Nunca, na história recente do Brasil, a tensão eleitoral esteve tão aflorada nas relações sociais das pessoas. O pleito deste domingo é mais um capítulo a tensionar o cotidiano, o que tem reflexo direto nos núcleos familiares.
Lidar com o psicológico virou tarefa delicada, principalmente em um período em que há discursos de ódio, medo, insegurança e intolerância. O convívio familiar, em núcleos onde há opiniões convergentes e divergentes sobre as posições políticas em jogo é alvo ainda maior de tensão.
Ao O POVO, a psicóloga e psicanalista Katiana Santiago fala sobre como lidar com a tensão eleitoral em núcleos familiares e quais os possíveis caminhos para preservar a saúde mental pós-eleição.
O POVO - Na reta final das eleições, a tensão política atravessa as relações dentro dos núcleos familiares. Como os sintomas desse cenário se manifestam no eleitorado?
Katiana Santiago - A gente está vivendo há algum tempo, desde 2017, uma polarização muito grande e não tivemos uma pausa política como a gente teve em outras eleições. É um ódio fomentado por discursos e argumentos que só pioram essas relações e vai aumentando o sofrimento mental. Esse sofrimento mental se aplica na própria condição da insônia, das dores de cabeça e na ansiedade generalizada, que é o TAG, o Transtorno de Ansiedade Generalizada, que tem tomado conta muito desse momento.
A gente tem quadros depressivos ocasionados por esse excesso de informações e a forma como isso é repassado. É fake news e um grupo tenta desmistificar outro grupo e isso vai gerando cada vez mais ansiedade nessas brigas. Isso vai afastando as famílias e rompendo as amizades. Essa eleição, como as eleições de 2018, não é uma eleição comum como as demais.
Estamos todos aprendendo a lidar com esse tipo de sofrimento. É um ódio fomentado por discursos, por argumentos e uma realimentação desse lugar dia após dia. O resultado disso é a ansiedade, a depressão e a insônia. A gente está vivendo uma espécie de guerra.
Temos que aprender de alguma forma a desviar desse foco, como ter pausas desse momento, não se inserir tanto nesse contexto, fazer nosso direito de cidadão, de civil, de eleitor, mas também conseguir tentar relaxar porque a gente vai viver um pós-eleição também. Precisamos tentar de alguma forma alinhar esse cenário e evitar essas discussões.
OP - Quais impactos a tensão eleitoral podem gerar dentro das famílias?
Katiana - A gente tem hoje uma eleição que está muito nessa pauta dos costumes e dos valores. Nosso país é um país que tem ali 80% da população que se diz cristã. Estamos vindo de uma pandemia, um país sequelado pela Covid-19, pela miséria, pelo desemprego e tem aquelas curvas e brigas que se manifestam naturalmente nos encontros. Além disso, aumentou essa atuação nas redes sociais.
Então, vai se criando também uma espécie de afeto virtual, uma vinculação virtual e as redes sociais vão dando vozes. Aquela pessoa que não tinha ali uma identidade bem definida, ela acaba se agrupando e se tornando massa dentro de uma referência de grupos.
Existe nessa sistemática todas crenças e fronteiras imaginárias sobre isso. O que seria uma fronteira? O outro é o inimigo e eu estou com a razão. De alguma forma, existem essas fronteiras imaginárias em que se cria esse inimigo e esses campos de guerra. A gente tem aquelas pessoas que ainda estão rompidas e tem aquelas pessoas que estão parcialmente harmonizadas com seus familiares.
Não é fácil rever esse parente sem essa essa queixa de entender que ele é o inimigo e que tem um candidato que defende a família, os costumes e as crenças e que tem aquele candidato que quer destruir a família, que é o comunista e que está dividindo o Brasil.
É muito difícil a convivência e o que as pessoas podem tentar fazer é não falar sobre política e tentar encontrar outros valores dentro da relação. Se as pessoas tiverem repertórios variados, outros interesses, elas devem realimentar esses interesses e evitar o conflito na troca política, já que essa troca continua sendo uma linha de guerra.
O ódio é algo que é realimentado e o maior prejudicado é a própria pessoa. O ódio sentido e de alguma forma reverberado nesse campo nuclear é um ódio com sofrimento duplo porque os membros estão sofrendo naquela condição de convívio. Por exemplo, a criança, ela está recebendo toda essa carga ruim de sentimentos.
O resultado disso é sempre o sofrimento, é sempre uma condição traumática. E há a necessidade de trabalhar isso em um outro momento com psicoterapia porque tudo tem consequências. Todos esses sentimentos vão se enraizando no nosso íntimo, vão se enraizando dentro dos nossos valores, das nossas crenças, na nossa própria história. E o nosso contato com as pessoas também vai dizer o que a gente é no mundo.
OP - Em núcleos familiares com divergência de opiniões políticas, como lidar com o cenário e minimizar os efeitos?
Katiana - Como é que a gente ameniza uma guerra? Uma guerra só é amenizada quando ela termina e ela tem um vitorioso. E um vitorioso configura que tem perdedor. Em uma guerra está brigando pelo território e por uma ideia. A gente tem um cenário direcionado a muita raiva e muito ódio. O ódio, ele tem esse processo de realimentação, mas ele tem outras profundidades implicadas. Eu tenho o meu ódio, eu tenho as minhas rixas, as minhas insatisfações e frustrações.
A política está acontecendo, então o que é que eu faço? Eu pego a política aqui e tento jogar tudo isso dentro dela. Se eu tenho um ódio gritante, se eu tenho um sofrimento, que eu não consigo entender o outro lado e que eu não consigo conviver com essa essa rivalidade e embate, e isso está me adoecendo, eu tenho que procurar ajuda.
Precisa-se entender o que é um "situação psicológica que gera uma doença física" processo somatizador que está me levando a um adoecimento mais profundo, como a insônia que está atrapalhando a minha condição de trabalho. Tem que procurar ajuda psicológica se tem algo que o sujeito está sentindo e que está beirando a um descontrole, a falta de habilidade para lidar com as atividades diárias, como o seu trabalho, estudos, ele tem que procurar ajuda psicológica para tratar dessas questões.
O ódio precisa ser observado. De onde é que ele vem, por que ele é tão violento? Por que ele é tão ruim? Por que ele está me fazendo tão mal? E por que eu estou nesse adoecimento? Nesses grupos políticos, existe muita discórdia e isso vai causando essa instabilidade tanto emocional como social.
Os transtornos não se dão do dia para noite, eles são construções. Não dá também para arrancar o sujeito desse cenário, mas ele pode tem que se conscientizar e tentar entender o que é uma medida que pode manter o mínimo de um espaço de lucidez, sem ele adentrar tanto a riscos nesse campo de adquirir de alguma forma uma desorganização maior que leve ele a um adoecimento mais intenso nesse lugar.
OP - Sofrimento político e tensão eleitoral em núcleos familiares sempre foi um tema nos consultórios mesmo que em menor medida?
Katiana - Não. É muito diferente essa campanha. Ela é semelhante à campanha de 2018. Todos nós temos os nossos sofrimentos, que podem ser intensificados se a gente não dá uma escuta para isso. A intensidade com que isso chega a esse momento é assustadora. Quando você tem um grupo de pacientes que estão falando a mesma coisa o tempo todo, você entende como é agressiva esse tipo de política que está sendo feita no nosso país. Tudo isso tem uma tensão que envolve esse lugar.
OP - Quais costumam ser os caminhos possíveis para lidar com medo intenso ou com uma crise de ansiedade diante da tensão eleitoral familiar?
Katiana - Nem todo mundo tem habilidade emocional. Muitas pessoas vêm de um lado desestruturado e muitas pessoas têm um pensamento muito rígido, muita engessado para entender e aceitar as adversidades. Algumas pessoas têm dificuldade com a frustração e com as perdas. Quando você tem muito impulso e reverbera muito esse lugar da discórdia, do conflito, e você precisa provar que você não perdeu, essa dificuldade de lidar com a perda, ela sempre tem um quê por trás disso e, dentro desse campo, tem um sofrimento.
A forma como a gente pode lidar com isso, quando isso é de uma ordem gritante, é procurar ajuda profissional. Como é uma eleição extremamente violenta, a forma que a gente tem é não procurar o confronto. Além disso, tentar fazer pequenas pausas ao longo do dia, mesmo que a gente esteja nessa guerra política.
OP - Qual o primeiro passo para preservar a saúde mental nesta reta final das eleições?
Katiana - Nesta reta final, é importantíssimo que haja essas pausas, que as pessoas entendam que vai existir uma vida independente de quem ganhar a eleição. A mudança faz parte do ciclo natural e das organizações.
Existe vida para além da política e a gente precisa entender também esse lugar para não adoecer profundamente, porque vão existir sequelas desse lugar. São daquele sono que eu não dormi — na insônia, a gente pode desenvolver quadros de arritmia, irritabilidade, inquietação, uma noite mal dormida para ser recuperada.
A questão é se estou disposto a fazer algumas intervenções nesse cotidiano, como diminuir o uso das redes sociais, para não ter acesso a esse lugar receptivo do olhar, das trocas. Ou uma caminhada, escutar um som, tocar um violão, comer uma comidinha diferente, cozinhar algo diferente e trazer o aprendizado de um outro repertório.
Entender também que eu tenho consciência que naquele momento ali eu estou no meu limite. Porque muitas pessoas só vão cuidar ou procurar um profissional, muitas vezes, quando elas já estão ali extremamente adoecidas. A nossa saúde mental é fundamental. Se não tem saúde mental não se tem absolutamente nada.
OP - Como lidar com os possíveis efeitos do resultado das eleições?
Katiana - Quem é de um outro partido teve que lidar com o seu luto por cinco anos e dentro de um país sequelado de várias formas. Quando a gente fala do luto, ele tem cinco estágios. Além disso, a gente tem raiva dentro de qualquer processo, seja a perda de um emprego, namoro, relacionamento, ruptura, divórcio ou morte. Os cinco estágios do luto são a raiva, negação, barganha, depressão até chegar na aceitação. Não necessariamente acontece nessa ordem. Todos os nossos processos vão se dar por essa via.
Quem perder vai ter todo um sofrimento, vai ter um sentimento de revolta após a eleição e vai ser muito difícil. O ideal é que, se eu sinto que eu não estou conseguindo lidar com isso, devo pedir ajuda.
O sofrimento mental não se instaura, ele tem uma cadeia de acontecimentos. Vai havendo ali no excesso, falando sobre o mesmo assunto repetidas vezes. Daqui a pouco, eu já estou na condição de passar mais horas acordada, daqui a pouco, eu já não estou me concentrando para que eu esteja sendo convocada no trabalho ou nos estudos. A gente vai passando por esses lutos, mas nem todo mundo tem estrutura psicológica para lidar com as perdas. O pós-eleição vai ter efeitos e é preciso vivenciar o luto.
No próximo domingo, 30, ocorre o segundo turno das eleições presidenciais, que definirá a gestão dos próximos quatro anos no Brasil. O cargo do executivo federal é disputado pelos candidatos Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), e por Jair Messias Bolsonaro, do Partido Liberal (PL).
O transtorno de ansiedade generalizada (TAG) é um distúrbio caracterizado pela preocupação excessiva ou expectativa apreensiva, persistente e de difícil controle. A Sociedade Brasileira de Inteligência Emocional (Sbie) destaca que o distúrbio pode perdurar por seis meses no mínimo.
O luto possui cinco estágios. São elas a raiva, a negação, a barganha, a depressão e a aceitação. Cada pessoa passa por essa experiência de modo singular.