sancionada no ano passado.

OP - A partir da sanção da Lei da Gastronomia e Cultura Alimentar, você poderia explicar o propósito dessa medida e quais são os impactos, até então, na área gastronômica?

João - É uma lei muito inclusiva, transversal, e que prevê sobretudo a possibilidade de parceria com outros órgãos para o desenvolvimento de projetos ligados ao setor; a salvaguarda da cultura alimentar cearense e dos povos marisqueiros, quilombolas e indígenas; e a criação do primeiro Conselho Estadual de Gastronomia e Cultura Alimentar, ligado a Secretaria da Cultura (Secult). Tendo um conselho como esse, assim como existe o Conselho das Políticas Culturais da Secult, a gente vai ganhando força no desenvolvimento de projetos, buscando uma linguagem única para esses entes da cadeia produtiva. Quando se pensa no desenvolvimento do Ceará a partir da gastronomia com um único discurso, a gente consegue ter mais força nesse trabalho porque traz todo mundo para uma convergência única. A partir da lei a gente conseguiu a inserção da linguagem da gastronomia num equipamento público de grande porte como a Estação das Artes, daí nasce o Mercado AlimentaCE, que vem sendo a representação do trabalho de tudo que a lei propõe. Agora a gente está trabalhando com a articulação com esses outros elos da cadeia, propondo um desenvolvimento pensado a várias mãos. Acho que essa é a grande diferença, nos coloca numa posição de grande vantagem pela batalha desses futuros projetos e pela unificação da gastronomia cearense.

OP - Em março, aconteceu a inauguração da Estação das Artes, complexo que abriga o Mercado AlimentaCE. O que o espaço busca oferecer ao público?

João - A gente apelida da casa da gastronomia cearense. Ele é a pontinha do iceberg de tudo o que está sendo trabalhado de política pública pelo governo do Estado. Nesse momento, eu estou numa das dez expedições que acontecem esse ano, de pesquisa e curadoria de produtos e de produtores que vão para o Mercado. O Mercado AlimentaCE é composto por seis restaurantes. Para participar, você tem que mostrar seu plano conceitual dizendo quais as ligações que esse restaurante pretende ter com o projeto ligado à Lei da Gastronomia, ou seja, o uso de produtos locais e o respeito às tradições e culturas cearenses. Os visitantes vão poder sentir um pouco do que é o Ceará. Não necessariamente a comida típica, mas um novo olhar da gastronomia cearense a partir dessa base cultural, desse respeito pelo produto e pelo produtor. Nós temos também a loja do Mercado AlimentaCE, um projeto muito parecido com a CeArt e que a gente vai trazer produtos que vão sair das nossas viagens de curadoria. Esses produtos têm como diferencial a narrativa de cada um. Assim, a gente vai disseminando ainda mais essa base de cultura cearense que muitas vezes a gente não conhece ou que está se perdendo, por conta da força da indústria alimentícia. E, junto a isso, vamos produzir feiras agroalimentares, que a gente aproxima os produtores de orgânicos e da agricultura familiar do mercado; as feiras gastronômicas, que a gente abre espaço também para aqueles que estão começando com a gastronomia. É também um espaço para comunidades mais carentes, que passam por cursos de formação no Senac, na Escola de Gastronomia Social. A gente cria um ambiente muito mais democrático no Centro, a gente consegue trabalhar com a comunidade, com os pequenos produtores, trazer todo mundo que pensa e desenvolve qualquer atividade da cadeia produtiva para o Mercado AlimentaCE.

OP - Como está sendo a experiência desse processo de expedição? O que vocês estão descobrindo nesses locais que estão visitando?

João - É uma surpresa nova a cada viagem. Nós já passamos pelo Maciço de Baturité, pelo Litoral Leste, estamos agora no Sertão Central, vamos fazer a Ibiapaba, Cariri, a região de Iguatu, o Litoral Oeste... É tanta coisa, a gente vai rodar o Ceará inteiro. São histórias que passam despercebidas. A gente esteve em uma comunidade quilombola e, conversando com essas mulheres, a gente consegue perceber como essa cultura começa a ficar esquecida porque fica mais fácil comprar o que tem direto na bodega. Nós fomos descobrindo receitas que não são mais feitas, formas de usar os alimentos que não são mais usadas porque tem uma técnica mais moderna. Nosso objetivo é catalogar e transformar isso em registro, de alguma forma, para deixar disponível para os alunos de gastronomia, para os curiosos do setor, que possam ver um pouco dessa história. Basicamente a gente trabalha com três eixos na viagem: o institucional, a pesquisa de produto e a pesquisa de cultura alimentar. A gente faz relações institucionais, principalmente com o Poder Público local, trazendo um pouco do que a ideia da lei. Dessa forma a gente estimula o acontecimento de festivais de gastronomia nessas cidades. Tem a curadoria para os produtos da loja, muita coisa que tem no sertão e não consegue chegar a Fortaleza. Com esse processo de curadoria a gente pretende enxergar o que já está pronto para ir para loja, outros que estão quase no ponto mas precisam de assessoria de formação, principalmente para as questões de registro.

OP - Com base na duração desses processos, há previsão de pleno funcionamento do Mercado AlimentaCE?

João - Como a gente acabou de lançar os editais dos restaurantes e estamos num processo de curadoria de produtos, acredito que em novembro a gente consiga ter o Mercado na sua plenitude. Temos que dar um tempo para os vencedores dos concursos organizarem suas cozinhas, seus cardápios, os treinos.

OP - Quando você fala desse processo de conhecer produtos e produtores, além do processo de catalogar e disponibilizar para o público, aborda uma parte da salvaguarda cultural e alimentar do Estado. Qual é a relevância da preservação desse processos e produtos?

João - Está tudo ligado ao pertencimento de um povo para o que é dele. Essas ações todas, ver Fortaleza e o Estado do Ceará se desenvolvendo como um local que acredita no que é dele, que reconhece o que é dele, assim temos uma mudança considerável em todos os níveis. Quando a gente mexe com pertencimento e faz o povo ter orgulho daquilo que é dele, a gente mexe em todas as áreas. As pessoas ficam mais interessadas em estudar gastronomia, melhora o percurso do turista que vem para o Ceará e quer comer bem. A gente quer que o Ceará tenha orgulho disso. Tendo orgulho, já começa a acontecer o que está acontecendo em Fortaleza. De uns tempos para cá, a quantidade de restaurantes aumentou, a diversidade de opções de comida aumentou, as pessoas estão falando mais do alimento, estão valorizando mais o que está próximo. Isso é uma tendência mundial. Pensar globalmente, comer localmente. É a forma mais inteligente de pensar, isso que a gente tenta trazer para o Ceará.

OP - Você está acompanhado outros projetos vigentes no Estado?

João - Tudo o que acontece com gastronomia, eu acho que consegui isso depois desses seis anos de trabalho, eu acabo tendo um pézinho junto. As pessoas e instituições acabam me convidando para desenvolver junto, ou para opinar. Por exemplo, eu participei da estruturação da Escola de Gastronomia Social M Dias Branco, estou muito próximo da nova Escola de Gastronomia e Hotelaria do Senac, que é um grande parceiro nosso. Fico muito feliz de participar de vários setores e pontos decisórios quando se pensa em desenvolvimento pelo alimento, até no combate à segurança alimentar, uma das minhas grandes lutas. Além de pensar na comida, a gente pensa também em quem não tem comida, no combate ao desperdício de alimento. Estou no meio dessa confusão toda, não me aquieto nunca.

OP - Existe algum fora do eixo da Capital que você acha válido ressaltar?

João - Esse ano começa as atividades do Centro Cultural do Cariri, outro grande centro de cultura, e essa mesma loja que tem no Mercado AlimentaCE também vai estar presente, com a mesma proposta. Como a gente vem trabalhando nessas expedições, e espera continuar fazendo, nosso objetivo é disseminar a vontade de trabalhar em pontos estratégicos essa presença da cultura alimentar.

OP - A partir do seu trabalho no mercado gastronômico cearense, como você avalia a projeção do setor no Estado para os próximos anos? O que você espera no que diz respeito à criação de novos espaços e empregos?

João - Tudo isso que a gente está falando, quando bem feito, começa a gerar empregos de cara. Para fazer um projeto e planejamento estratégico você precisa entender a situação real daquele momento e fazer projeções para o futuro. Quando eu comecei com esse trabalho em 2016, se falava muito pouco disso no Ceará. Quando falava de gastronomia, o pessoal entendia que era colocar um restaurante em praça de alimentação de shopping ou fazer uma feirinha aqui e aculá, isso mudou muito. O turismo começa a entender o turismo gastronômico como um potencial grande de atração de pessoas para o Estado, começa a acontecer mais produção de artesanato ligado a gastronomia, começa a aumentar o interesse em publicações de livros de gastronomia e cultura alimentar, que vão ser mais consumidos. O alimento é a base de tudo, não se vive sem comer. Se a gente direciona esse alimento para o que é nosso e desenvolve esse pertencimento, a gente só tem sucesso, não tem ninguém que bata gastronomia. Não é uma pauta complexa, não é uma pauta que tenha partido, todo mundo gosta, fica feliz em comer bem, dividir a comida, levar aquele sentimento da cozinha para todo o canto. Eu vejo que hoje em dia nós somos referencias no Brasil por pessoas importantes. Temos a Câmara da Gastronomia, uma lei, o mercado gastronômico, o primeiro Mestrado de Gastronomia do brasil, desenvolvido na Universidade Federal do Ceará (UFC), temos o Observatório de Gastronomia e mais ou menos nove escolas. Tem muita coisa acontecendo no Ceará que, para mim, são termômetros e reflexos que esse trabalho começou mostrar resultados.

AlimentaCE

O Mercado AlimentaCE é um dos equipamentos do Complexo Cultural Estação das Artes Belchior, inaugurado no mês de março. O espaço terá restaurantes, loja com produtos locais e também fomentará atividades gastronômicas e culturais, como feiras e festivais.

O POVO

Veja a entrevista na íntegra na plataforma de streaming O POVO

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