Nove de julho de 1980: um dia que ficou marcado na história de Fortaleza. Às 9h42min, desembarcava no Aeroporto Internacional Pinto Martins o polonês Karol Wojtya, o papa João Paulo II. Foi um dia de festa. O então governador do Ceará, Virgílio Távora, declarou feriado estadual. Naquela manhã de quarta-feira a capa do O POVO estampava a seguinte manchete: "A Terra da Luz abraça o papa da esperança". Milhares de pessoas, eufóricas, lotaram as ruas da capital para receber o pontífice — hoje santo.
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Fortaleza foi a penúltima das 13 cidades visitadas por João Paulo II em sua passagem pelo Brasil. Ao desembarcar em solo cearense, o papa, em um gesto de humildade, ajoelhou-se e beijou o chão — costume que carregou durante todo o seu pontificado.
“Quando vimos o papa de joelhos, ficamos nos questionando o que ele faria. Quase não dava pra acreditar”, relata Mauri Melo, ex-repórter fotográfico do O POVO, que cobriu toda a visita.
No aeroporto, o papa foi recebido por várias autoridades, como o cardeal Dom Aloísio Lorscheider, o governador Virgílio Távora e a primeira-dama Luiza Távora. Às 9h53min, a comitiva seguiu em comboio rumo à Arena Castelão. Nas ruas, por onde o papamóvel passava, uma verdadeira multidão se espremia desde cedo para tentar ver o chefe da Igreja Católica.
Dentro do Castelão, mais de 120 mil pessoas aguardavam o pontífice com lenços brancos e amarelos nas mãos, enquanto Luiz Gonzaga se preparava para homenageá-lo com o baião "Obrigado, João de Deus", que se tornaria o hino da visita. Porém, acabou emendando com "Asa Branca".
Segundo os registros do O POVO, desde as primeiras horas da noite do dia 8, “centenas de pessoas já se aglomeravam nas proximidades dos portões do Castelão, com o objetivo de conseguir os melhores lugares para ver o papa”. Famílias inteiras levaram colchões, lençóis e travesseiros para passar a noite em frente ao estádio.
A multidão era tão grande que três mulheres morreram pisoteadas durante o arrombamento dos portões, entre elas, uma estudante de 17 anos. O papa lamentou o ocorrido e recebeu pessoalmente os familiares das vítimas para prestar solidariedade.
Na parte da tarde, celebrou a missa de abertura do X Congresso Eucarístico Nacional para mais de 1 milhão de pessoas concentradas do lado de fora da Arena Castelão. Em sua homilia, denunciou as injustiças sociais e defendeu os direitos humanos. Suas palavras se tornaram manchete no dia seguinte: "A meta de todos os homens é a felicidade na comunhão do amor."
Desde o anúncio da visita, O POVO já acompanhava os preparativos. Em 23 de janeiro de 1980, noticiou a confirmação da viagem do pontífice ao Brasil.
A jornalista Márcia Gurgel, então com 29 anos, já estava na redação do jornal há pouco mais de seis anos. Um mês antes da visita do papa a Fortaleza, ela foi encarregada pelo editor geral Alencar Araripe para coordenar toda a cobertura.
“O jornal passou a publicar pelo menos uma página por dia sobre os preparativos. Tudo o que acontecia, nós divulgávamos. Não importava o que fosse, nós íamos atrás de absolutamente tudo”, relembra.
Foram dias intensos. Márcia se dividia entre as ruas e a redação. “Eu queria acompanhar o papa de perto e fazia questão de estar em todos os lugares onde ele estivesse.”
Na véspera da chegada, equipes começaram a ser escaladas. A tensão era grande. Quase toda a redação — a maior do Ceará na época — se deslocou para as ruas. Diante da magnitude do evento, o jornal ainda contratou mais profissionais.
Além disso, o renomado fotógrafo Chico Albuquerque coordenou toda a parte fotográfica. Ele coordenou não apenas os profissionais do O POVO, mas também contratou vários fotógrafos espalhados pelo ceará. “Seu Chico e eu editamos tudo, e posso dizer que nunca vi tantas fotos na minha vida. Eram tantas que não cabiam no birô”, relata Márcia.
O repórter fotográfico Mauri Melo, à época com 37 anos, lembra com carinho daquela que foi uma das maiores e mais emocionantes coberturas de sua vida. “Era uma emoção que não cabia no peito. Em certos momentos eu não conseguia nem manusear a máquina”
Foi nessa emoção que ele registrou a maior multidão reunida no Ceará até aquele momento, que pode ser vista na foto abaixo:
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A visita de João Paulo II ficou cravada na memória coletiva do povo cearense. O designer gráfico Antônio Marcos, hoje com 50 anos, lembra com clareza da passagem do papa pela avenida Dedé Brasil — atual Silas Munguba. Com apenas cinco anos na época e sem a presença paterna ele relata:
“O papa virou-se para mim, abaixou o olhar, sorriu e fez o sinal da cruz. Aquele olhar foi como um olhar de pai. Eu senti não só a paternidade humana, mas a paternidade de Deus que me abraçava.”
A aposentada Margarida Lima, então com 15 anos, foi uma das estudantes do Colégio Juvenal de Carvalho escolhidas para dançar na abertura do congresso ao som de "Obrigado, João de Deus".
“Foi tudo muito grandioso, desde os ensaios até o momento em que fiquei a menos de dois metros do papa. O semblante dele transmitia paz, acolhimento e amor. Nunca vou esquecer.”
Até mesmo quem estava a mais de 207 km de Fortaleza foi impactado pela vista do pontífice. Dona Maria Lúcia, de 72 anos, moradora de Morrinhos, no interior do estado, estava grávida de oito meses quando viu o papa pela televisão. Ela e o marido pedalaram 2 km da zona rural até o centro da cidade para assistir à transmissão.
“Na hora em que vi o papa, senti meu bebê pular de alegria. Era como se ele estivesse sendo abençoado”, conta emocionada
Hoje, ela entende que isso foi uma confirmação para o que viria acontecer no futuro. Seu filho Vanderlúcio Souza, anos depois, se tornaria padre. Confira mais sobre este relato aqui.
“Nunca imaginei que eu, uma pessoa tão simples e humilde teria essa graça de Deus.”
Moysés Louro de Azevedo Filho foi escolhido por Dom Aloísio Lorscheider para presentear o papa em nome da juventude de Fortaleza. Mas o que poderia um jovem de 20 anos dar de presente ao papa?
A resposta veio em oração: “Aquilo que de graça recebi, de graça darei: o amor de Cristo”. Dessa forma, Moysés escreveu uma carta na qual ofertava sua vida e juventude “para evangelizar os jovens mais distantes de Cristo e mais distantes da igreja”.
Ao entregar a carta, Moysés ajoelhou-se emocionado sem nada conseguir dizer. “Ele me olhou com ternura e me abraçou. Era como se, em nome de Jesus Cristo e da Igreja, ele estivesse acolhendo minha oferta.” Dois anos depois Moysés fundou um projeto que viria a ser a Comunidade Católica Shalom
Na manhã do dia 10 de julho, João Paulo II reuniu-se com bispos brasileiros no auditório do Centro de Convenções. À tarde, partiu para o aeroporto, onde participou de uma breve cerimônia de despedida. Uma multidão se reuniu para vê-lo pela última vez.
Às 16h15min, o papa embarcou rumo a Manaus, última etapa da visita ao Brasil, mas não sem antes acenar para o povo cearense.
Dois anos após sua eleição ao papado, João Paulo II já se tornava uma das figuras mais emblemáticas da história da Igreja. Devido ao seu exemplo de vida em seguimento ao ensinamentos de Cristo, foi canonizado em 27 de abril de 2014, tornando-se São João Paulo II. Sua visita a Fortaleza representou as 30 horas mais importantes da história do catolicismo cearense — um legado espiritual que ainda hoje reverbera na vida e na memória do povo cearense.