Mais de 80 condenados por lavagem do dinheiro furtado do Banco Central (BC) de Fortaleza tiveram as penas reduzidas ou encerradas. Uma mudança de entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o crime de organização criminosa acabou reformando todas as sentenças dos réus que foram apenados por lavagem. Ficou preso, a partir de 2017, quem ainda não tinha cumprido as penas pelo furto e pela formação de quadrilha para furtar o BC.
O primeiro beneficiado pela mudança de entendimento do STF foi Antônio Jussivan Alves dos Santos, o Alemão. Ele foi um dos cabeças do roubo milionário e hoje cumpre pena, por outros crimes, na penitenciária federal de segurança máxima de Catanduvas, no Paraná.
Confira a seguir, uma conversa com o juiz federal Danilo Fontenele. Ele é o titular da 11ª Vara Federal do Ceará, de onde saíram as condenações de 120 réus - a maioria por lavagem de dinheiro. O Ministério Público Federal denunciou 143 pessoas envolvidas na invasão à caixa forte do BC em 28 ações penais geradas pelas investigações da Polícia Federal. Do furto, crime que originou outros delitos no caso, participaram pelo menos 30 homens.
O POVO – Por que uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) acabou beneficiando os condenados do BC?
Danilo Fontenele – Até hoje, a gente não tinha tido uma ação tão característica do crime organizado. Ou seja, várias pessoas envolvidas em várias etapas. Desde do planejamento, a execução e finalização com os crimes de lavagem. Quinze anos depois, a gente percebe o seguinte, o Supremo Tribunal Federal mudou o entendimento sobre uma questão específica que afetou não só o processo do furto ao Banco Central, mas vários processos.
O POVO – O senhor pode explicar?
Danilo Fontenele – A questão é um pouco técnica, mas é mais ou menos o seguinte. Nós tivemos na evolução da Lei de Lavagem três gerações. Quando surgiu a Lei de Lavagem, ela previa apenas para crime de entorpecentes. Numa segunda geração, trouxe um rol de crimes e daí incluindo os crimes praticados por organizações criminosas. E depois, numa terceira geração, o crime de lavagem para qualquer crime. Na época do furto (2005), nós estávamos na segunda geração dos crimes de lavagem. Então, dizia sobre os crimes praticados por organizações criminosas. O furto foi em agosto de 2005 e a Lei de Organizações Criminosas é 2013. Na época, em 2005, julgamos com base na Convenção de Palermo.
O POVO – Era outro conceito de organização criminosa?
Danilo Fontenele – Era o conceito da Convenção de Palermo, que foi o utilizado na sentença dos condenados pela lavagem do dinheiro furtado do Banco Central Fortaleza e em várias outras sentenças do Brasil inteiro. Em 2013, foi criado o crime de organização criminosa. Veja só, a Lei de Organização Criminosa de 2005 dizia: ‘crimes praticados por organizações criminosas. Então, o Supremo mudou o entendimento e determinou que só poderia fazer parte de organização criminosa quem foi acusado do crime de organização criminosa. (Como o Brasil não tinha lei que definisse o conceito de crime organizado, o País era signatário da Convenção de Palermo. A convenção diz que o crime organizado é aquele em que um “grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material”.
O POVO – Então, o entendimento do STF reformou a sentença?
Danilo Fontenele – A partir de 2013. É uma interpretação doutrinariamente discutível, mas foi essa que prevaleceu. Com isso o Tribunal Regional Federal da 5ª (TRF-5, em Recife) e os outros tribunais pelo Brasil reformaram as sentenças de condenações por lavagem de dinheiro publicadas antes de 2013, com base na Convenção de Palermo.
O POVO – A decisão do STF favoreceu quem lavou o dinheiro do Banco Central.
Danilo Fontenele – Em termos bem práticos, todos participantes do furto ao Banco Central que foram acusados e condenados por lavagem de dinheiro, antes de 2013, o TRF-5 reformou as sentenças para absolver as pessoas do crime de lavagem. A palavra técnica é reforma, não é anulação. A decisão do STF afetou, praticamente, todos os envolvidos.
O POVO – No caso do furto ao BC, as maiores penas são por lavagem de dinheiro?
Danilo Fontenele – Sim. Depois da reforma das sentenças por lavagem, permaneceram as penas de formação de quadrilha e de furto para os condenados do BC. A investigação do Polícia Federal, capitaneada pelo delegado Antônio Celso, foi nesse sentido. Foi por ciclos de investigação: os que financiaram o crime, os que executaram e os que lavaram o dinheiro. O ciclo da lavagem foi, realmente, o que envolveu mais gente. Pessoas do Brasil inteiro, de vários estados e por várias facetas como compra de postos de gasolina, fazenda, imóveis, enfim.
O POVO – O ciclo da investigação sobre a lavagem chegou a uma parte do dinheiro.
Danilo Fontenele – A recuperação em termo de dinheiro vivo, talvez tenha ficado em torno de R$ 25 milhões. Em bens, talvez, um quarto do valor da quantia furtada. Mas é preciso ter uma explicação um pouco mais técnica. Quando a pessoa lava o dinheiro comprando uma fazenda, ela pode comprar por R$ 500 mil. E quando a polícia, o Ministério Público e a Justiça identificam que isso é um produto de lavagem e leva para leilão, o não se pega nem R$ 100 mil.
O POVO – Na lavagem, o criminoso paga um ágil pelo crime.
Danilo Fontenele – Isso. E tem mais, ainda há a questão cultural. Ninguém quer comprar um bem que foi de bandido. As pessoas não compram e o preço vai lá para baixo. Para você recuperar todo o dinheiro lavado, é muito difícil. No caso do Banco Central foi muito difícil.
O POVO – Com a decisão do STF e a recuperação de um pouco mais de R$ 31,5 milhões dos quase R$ 164,7 milhões furtados, o crime compensou para os condenados do BC?
Danilo Fontenele – Não dá para negar que o entendimento do supremo favoreceu muito a redução das penas. Agora, se compensou ou não? Muitas pessoas foram presas em 2005 e 2006. Então, essa redução das penas foi depois de 2013. Muitos já tinham cumprido boa parte da pena e aí, talvez, não tenha valido a pena. Pelos depoimentos que muitos deram, claro que pode ser invenção, todos disseram que não valeu a pena porque sofreram extorsão, sofreram por causa de outros grupos criminosos, alguns tiveram parentes sequestrados e ocorreram mortes. Então, segundo eles mesmo, não valeu a pena. Eles não tinham ideia que a repercussão ia ser tão grande, que a Polícia Federal ia agir com tanta premência e exatidão. Achavam que nunca iriam ser pegues. E também tinha a convicção que, se fossem presos, iam responder só por furto. Não sabiam da parte da lavagem naquela definição anterior a 2013.
O POVO – Como um juiz se sente quando o STF muda um entendimento e reforma sentenças baseadas em uma investigação minuciosa?
Danilo Fontenele – Para ser sincero, foi surpresa a decisão do STF. Não só para mim, mas para outros colegas e juristas. Nosso entendimento é que ser membro de organização criminosa não quer dizer que você foi condenado por organização criminosa. O crime, realmente, só vai ser previsto em 2013. Os envolvidos no furto não foram condenados por serem membros de organização criminosa, foram condenadas por lavagem, furto e formação de quadrilha. Agora, não dá para negar que uma organização dessa para o furto do BC, com planejamento, organização e lavagem, isso pela Convenção de Palermo, caracteriza uma organização criminosa.
O POVO – Foi o maior caso de investigação que o senhor trabalhou?
Danilo Fontenele – Ocorreram outros. Aquele caso do doleiro Alexandre Diógenes Ferreira Gomes (década de 1990) repercutiu na condenação dele em vários processos, também por lavagem de dinheiro e evasão de divisa. Mas em termo de número de investigados, complexidade e dedicação da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e da Justiça, sem dúvida, foi o maior. Foram 143 denunciados pelo MPF e 120 condenados em 28 ações penais.
O POVO – No final, ficou provado o envolvimento do PCC no roubo?
Danilo Fontenele – Uma prova cabal, um bilhete, uma prestação de contas, não. Mas a Polícia Federal sempre confirmou o envolvimento de vários envolvidos com o PCC. O furto foi em 2005 e no começo de 2006, o PCC parou São Paulo num salve geral. E a Polícia Federal acredita que parte do dinheiro do furto capitalizou a organização criminosa para essa ação. Eles estavam com muito poder balístico e muitas armas, em 2006.
O POVO – Quinze anos depois do furto do Banco Central, em Fortaleza, há algum ponto aberto?
Danilo Fontenele – As informações de como os assaltantes chegaram de maneira exata à caixa forte do banco ainda são um mistério. Eles não erraram, saíram exatamente no que chamamos de chaminé de saída. A chaminé de saída do túnel foi exatamente próxima à parede da caixa forte. Não se sabe como eles conseguiram isso. Eles poderiam ter errado, poderiam ter saído na calçada, debaixo de container na caixa forte. Nenhum deles confessou nada. É uma curiosidade que ficou sem ser esclarecido. Existe a história do terceirizado (Edilson Santos Vieira, então vigilante do BC) que teria se reunido com Deusimar (Neves Queiroz, também ex-vigilante), Alemão (Francisco Jussivan Alves dos Santos, um dos chefes do roubo) e com o Véio Davi (Davi Silvano, o “mestre de obra” do túnel). Mas, o terceirizado apareceu morto. Aparentemente um suicídio. O irmão e a cunhada do terceirizado foram condenados porque ficaram com o dinheiro. Os que cavaram negam que tenham tido assessoria de qualquer pessoa de nível superior, a prática de cavar túneis para fuga de presídios era a experiência deles.
A história do furto milionário, 15 anos depois, na perspectiva do processo jurídico