A noite do dia 10 de março de 2021 ficará marcada como um momento histórico para o Ceará. A data está selada pelo encontro das águas do rio São Francisco com o Açude Castanhão.
Após mais de uma década de espera, o feito representa uma garantia hídrica no abastecimento de parte do Ceará. O novo fluxo também deve estimular a atividade produtiva rural no Vale do Jaguaribe.
Nas proximidades da cidade de Nova Jaguaribara, em um vila pesqueira, Márcio Moreira, 46, acredita que as esperanças se renovam com a chegada do Velho Chico ao Castanhão.
"Moramos vizinho à parede (do Açude), na época que a barragem estava cheia tinha muito trabalho. A piscicultura estava em um estágio grande, e eu trabalhei com isso. Depois que a barragem secou, houve esse desemprego grande, e a expectativa da chegada do São Francisco é de que as oportunidades voltem", conta o pescador.
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Para Márcio, é difícil separar a importância da água em paralelo a sua vida, já que sua subsistência sempre esteve ligada aos rios e açudes da região.
"Eu simbolizo a água como vida, onde tem água a coisa é diferente. Para mim, a água é um símbolo de prosperidade. Esses anos de seca foram muito difíceis para nós, os açudes secaram. Agora, a esperança volta, junto com a perspectiva das pessoas de colocar peixe e ter lucro", diz.
José Soares, 60, é outro que tira a sua sobrevivência das águas. Em seu barco, o pescador levou a equipe do O POVO ao trecho da BR-116 que foi inundado após a chegada do Castanhão.
Além de pescador, Soares realiza passeios de barco, sendo mais um a usufruir da água para sobreviver. "Eu tenho mais de nove anos que lido com o turismo. Foi trabalhando dentro desse barquinho aqui, que eu comprei um carro, é o meu sustento", explica.
Mesmo com a chegada das águas ao Castanhão, a mudança no volume de água do Açude deve demorar alguns dias para apresentar um crescimento maior que o atual.
Nas proximidades das paredes do reservatório, que delimitam o fim da barragem, a equipe do O POVO acompanhou o momento em que é feita a medição diária do nível de água do açude, logo nas primeiras horas da manhã da última quarta-feira, 10.
Um comparativo entre o percentual de ocupação do Castanhão realizado no dia 9 e o outro no dia 10 mostra que o reservatório seguiu a tendência de aumento no acúmulo de água dos últimos dias. Segundo os números da Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh), ontem, o açude chegou a 10,33% de sua capacidade. Durante o mês de março, os níveis de água do Açude Castanhão sobem diariamente.
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Mesmo com a ascensão no volume de água, o movimento registrado na manhã de ontem ainda não pode ser atribuído ao fluxo vindo da abertura da comporta do km 53 das obras do Cinturão das Águas do Ceará (CAC), que foi responsável pelo encontro do Castanhão com o Velho Chico.
"A expectativa é que aumente entre quatro e cinco centímetros por dia quando a água chegar de fato. A vazão que chega ainda é muito baixa até o momento. Como o rio (Jaguaribe) é muito largo, o processo fica mais lento", conta Braulino Coelho, administrador do Complexo Castanhão por parte do Departamento de Obras Contra as Secas (Dnocs).
Com uma previsão inicial de 30 dias para percorrer todo o percurso de 300 km, o secretário dos Recursos Hídricos do Ceará, Francisco Teixeira, esclarece que o processo de transferência das águas aconteceu de forma mais rápida pelo fato das calhas dos rios estarem bem úmidas e com bastante fluxo natural.
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"A escolha do primeiro semestre para realizar a transferência das águas foi exatamente por conta desse fluxo, que além de adiantar o processo ainda evitou que acontecessem perdas por evaporação ou infiltração", explica.
Segundo a Secretaria dos Recursos Hídricos do Ceará (SRH), antes da chegada ao Castanhão, as águas do Velho Chico passaram por Jati, Missão Velha, Icó, Aurora, Lavras da Mangabeira, Jaguaribe e Jaguaribara.
Técnicos da Cogerh fizeram o monitoramento diário das águas desde o último dia primeiro, data em que foi aberta a comporta do Cinturão das Águas, e devem continuar com o monitoramento do nível do Açude Castanhão para medir a vazão que vai entrando no reservatório durante os próximos dias.
O professor universitário e médico, Odorico Moraes, que tem aproveitado o momento para fazer registros na região do Castanhão, é mais um que celebra o marco.
"Todos os cearenses esperam desde o primeiro projeto, são 174 anos para que isso pudesse se concretizar, o momento que utilizaríamos as águas do São Francisco. Então, isso criou grande expectativa para a população. Principalmente para as pessoas que dependem da água do São Francisco, e para nós, de Fortaleza, em função do abastecimento da cidade".
Ideia do Brasil colônia hoje chega ao maior açude do Brasil
As águas da transposição do rio São Francisco entraram no Ceará em 26 de junho de 2020, quando a comporta foi acionada pelo presidente Jair Bolsonaro.
A obra foi iniciada em junho de 2007, no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Em agosto de 2015, um pequeno primeiro trecho foi inaugurado pela presidente Dilma Rousseff (PT).
Em março de 2017, outro trecho foi inaugurado pelo presidente Michel Temer (MDB).
Antes disso, a obra tem longa história.
A ideia:
A ideia de canalizar as águas do rio São Francisco vem do Brasil colônia. Em 1818, quando o território tinha status de reino unido a Portugal e Algarves, projeto do tipo foi apresentado por José Raimundo de Passos Barbosa, primeiro ouvidor do Crato. O plano já era levar a água até o rio Jaguaribe.
Conforme Gabriel Pereira, professor do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), o debate ocorria numa época em que se acreditava na existência de ouro no Ceará e transposição seria maneira de viabilizar o garimpo.
Em 1843, o naturalista Marcos Antonio de Macedo publicou o mapa topográfico do Crato, impresso no Rio de Janeiro. Na publicação ele propunha um canal a partir do rio São Francisco para levar água ao Riacho dos Porcos e ao rio Salgado e de lá ao rio Jaguaribe.
Na mais devastadora seca da história do Ceará, chamada "Seca dos três Setes, em 1877, 1878 e 1879, o projeto de transposição foi levado ao imperador dom Pedro II, que teria prometido a venda da última joia da coroa para resolver a crise.
Em 1909, foi criada a Inspetoria de Obras Contra a Seca (Iocs). O primeiro presidente, Miguel Arrojado Ribeiro Lisboa cogitou a transposição, mas desistiu devidu à elevação da Chapada do Araripe.
Em 1919, o Iocs virou Ifocs, com F de Federal. A ideia de transposição foi retomada. O governo Epitácio Pessoa, que pensava no uso de energia hidráulica para superar a elevação da chapada.
A ideia foi cogitada no governo Getúlio Vargas, quando o Ifocs se transformou no atual Dnocs.
Na décadas de 1980, técnicos do próprio Dnocs elaboraram novo projeto.
A obra foi prevista pelo governo Itamar Franco (1992-1994).
A transposição estava no programa de governo na eleição de elegeu Fernando Henrique Cardoso (PSDB) em 1994. Em 1996, FHC anunciou que faria a obra. Em maio de 1998, pouco antes de lançar a candidatura à reeleição, prometeu a transposição de novo. Prestes a deixar o governo, em dezembro de 2002, FHC inaugurou o açude Castanhão ainda inacabado, e disse que a transposição era inevitável, que tinha se empenhado no assunto, mas esbarrou nas muitas oposições políticas.
Na campanha de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2002, a transposição era polêmica e ficou fora do programa.
Quando Ciro Gomes virou ministro da Integração Nacional, a transposição virou compromisso do governo. O projeto foi elaborado, houve licitação e o tumultuado processo de licenciamento, cercado de oposições.
A obra só começou no segundo mandato de Lula, em junho de 2007, quando Ciro já não era ministro.
(Érico Firmo)