Logo O POVO+
Mudanças climáticas e biodiversidade: E se o Guaramiranga sumir e deixar de cantar?
Ciência e Saúde

Mudanças climáticas e biodiversidade: E se o Guaramiranga sumir e deixar de cantar?

O aquecimento global em 1,5ºC pode causar a extinção de até 14% espécies terrestres. No Ceará, as aves da serra do Baturité demonstram bem como as mudanças climáticas põem em risco toda a biodiversidade
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Os periquitos cara-suja são a espécie bandeira da conservação na Serra do Baturité, afetados pela perda de habitat e tráfico de animais. (Foto: Fábio Nunes)
Foto: Fábio Nunes Os periquitos cara-suja são a espécie bandeira da conservação na Serra do Baturité, afetados pela perda de habitat e tráfico de animais.

 

"Oi, aqui é a Catalina. Até o dia 18/11, o mundo volta-se para a 27ª conferência do clima da ONU (COP27). Que tal relembrar a ameaça da crise climática com o especial do OP+? "

 

 

O nome do município de Guaramiranga, um dos principais pontos turísticos da serra cearense, aparentemente vem de uma ave. De acordo com o historiador Pompeu Sobrinho, ela significaria "Pássaro Vermelho" em tupi, juntando as palavras “guará” (vermelho) e “miranga” (garça). É também um dos nomes comuns do Uirapuru-laranja (Pipra fasciicauda), uma ave rara que, no Nordeste, existe apenas na Serra do Baturité e está criticamente ameaçada.

O irônico é imaginar que as aves das serras cearenses correm o risco de nunca mais cantar. Não só elas, mas todos os outros animais ameaçados pelas mudanças climáticas e pela influência humana.

 

 

 

A importância do clima da serra

É quarta-feira de manhã, 24 de setembro de 2022. O dia virou com muita chuva pela madrugada e começo da manhã em Guaramiranga. Enquanto tomávamos café da manhã antes de partir para a pauta, a janela emoldurava uma serra nublada, úmida e fria. Era o terceiro dia de viagem para o especial Mudanças Climáticas e estávamos prontos para visitar o Refúgio da Vida Silvestre (Revis) Periquito Cara-Suja, criado e mantido pela ONG Aquasis e pela Secretaria de Meio Ambiente do Ceará (Sema) desde 2018.

Perto das nove horas, no entanto, o cenário era outro. O céu abriu e o sol tomou conta, mantendo uma temperatura amena e úmida. Perfeito para a vegetação de mata atlântica e amazônica presente na Serra do Baturité, e ideal para as aves que ocupam o território ― muitas endêmicas, ou seja, espécies que só ocorrem em um espaço geográfico específico. O periquito cara-suja (Pyrrhura griseipectus) é uma delas.

Os periquitos cara-suja são a espécie bandeira da conservação na Serra do Baturité.(Foto: Fábio Nunes)
Foto: Fábio Nunes Os periquitos cara-suja são a espécie bandeira da conservação na Serra do Baturité.

Responsável pelo nome do refúgio, a ave de asas verdes, barriga avermelhada e a cara igualmente “manchada” de vermelho quase foi extinta na região. A caça e o desmatamento foram os principais motivadores do sumiço dos periquitos. Dependentes de árvores altas e ocas para formar ninhos e se reproduzirem, o corte das matas para a agricultura tirou o habitat deles, deixando-os vulneráveis em plantas mais perto do solo.

O trabalho da Aquasis está garantindo a repopulação dos cara-suja, mas o esforço tem um limite: se não frearmos o aquecimento global, o clima da serra pode mudar o suficiente para tornar-se inabitável por esses pássaros.

 

 

Aves ameaçadas de extinção na Serra do Baturité

A Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da Fauna do Ceará, na edição das Aves, dá conta de 63 espécies em alguma categoria de ameaça. Veja a relação das aves vulneráveis na Serra do Baturité, de acordo com o Guia Fotográfico das Aves da Serra de Baturité:

 

 

O caso do uru-do-nordeste

Outra ave igualmente ameaçada pelas mudanças climáticas é o uru-do-nordeste (Odontophorus capueira plumbeicollis), também vulnerável à caça humana, ao contato com animais domésticos, como os gatos, a doenças e à perda de habitat provocada pelo desmatamento. No Ceará, o uru ocorre apenas na Serra de Baturité e provavelmente foi extinto na Serra da Ibiapaba.

Ele é uma ave que depende de matas úmidas bem conservadas, mas modelos matemáticos demonstram que as áreas adequadas para a ocorrência da espécie irão reduzir expressivamente, mesmo nos cenários mais otimistas do aquecimento global.

As serras cearenses foram formadas há milhões de anos, em um processo erosivo contínuo, transformando-as em matas de exceção.(Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves As serras cearenses foram formadas há milhões de anos, em um processo erosivo contínuo, transformando-as em matas de exceção.

É o que indica o trabalho de conclusão de curso (TCC) da cientista ambiental Ruth Oliveira, 23, recentemente formada em Ciências Ambientais pela Universidade Federal do Ceará (UFC). O estudo é tão novo que ainda será publicado no repositório da UFC, mas a pesquisadora compartilhou os resultados conosco no objetivo de chamar atenção à urgência na proteção do nicho ecológico "A área adequada para que a espécie ocorra." do uru.

Para isso, Ruth trabalhou com projeções de como o aquecimento global pode afetar as regiões habitadas pelo uru-do-nordeste. Ela mapeou os pontos de ocorrência da ave e, com a ajuda de um software especializado, relacionou esses dados com variáveis climáticas. Por exemplo, o trimestre mais úmido e o mais seco da região, ou então o trimestre com maior variação de temperatura.

Essas informações, por sua vez, são relacionadas com os cenários mais otimistas e mais pessimistas do aquecimento global propostas pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Eles são chamados de Caminhos Socioeconômicos Compartilhados (SSP, na sigla em inglês), construídos a partir de uma narrativa composta por fatores sociais, econômicos e políticos influenciando no combate à crise climática.

 

Veja os dois cenários analisados pela pesquisadora Ruth Oliveira 

 

A pesquisadora projetou para dois períodos temporais diferentes: os cenários para 2041 a 2060 e para 2081 a 2100.

 

 

Os resultados

Mesmo nos melhores futuros, apenas 0,21% da Caatinga teria áreas adequadas para a sobrevivência do uru-do-nordeste entre 2041 e 2060. São 1,28 pontos percentuais a menos que o nicho ecológico presente, de 1,49% de áreas adequadas. Até 2100, a diferença seria de 1,37 pontos, com apenas 0,12% de espaços apropriados. Basicamente, todos localizados na Serra do Baturité.

Mas quando olhamos a projeção dos cenários mais pessimistas, que estão longe de serem irreais, 2041 já apresenta apenas 0,17% de área adequada. Até 2100, o uru-do-nordeste simplesmente não terá nenhum espaço oportuno no Ceará para existir.

As mudanças climáticas podem alterar o clima das matas úmidas cearenses, tornando-as mais áridas.(Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves As mudanças climáticas podem alterar o clima das matas úmidas cearenses, tornando-as mais áridas.

“As mudanças climáticas podem alterar significativamente os ambientes. Ocasionam a desertificação, alteram a quantidade de umidade, reduz as nascentes e a água disponível”, exemplifica Ruth. E sem as condições ideais para sobreviver, as espécies ficam vulneráveis.

Aqui, vale destacar algo importante: é bem verdade que o planeta Terra enfrentou muitas mudanças climáticas. Não à toa, o sistema passou por grandes períodos de glaciação e outros mais quentes. Muitas espécies foram bem sucedidas em se adaptar a essas constantes mudanças; mas o aquecimento global que estamos discutindo é diferente, porque ele ocorre pela influência humana, não apenas por fatores ambientais.

Desde o período industrial, “a produção econômica global aumentou cinquenta vezes e o consumo de energia, quarenta vezes”. Isso provocou a chamada Grande Aceleração, um boom de produção e consumo tão rápido que conseguiu desequilibrar todo o sistema natural. As emissões de gases de efeito estufa, o desmatamento, a poluição, a mineração e todas as desigualdades socioeconômicas cresceram exponencialmente no último século. E não tem espécie que consiga ter uma resposta adaptativa eficaz tão rápida assim.

O mandacaru é uma das espécies vegetais mais reconhecíveis da caatinga.(Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves O mandacaru é uma das espécies vegetais mais reconhecíveis da caatinga.

Inclusive, não apenas espécies animais, mas também vegetais. A dissertação de Lucas Peixoto Teixeira, mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente da UFC, demonstrou que “os cenários de mudanças climáticas intermediário e pessimista apontam para uma profunda perda da riqueza vegetal do bioma, componente ambiental de relevante importância para os população da Caatinga e para o fornecimento de serviços ecossistêmicos ao bioma.”

Tudo isso porque as mudanças climáticas reduzirão o aporte hídrico das chuvas e ocasionarão períodos de secas mais extensos, com extremos de chuvas e enchentes e o aumento da temperatura média do ar e do calor extremo. Nem mesmo o semiárido aguenta.

Mesmo que esses cenários projetem um futuro, os desequilíbrios climáticos já são visíveis. Exemplo é a presença do rapazinho-dos-velhos (Nystalus maculatus) na serra, mesmo ele sendo uma ave comum na caatinga. De acordo com Fábio Nunes, coordenador do Revis Periquito Cara-Suja, é justamente a mudança no clima provocada pelo desmatamento que levou o rapazinho até lá.

 

 

Extinção de espécies terrestres pelo IPCC

De acordo com o IPCC, o aquecimento global de 1,5ºC pode extinguir 3% a 14% das espécies terrestres

 

 

Extinguir espécies também piora as mudanças climáticas

Você pode até pensar: isso são apenas projeções. O real motivo das espécies serem extintas atualmente é por desmatamento e caça ilegal, como é o caso de boa parte das aves do Baturité.

A questão é que, assim como as mudanças climáticas são uma ameaça às espécies, a extinção da fauna e flora é um agravante da crise climática. “Quando se tem extinção, o ambiente entra em desequilíbrio. Espécies bem específicas, por exemplo, necessitam que outra espécie ocorra para que elas possam ter uma sobrevivência saudável. Quando ela não tem, quando a outra deixa de existir nesse ambiente, consequentemente vai influenciar no ambiente como um todo”, resume Ruth.


 

Mamíferos, anfíbios e répteis ameaçados de extinção no Ceará

De acordo com a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da Fauna do Ceará, juntando os mamíferos, anfíbios e répteis continentais, 22 espécies estão em alguma categoria de ameaça no Estado

 

Imagine um pássaro que come frutinhas e colabora para a disseminação das sementes de uma planta hipotética. Esse pássaro hipotético também é a presa de uma cobra hipotética, que por consequência pode até ser a presa de outra espécie.

Mas aí o pássaro é extinto e, de repente, nem a planta consegue espalhar as sementes, nem a cobra arranjar o que comer. A ave que come a cobra também pode se dar mal, porque sabe-se lá se a cobra consegue sobreviver sem o pássaro hipotético na dieta.

Agora, imagine essa situação em teias alimentares muito mais complexas. Imagine o impacto da extinção de insetos, por exemplo, ou de plantas. Ou então o caos ambiental de um predador carnívoro sumir e as presas herbívoras não terem mais controle populacional, e portanto consumirem muito mais do que o ambiente pode oferecer.

O tucaninho (Selenidera gouldii baturitensis) é uma subespécie raríssima da serra do Baturité.(Foto: Fabio Nunes)
Foto: Fabio Nunes O tucaninho (Selenidera gouldii baturitensis) é uma subespécie raríssima da serra do Baturité.

“Não só isso, mas quando se tem uma redução e extinção de espécies por perda de habitat, você tem também uma redução de espécies que sequestram carbono da atmosfera. Você não tem mais um fator que atenuaria as mudanças climáticas”, destaca a cientista ambiental. “Então é importante que se tenha essas espécies em equilíbrio e coexistindo, porque é justamente isso que vai nos ajudar a frear as mudanças climáticas.”

 

 

Protegendo as espécies enquanto há tempo

O que pode ser feito para proteger as espécies? Existem várias opções. A criação de unidades de conservação (UC) é uma delas. O Ceará tem 98 UCs, protegendo apenas 7,87% da biodiversidade do Estado.

Mas, além disso, é necessário estudar caso a caso para compreender quais estratégias serão mais eficazes para a preservação de uma espécie. No caso do periquito cara-suja, a aposta foi simular os ocos das árvores desmatadas para eles se reproduzirem.

O projeto das caixas-ninho (ou como a equipe gosta de chamar em tom de brincadeira, o Minha Caixa, Minha Vida) conseguiu devolver o canto dos periquitos cara-suja ao Baturité. Em 2022, 472 filhotes voaram das caixas-ninho, totalizando 2.439 filhotes que voaram delas desde 2010. É um marco para uma espécie que se reproduz uma vez ao ano, com uma média de seis ovos por período reprodutivo.

Esses periquitos são muito sociáveis, vivendo com bandos familiares de quatro a 15 indivíduos. Os pais dividem a tarefa de alimentar os filhotes, mas os pesquisadores já identificaram irmãos cuidando de novos membros da família.

 

 

Ainda, o coordenador técnico do projeto, Fábio Nunes, comenta que as caixas-ninho também são utilizadas por mais bichos, como ratos e aves de outras espécies. Agora, a equipe tenta encontrar estratégias para começar a proteção do uru-do-nordeste, mesmo sem financiamento.

Nesse caso, diz Fábio, o problema de financiamento vem de outro aspecto importante da conservação: as espécies precisam estar bem descritas e catalogadas. O uru-do-nordeste é, até o momento, uma subespécie de uru apesar de ter diferenças físicas ― e como o uru não está mundialmente ameaçado, o uru nordestino acaba ficando de fora de muitos planejamentos governamentais.

Na lista cearense de fauna ameaçada, o uru-do-nordeste é considerado criticamente em perigo. Mesmo assim, o reconhecimento científico da ave como uma espécie plena é um passo importante para garantir a proteção focada.

 

 

As histórias em filme…

Na próxima semana, dia 19 de outubro, O POVO+ lança o documentário Mudanças Climáticas no Ceará. Embarque na viagem de seis dias da reportagem pelo Ceará e veja a imagem da crise climática nos diferentes ecossistemas cearenses.

 

 

 

Pesquisadores consultados para esta matéria: Marcelo Freire Moro (UFC), Fábio Nunes (Aquasis), Bruno Lindsey (Aquasis) e Ruth Oliveira (UFC)

BÖTTINGER, Michael ; KASANG, Dieter. The SSP Scenarios. Site da DKRZ. Acesso dia 23 de setembro de 2022. Disponível em: https://www.dkrz.de/en/communication/climate-simulations/cmip6-en/the-ssp-scenarios 

CEARÁ. Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da Fauna do Ceará. Secretaria do Meio Ambiente do Ceará. Acesso em 23 de setembro de 2022. Disponível em: https://www.sema.ce.gov.br/lista-vermelha-de-especies-ameacadas-da-fauna-do-ceara/ 

NUNES, Fábio de Paiva; LOPES, Illeyne Tenório. Aves da Serra de Baturité: Guia Fotográfico. Ceará: Aquasis, 2015. 180 p.

OLIVEIRA, Luiz Alberto, org. Museu do amanhã. 1. ed. Rio de Janeiro : Edições de Janeiro, 2015. Disponível em: https://museudoamanha.org.br/livro/ 

PÖRTNER, Hans-Otto et al. Climate change 2022: Impacts, adaptation and vulnerability. IPCC Sixth Assessment Report, 2022. Disponível em: https://www.ipcc.ch/report/sixth-assessment-report-working-group-ii/ 

SILVA, Weber; NUNES, Fábio. A urucubaca do uru nordestino. ((o))eco, 4 de maio de 2022. Acesso em 23 de setembro de 2022. Disponível em: https://oeco.org.br/analises/a-urucubaca-do-uru-nordestino/ 

TEIXEIRA, Lucas Peixoto. Modelagem de nicho ambiental de espécies vegetais da caatinga como ferramenta para avaliação dos impactos das mudanças climáticas e do progresso das ods’s 13 e 15 no bioma semiárido brasileiro. 2022. 74 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente) - Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2022. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/68387 

 

Expediente

Edição OP+:Fátima Sudário e Regina Ribeiro
Editora de arte e concepção visual:Cristiane Frota
Texto e recursos digitais:Catalina Leite
Fotos e vídeos:Aurélio Alves (O POVO) e Fábio Nunes / Arquivo pessoal

O que você achou desse conteúdo?