Em setembro de 2008, Francisco de Assis Feitosa matou a golpes de faca a então companheira, Joana Duarte da Silva, em Farias Brito, município do Cariri cearense. Réu confesso, ele, porém, justificava o crime afirmando que, durante uma discussão, “perdeu os sentidos” e esfaqueou a vítima após ela dizer que poderia traí-lo se quisesse. Tratava-se da legítima defesa de sua honra, argumentava a defesa. A tese prevaleceu perante o Tribunal do Júri, mesmo tendo os jurados reconhecido a materialidade e a autoria do crime. Se não fosse recurso do Ministério Público Estadual (MPCE), aceito na segunda instância, ele seria inocentado do feminicídio — à época, o crime ainda era assim não tipificado.
Não há mais, porém, essa possibilidade nos tribunais brasileiros. O Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu, por unanimidade, que a tese de legítima defesa da honra é inconstitucional. A decisão, tomada no último dia 12 de março, referendou liminar concedida em fevereiro pelo ministro Dias Toffoli, que entendia que a tese contrariava “os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero”. Em seu voto, Toffoli afirmou que a tese era “atécnica e extrajurídica”. “A ‘legítima defesa da honra’ é estratagema cruel, subversivo da dignidade da pessoa humana e dos direitos à igualdade e à vida e totalmente discriminatória contra a mulher, por contribuir com a perpetuação da violência doméstica e do feminicídio no país”, afirmou o ministro.
Para o promotor de justiça Marcus Renan Palácio, que atua na 1ª Vara do Júri, a decisão é acertada. “Ao admitir, a utilização desse ridículo e ultrapassado argumento, a rigor, é transformar a mulher em ré da sua própria morte”, afirma. Ele explica que, com a decisão, caso a tese seja usada perante o júri, ela não poderá ser objeto de apreciação. A decisão também proíbe a alegação nas fases pré-processual (como em inquéritos policiais) ou durante o processo penal. Caso ocorra a absolvição sob esses argumentos, o MP “não só está legitimado, como tem o dever” de recorrer, diz o promotor. “E, sem nenhuma dúvida, já antevendo a anulação do julgamento”.
Outro promotor que atua em júri, Ythalo Loureiro afirma que a decisão acabou os pegando de surpresa, já que foi de encontro a entendimentos já tomados pelo próprio STF. Para ele, a decisão só foi possível graças ao protagonismo alcançado nos últimos anos pelo Supremo, que, como afirmou o ministro Luís Roberto Barroso, passou a ter uma função “iluminista”, de “trazer os benefícios da da civilização moderna para o sistema de justiça”. “Quando o STF diz que não pode utilizar, direto ou indiretamente, esse tipo de tese, isso é muito positivo, porque, pelo menos, torna a mulher, dentro do plano, igual ao homem”.
No caso de Joana Duarte da Silva, já em agosto de 2018, a 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado (TJCE), por unanimidade, havia determinado a realização de novo Júri para o caso. Conforme o voto da relatora, a desembargadora Francisca Adelineide Viana, a versão do acusado buscou desqualificar a vítima, “impingindo-lhe comportamento desrespeitoso e subversivo, mormente se considerado o machismo (infelizmente) ainda reinante em nosso Estado”. Além disso, citou a desembargadora, a tese é contrária às provas coletadas. “Ambos os filhos (do casal) são uníssonos quanto ao ilibado comportamento da ofendida, cuja submissão chegara ao ponto de continuar a conviver com o acoimado (...) mesmo depois de perder quatro dentes em decorrência de uma agressão”.
A defesa do réu chegou a recorrer da decisão no Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas não obteve sucesso. O novo julgamento ainda estar por ser feito e não tem data marcada.