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Furto milionário: estigmas e antecipações do crime organizado
Reportagem Seriada

Furto milionário: estigmas e antecipações do crime organizado

BANCO CENTRAL | Quinze anos depois do furto milionário do Banco Central de Fortaleza, o procurador Samuel Arruda - que atuou desde 2008 nos processos do caso - faz conexões com o atual cenário de violência. E, também, reflexões sobre como o dinheiro do crime organizado se infiltrou nas cidades e na política do Interior cearense
Episódio 1

Furto milionário: estigmas e antecipações do crime organizado

BANCO CENTRAL | Quinze anos depois do furto milionário do Banco Central de Fortaleza, o procurador Samuel Arruda - que atuou desde 2008 nos processos do caso - faz conexões com o atual cenário de violência. E, também, reflexões sobre como o dinheiro do crime organizado se infiltrou nas cidades e na política do Interior cearense
Episódio 1
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O procurador da República Samuel Arruda é um crítico da "glamourização do crime". É assim que pontua. Sua menção é sobre os possíveis efeitos que uma cobertura midiática estendida pode dar ao narrar ações engenhosas de quadrilhas e seus personagens. Planos bem executados, sem tiros, surpreendentes, fugas exitosas, com muitos milhões levados.

Histórias que passam a povoar o imaginário coletivo, acabando por desvirtuar investigações bem sucedidas, esclarecidas, em que muitos acusados foram presos, condenados, pagaram pelo cometido. A análise do procurador caberia na história do furto milionário ao Banco Central de Fortaleza, acontecido 15 anos atrás.

"As pessoas ainda querem achar que o dinheiro está enterrado em algum lugar obscuro", ironiza Arruda, procurador do caso a partir de 2008 - após a aposentadoria da titular, Rita de Cássia Vasconcelos Barros, que conduziu ainda as primeiras denúncias. Na manhã de um 6 de agosto, em 2005, a quadrilha havia conseguido retirar 3,5 toneladas de cédulas de 50 reais da caixa-forte do prédio.

Samuel Arruda, procurador da República no Ceará(Foto: MPF/Divulgação)
Foto: MPF/Divulgação Samuel Arruda, procurador da República no Ceará

Aproximadamente 30 homens agiram entre a noite do dia 5 e a madrugada do sábado, 6. Levaram R$ 164.755.150,00. O furto só foi detectado na segunda-feira, dia 8. O local até então era dado como inviolável. O grupo usou um túnel de 80 metros, escavado três meses antes, que atravessava pelo subterrâneo a avenida Dom Manuel, Centro da Capital.

Não há como negar o espetacular do feito. Mas Arruda lamenta que, mesmo com toda a inteligência desenvolvida pela Polícia Federal no caso, com 143 denunciados, tendo 120 sido condenados (atualização feita pela Justiça Federal), culpas e penas definidas, ainda se especula que haveria desfechos não contados do dinheiro furtado.

"Sempre as pessoas querem ter a história da teoria da conspiração (risos). A gente sempre acha que tem alguma coisa, 'ah, não deu certo', 'o dinheiro tá com fulano", 'o cara tá na Europa', mas é uma conta simples. O dinheiro estava em péssimas condições (as cédulas estavam recém-separadas para serem destruídas pelo BC, pelo desgaste). Ouvi de muitos deles (réus) que muitas das notas não tinham condição mesmo de serem utilizadas", relembra.

Interior da caixa-forte do Banco Central de Fortaleza, em imagem de inspeção feita pela Polícia Federal no dia seguinte à descoberta do túnel (Foto: REPRODUÇÃO POLÍCIA FEDERAL)
Foto: REPRODUÇÃO POLÍCIA FEDERAL Interior da caixa-forte do Banco Central de Fortaleza, em imagem de inspeção feita pela Polícia Federal no dia seguinte à descoberta do túnel

Ele diz que a conta fácil é sobre quanto valiam os bens comprados pelos criminosos, quanto de fato pagaram e o que se consegue restituir em leilões judiciais do valor furtado. "O cara tem um bem que vale dez, ele compra por 30 e quando a gente vai fazer o leilão vende por cinco. O que era 30 vira cinco". À época, comprar com notas de R$ 50 era até motivo de piada no território cearense.

Professor universitário da disciplina de criminologia e há 24 anos no Ministério Público Federal, Samuel Arruda sugere que o furto ao BC também ajuda a entender vários movimentos antecipados das organizações criminosas, realizados naquela época no Nordeste e que ainda não eram notados para o cenário de hoje. Considera que "isso é possível de fazer agora, com os olhos de 2020 interpretando 2005".

Arruda descreve os investimentos feitos por denunciados do furto que deixaram suas pequenas cidades de origem, fizeram a vida no crime fora do Estado e teriam voltado bem sucedidos da migração como aplicadores em negócios, patrimônios ou se inserindo de algum modo na vida política.

"São pessoas com inserção criminosa grande, que retornam para o seu Interior e lá encontram ambiente propício. Vínculos familiares, amizades antigas de infância, locais interessantes para lavar o dinheiro do crime", ilustra. Para o procurador, "o fenômeno do retorno dos criminosos às suas origens é bem claro", seguiram a vida de crime numa metrópole e voltaram para investir. "O Interior está cheio desses casos. Ninguém quer nem saber de onde vem o dinheiro".

Polícia Federal investigava imóvel no Mondubim, onde, em setembro de 2005, foram encontrados R$ 12 milhões levados do furto ao Banco Central no mês anterior. Com ligação interceptada, dono da casa havia pedido à mulher para comprar um quilo de liga para organizar o dinheiro(Foto: REPRODUÇÃO POLÍCIA FEDERAL)
Foto: REPRODUÇÃO POLÍCIA FEDERAL Polícia Federal investigava imóvel no Mondubim, onde, em setembro de 2005, foram encontrados R$ 12 milhões levados do furto ao Banco Central no mês anterior. Com ligação interceptada, dono da casa havia pedido à mulher para comprar um quilo de liga para organizar o dinheiro

Sem querer acentuar estigmas, Arruda cita o município de Boa Viagem, no Sertão Central cearense, terra natal de vários dos condenados, sempre lembrada pelo caso. Um dos réus, Antônio Argeu, foi vice-prefeito local, condenado em 2010 por furto, formação de quadrilha e lavagem, pena inicial de 47 anos, depois reformada para 18. Teve fazenda, empresa, imóveis e veículos confiscados para leilão. Designado como procurador eleitoral adjunto em 2020, ele avalia que a entrada do crime na política é "o quadro mais pavoroso nesse contexto todo".

Arruda admite "um desabafo" ao se remeter ao caso BC uma década e meia depois. "De fato, é uma história fantástica, mas fica a coisa meio romantizada, quando na verdade a gente sabe que é um pessoal próximo da cúpula do PCC, tem ligação estreitíssima. Foi financiado por um pool de pessoas ligadas ao tráfico. São pessoas com experiência em crimes da mais alta gravidade, de violência e truculência. Tanto é que depois se mataram entre si, vasta conexão em todo tipo de crime. Porque esse foi com essas características não quer dizer que sejam pessoas dignas de admiração". O procurador afirma que a proximidade desse furto com a facção paulista "é inequívoca", levantada pelos investigadores.

Ele ressalta o incômodo da comparação da história real com a ficcional apresentada no filme "Assalto ao Banco Central", de 2011, do diretor Marcos Paulo. "As pessoas assistem como se fosse verdadeiro. E muita gente fica com essa percepção, que não deu nada certo, que os cabeças não foram presos, que o dinheiro está com alguém, quando não é essa a realidade".

Samuel Arruda admite que embora ainda aconteçam incidentes de execução de multas, casos de lavagem, o fato já está devidamente esclarecido. "Acho que a gente tem que encerrar, aprender a encerrar as coisas. Ainda mais quanto tem sucesso, como esse caso".

 

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