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Vibrações fantasma, FoMo e nomofobia: as 24 horas offline de uma gen Z
Ciência e Saúde

Vibrações fantasma, FoMo e nomofobia: as 24 horas offline de uma gen Z

Você ficaria 24 horas sem o seu celular? Milhões de pessoas ao redor do mundo sofrem de nomofobia e são afetadas por efeitos severos quando estão em abstinência do aparelho. Eu sou uma delas e compartilho nesta reportagem o meu relato de um experimento desafiador: passar um dia inteiro longe do meu smartphone
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Foto: Ilustração de Joel Benjamin O "uso problemático da internet" geral (como tem sido chamado) se correlaciona significativamente com problemas de saúde mental — como depressão ou pensamento obsessivo — e abuso de drogas e álcool
Qual é a primeira coisa que você faz depois de acordar e a última que faz antes de dormir? Se a resposta for “mexer no celular”, saiba que não está só.

Aliás, você faz parte de um grupo considerável de milhões de pessoas do mundo que dormem e acordam com o celular sempre por perto — e não conseguem se imaginar longe dele, deixá-lo descarregar ou ficar sem conexão.

Pois bem, nós temos algo em comum. No meu caso, é praticamente impossível imaginar um cotidiano sem o celular e não é exagero afirmar que ele é como uma extensão do meu corpo.

Réveillon de Paris 2024 expôs dependência digital ao mostrar multidão acompanhando a queima de fogos do Arco do Triunfo através da tela dos celulares enquanto filma o momento(Foto: Reprodução/Redes sociais)
Foto: Reprodução/Redes sociais Réveillon de Paris 2024 expôs dependência digital ao mostrar multidão acompanhando a queima de fogos do Arco do Triunfo através da tela dos celulares enquanto filma o momento

Além da comunicação com familiares e amigos pelas redes sociais, o entretenimento e o acesso à informação, esse aparelho se tornou uma importante ferramenta de trabalho e precisa estar sempre a postos — de preferência com espaço de armazenamento disponível, internet estável, sinal de telefonia e bateria carregada.

É por ele que falo com minha equipe, registro algo que pode render pauta no trajeto para a redação, telefono para fontes, realizo entrevistas e por aí vai.

Um cenário que já era previsível de acontecer com a evolução da tecnologia nas últimas décadas, mas que certamente foi acelerado pela pandemia de Covid-19.

Por isso mesmo que não estranhei tanto quando descobri que dedicava, em média, 5 horas por dia ao meu smartphone.

Não é um exercício que costumo fazer, mas o próprio aparelho mapeia e te mostra esse resumo do seu tempo de uso, com destaque para os aplicativos nos quais você passa mais tempo.

Estava num evento e o mediador nos convidou a fazer essa rápida checagem: meus apps principais, na ordem, eram Instagram, WhatsApp, Spotify e X (antigo Twitter). Em alguns dias o tempo aumentava para 7 horas, em outros diminuía para 4 horas, mas a média ficou em 5 mesmo.

Um pequeno choque, porém, foi descobrir que esse número me enquadrava como uma adicta. Como assim? Eu, uma dependente? Minha profissão não justifica estar o tempo todo on-line? Bem... Não.

Esse quadro de vício que por vezes pode necessitar de ajuda terapêutica já foi nomeado pela ciência há bastante tempo: é a nomofobia "Nomofobia é o nome dado à sensação de medo ou agonia que um indivíduo tem de se sentir incomunicável por estar sem o aparelho celular ou computador. Seu nome vem do inglês “no more phone phobia”, que significa “medo de ficar sem telefone”." .

Ela tem se tornado cada vez mais comum e a ocorrência de transtornos mentais principalmente entre crianças e adolescentes tem ficado mais frequente, com episódios de estresse, ansiedade, depressão insônia entre os principais efeitos associados à abstinência das telas.

Curioso, já que esses também poderiam ser citados como efeitos da exposição excessiva na e à internet.

A comparação com a vida do outro, a dose de dopamina nos vídeos engraçados, o volume de informação que chega a todo momento, a infinidade de conteúdos para explorar, a necessidade de ser presente no ambiente virtual ou de se expor para ser conhecido (e, quem sabe, ao ponto de virar alguém que tem o poder de influenciar a vida de outras pessoas).

No dia a dia da prática clínica, psicólogos e psiquiatras que monitoram essa relação entre nomofobia e saúde mental são unânimes em atestar que os casos de dependência estão a cada dia mais frequentes e se manifestam cada vez mais precocemente — mas estão presentes, também, entre pessoas da terceira idade.

O resultado é uma série de questões emocionais e físicas que podem afetar e comprometer escola, trabalho, relações familiares ou sociais e desencadear problemas sérios de saúde.

É o que explica o psiquiatra Eduardo Bacelar, membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP): “Observamos uma constante com uma progressão gradual do comprometimento, com sofrimento e prejuízos significativos em diversas áreas da vida do indivíduo”.

 

Nomofobia piora saúde mental de diferentes gerações — e não tem limite de idade

Eu mencionei geração Z no título desta reportagem, mas saiba que o uso excessivo de telas piora a saúde mental de diferentes gerações e não tem limite de idade.

Uma pesquisa do programa de pós-graduação em Medicina Molecular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) constatou a presença de nomofobia em idosos e que 72% dos estudos com crianças demonstram aumento da depressão associado ao abuso da exposição a telas.

Esse último, como não é novidade, pode estar ligado à frequente utilização desses dispositivos como distração para os pequenos enquanto os pais fazem suas tarefas.

Como consequência da elevação de horas de uso, há um distanciamento entre pais e filhos que pode provocar um aumento da disposição de episódios depressivos em crianças.

A tese mostra ainda que a participação em redes sociais foi responsável por maior risco de depressão em meninas, uma vez que parte considerável do que exibe nas redes são corpos considerados perfeitos, o que gera comparações e afeta a saúde mental. O mesmo ocorre com idosos que consomem conteúdos violentos na televisão.

“A maior parte dessas pessoas são adolescentes, porque eles são os nativos digitais "O nativo digital é o termo foi criado pelo norte-americano Marc Prensky, que representa uma pessoa que nasceu e cresceu com as tecnologias digitais presentes em sua vivência, como videogames, Internet, telefone celular, MP3, iPod, etc." . Mas chama a atenção a quantidade de idosos que desenvolveram a fobia de ficar separados do celular. Esse estudo é um alerta sobre o uso excessivo das telas, a relação das pessoas com elas e o conteúdo consumido”, diz Renata Maria Silva Santos, autora da pesquisa.

As ferramentas digitais já fazem parte da rotina de muitos idosos brasileiros, que usam o celular para fazer videochamadas e vídeos, assistir filmes e séries por streaming, pesquisar preços ou promoções e utilizar serviços bancários digitais, entre outras atividades(Foto: Joshua Woroniecki/Pixabay)
Foto: Joshua Woroniecki/Pixabay As ferramentas digitais já fazem parte da rotina de muitos idosos brasileiros, que usam o celular para fazer videochamadas e vídeos, assistir filmes e séries por streaming, pesquisar preços ou promoções e utilizar serviços bancários digitais, entre outras atividades

Uma das conclusões da pesquisadora é de que “não basta limitar o tempo de tela, é necessário também enriquecer o tempo fora dela, tentando manter a mente ativa. A falta de gerenciamento do tempo aumenta o estresse de forma considerável. Nos Estados Unidos, por exemplo, mais de 30% dos adultos jogam em seus aparelhos, o que atrapalha as tarefas do dia a dia”.

Com base nisso, algumas alternativas são sugeridas, como a determinação do tempo de tela de acordo com a idade e a busca por atividades que propiciem mais possibilidades de socialização, como o cinema.

Além disso, o incentivo à prática de atividades físicas ao ar livre é essencial para combater o uso excessivo de aparelhos.

Maneiras de prevenir o uso excessivo do celular

 

A pesquisa também revelou que o uso excessivo de telas pode levar à diminuição do quociente de inteligência (QI) antes do previsto. Isso ocorre porque falta incentivo a atividades que exigem pensamento rápido e outras habilidades que contribuem para o funcionamento ativo do cérebro.

Santos ressalva que algumas atividades podem ser realizadas mesmo com a tela, desde que haja interação: “Quando a pessoa interage com a tela, ocorrem estímulos cognitivos. Isso pode melhorar a memória e o raciocínio, principalmente em idosos. Com esses ganhos, o processo depressivo pode demorar mais a se instaurar”, afirma.

Conforme recomenda o psiquiatra Eduardo Bacelar, os pais e/ou responsáveis precisam ter um diálogo aberto sobre os riscos associados ao uso excessivo de tecnologia e lembrar que “a palavra convence, mas o exemplo arrasta”.

“É essencial que os adultos sirvam como um modelo de uso racional e saudável desses dispositivos. A criação de momentos em família, longe das telas, pode ajudar a fortalecer os vínculos familiares e a reduzir a dependência digital dos jovens”, coloca.

 

 

Critérios diagnósticos para o uso abusivo da tecnologia

Os sinais de dependência incluem ansiedade, agitação, sudorese, taquicardia e o uso compulsivo do celular como um mecanismo de segurança para evitar interações sociais.

Já como sinais de alerta, o médico destaca a preocupação excessiva com a internet e as mídias sociais, a necessidade de aumentar o tempo conectado e exibir esforços repetitivos na tentativa de diminuir o tempo de uso, sem sucesso.

Além disso, quando o uso é restringido, essas pessoas apresentam labilidade emocional, como ansiedade ou irritabilidade.

“A dependência do celular é moldada por diversos fatores, como a busca incessante por recompensas imediatas, exemplificadas pelas notificações de redes sociais, a necessidade contínua de conexão e atualização, e o uso do dispositivo como uma forma de evitar emoções negativas (esquiva experiencial)”, elenca.

De acordo com Bacelar, que é mestre e doutor pela Universidade Federal do Ceará (UFC), aspectos psicológicos como baixa autoestima, necessidade de validação social e determinados traços de personalidade também desempenham um papel significativo.

“A nomofobia é especialmente prevalente entre jovens que estão em processo de construção de identidade social. Profissionais cuja rotina exige comunicação constante e rápida, como jornalistas, ou que precisam estar frequentemente on-line para atender demandas, muitas vezes fora do horário normal de trabalho, também estão em maior risco”, sinaliza.

A pressão para estar sempre disponível e atualizado intensifica o risco de desenvolver essa dependência e, segundo o psiquiatria, “combinados com o uso contínuo das tecnologias digitais após a pandemia, esses fatores podem contribuir para o aumento dos casos de nomofobia”.

“Fisicamente podem surgir dores musculares, especialmente nas mãos, braços e pescoço devido ao uso contínuo do dispositivo. A dependência do celular ainda interfere nas interações sociais face a face, levando a um isolamento social que pode piorar problemas psicológicos preexistentes”, continua.

Um dos principais sinais do possível excesso no uso de smartphones e redes sociais é a síndrome “fear of missing out”, conhecida pela sigla FoMo.

É o “medo de ficar de fora” de determinadas situações, eventos ou experiências — uma festa onde estarão amigos, um acontecimento político importante, uma atualização sobre uma notícia do seu interesse, etc.

Na avaliação do médico, a necessidade de evitar essa sensação de estar “perdendo algo” faz com que muitas pessoas utilizem seus celulares de forma compulsiva, o que perpetua o ciclo de dependência.

Para reduzir o uso do celular de forma saudável a fim de balancear a desconexão com a necessidade de estar conectado para fins de trabalho ou outras responsabilidades, Bacelar assinala que é importante estabelecer limites claros e criar períodos offline ao longo do dia, além de evitar gatilhos que levam ao uso compulsivo e substituir esses momentos por atividades como hobbies ou exercícios físicos.

Estratégias terapêuticas para uso mais saudável do celular

Com a crescente recorrência de casos relacionados ao uso excessivo de tecnologia, a "epidemia de Bets" preocupa o psiquiatra Eduardo Bacelar: "também está muito relacionada à busca por soluções imediatas ou fuga de problemas".

Um conceito interessante para entender o impacto dessa tendência é o dilema do porco-espinho, uma metáfora filosófica introduzida por Arthur Schopenhauer e posteriormente abordada por Sigmund Freud.

No dilema, um grupo de porcos-espinhos, em uma noite fria de inverno, precisa decidir entre se aproximar para se aquecer ou manter distância para evitar se ferir com os espinhos uns dos outros. Se ficarem muito próximos, eles se machucam, mas se se afastarem demais, sofrem com o frio.

Aplicando essa metáfora ao contexto das tecnologias digitais, especialmente o uso excessivo de celulares, podemos ver como as pessoas estão cada vez mais enfrentando um dilema semelhante, de acordo com Bacelar.

"O celular e as redes sociais oferecem uma sensação de conexão e proximidade com os outros, mas essa proximidade digital pode resultar em espinhos emocionais e a deterioração das interações sociais reais", afirma.

E segue: "Ao depender demais dessas conexões digitais, as pessoas acabam se isolando mais do mundo físico, o que pode levar a sentimentos de solidão e desconexão". A analogia reflete uma das principais inquietações futuras do especialista: a tendência das pessoas de buscarem conforto nas interações virtuais enquanto, ao mesmo tempo, experimentam uma maior distância emocional e social do mundo real.

Nomofobia piora saúde mental de diferentes gerações

Uma pesquisa do programa de pós-graduação em Medicina Molecular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) constatou a presença de nomofobia em idosos e que 72% dos estudos com crianças demonstram aumento da depressão associado ao abuso da exposição a telas.

Esse último, como não é novidade, pode estar ligado à frequente utilização desses dispositivos como distração para os pequenos enquanto os pais fazem suas tarefas.Como consequência da elevação de horas de uso, há um distanciamento entre pais e filhos que pode provocar um aumento da disposição de episódios depressivos em crianças.

A tese mostra ainda que a participação em redes sociais foi responsável por maior risco de depressão em meninas, uma vez que parte considerável do que exibe nas redes são corpos considerados perfeitos, o que gera comparações e afeta a saúde mental. O mesmo ocorre com idosos que consomem conteúdos violentos na televisão.

"A maior parte dessas pessoas são adolescentes, porque eles são nativos digitais, mas chama a atenção a quantidade de idosos que desenvolveram a fobia de ficar separados do celular. Esse estudo é um alerta sobre o uso excessivo das telas, a relação das pessoas com elas e o conteúdo consumido", diz Renata Maria Silva Santos, autora da pesquisa.

"As ferramentas digitais já fazem parte da rotina de muitos idosos brasileiros, que usam o celular para fazer videochamadas e vídeos, assistir filmes e séries por streaming, pesquisar preços ou promoções e utilizar serviços bancários digitais, entre outras atividades".

Uma das conclusões da pesquisadora é de que "não basta limitar o tempo de tela, é necessário também enriquecer o tempo fora dela, tentando manter a mente ativa. A falta de gerenciamento do tempo aumenta o estresse de forma considerável. Nos Estados Unidos, por exemplo, mais de 30% dos adultos jogam em seus aparelhos, o que atrapalha as tarefas do dia a dia".

Com base nisso, algumas alternativas são sugeridas, como a determinação do tempo de tela de acordo com a idade e a busca por atividades que propiciem mais possibilidades de socialização, como o cinema. Além disso, o incentivo à prática de atividades físicas ao ar livre.

Maneiras de prevenir o uso excessivo do celular

A pesquisa da UFMG também revelou que o uso excessivo de telas pode levar à diminuição do quociente de inteligência (QI) antes do previsto. Isso ocorre porque falta incentivo a atividades que exigem pensamento rápido e outras habilidades que contribuem para o funcionamento ativo do cérebro.

Renta Santos ressalva que algumas atividades podem ser realizadas mesmo com a tela, desde que haja interação: "Quando a pessoa interage com a tela, ocorrem estímulos cognitivos. Isso pode melhorar a memória e o raciocínio, principalmente em idosos. Com esses ganhos, o processo depressivo pode demorar a se instaurar". Conforme recomenda o psiquiatra Eduardo Bacelar, os pais e/ou responsáveis precisam ter um diálogo sobre os riscos associados ao uso de tecnologia e lembrar que "a palavra convence, mas o exemplo arrasta".

"É essencial que os adultos sirvam como um modelo de uso racional e saudável desses dispositivos. A criação de momentos em família, longe das telas, pode ajudar a fortalecer os vínculos familiares e a reduzir a dependência digital dos jovens".

Vício em telas atinge rendimento acadêmico e desafia instituições de ensino

A falta de controle sobre o tempo de tela levanta preocupações relacionadas ao vício em celular porque cria-se uma dependência como qualquer outra: um comportamento compulsivo que visa a busca do prazer na tentativa de fugir do sofrimento.

Nicotina, cafeína, álcool, remédios para dormir; qualquer um desses em excesso pode se tornar uma adicção também.

Alguns tipos de dependência como pornografia, drogas e jogos de azar possuem aspectos neuroquímicos que tornam o indivíduo dependente e estão relacionados à elevação dos níveis de dopamina no cérebro, com efeitos no sistema de recompensa do indivíduo.

Autora do estudo "Nomofobia entre discentes de Medicina e sua associação com depressão, ansiedade, estresse e rendimento acadêmico", a médica Priscilla Santos, residente de Medicina de Família e Comunidade da Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP/CE), investigou a correlação entre o vício no celular e questões de saúde mental como episódios depressivos em uma instituição de ensino de Fortaleza.

Na pesquisa, ficou evidente que os estudantes do curso de Medicina apresentam uma associação positiva entre nomofobia e depressão — ou seja, quanto maiores os escores de nomofobia, maiores os de depressão.

Uma das consequências desse uso prolongado de smartphones (mais de quatro horas) é o menor rendimento acadêmico: os alunos que usam o aparelho para olhar e-mails e agendar reuniões e eventos tendem a obter um rendimento maior, o que pode acontecer devido ao uso mais responsável (ele representa consultas pontuais ao celular onde não há feedback, de modo que a pessoa fica menos tempo conectada). O estudo sugere que políticas de tecnologias educacionais são de suma importância dentro do ambiente acadêmico.

Nação dopamina: o excesso de prazer virtual que nos faz esquecer do que só se toca com o olhar

Estou entre os cerca de dois bilhões de jovens nascidos depois de 1995 que cresceram com conexão 24 horas por dia: a geração Z. Por coincidência, 24 horas é também o tempo limite que a maioria de nós consegue permanecer offline. Esse é um dos resultados das mudanças provocadas pela adaptação ao mundo digital que transformou nossas formas de viver e trabalhar.

Muitos preferem desistir de academia, Netflix e até mesmo de sexo do que de seus celulares. Há estudos que comprovam esse cenário e atestam os sintomas de abstinência que atingem a nós, os nativos digitais — ao passo em que tentamos manter os traços analógicos que ainda alcançamos pelo convívio com as gerações Y e X (pais) e os baby boomers (avós).

Meu primeiro celular com acesso à internet foi um Nokia teclado QWERTY, uma novidade quando o touch screen ainda começava a aparecer em alguns modelos. O WhatsApp era uma ferramenta igualmente muito nova, com um formato ainda experimental, onde eu conseguia me reunir pela primeira vez com as amigas de outros estados com quem dividia a administração de um fã-clube para a banda Rebeldes.

Os emojis não eram exatamente uma surpresa, já que eu vinha do Windows Live Messenger (o famoso MSN) e do Orkut, onde já usávamos os chamados emoticons (emoções em forma de icon ou carinhas com expressões) e até mesmo alguns gifs que se assemelham com o que hoje são as figurinhas do “zap”.

Aqui não posso deixar de lembrar do recurso “chamar a atenção”, quando fazíamos a tela de outra pessoa “tremer” a fim de conversar com ela. Havia também os scraps, depoimentos, comunidades e avaliações do finado Orkut (quem não queria ser considerado 100% confiável, legal e sexy)?

Até hoje amargo a perda das fotos que tinha lá e que ficaram só na lembrança depois que a rede social foi deletada. Uma parte da vida que foi registrada lá e que virou nada.

Às vezes me pergunto se um dia isso pode acontecer com o Instagram e penso o quanto depositamos nossas memórias em algo que fisicamente não existe — diferente dos álbuns de fotos que nossos pais cuidadosamente organizavam e resistem no fundo do armário até que alguém revire algumas gavetas e os reencontre.

No Facebook, para onde migramos depois que o Orkut acabou de vez, formou-se um novo jeito de apresentar seu perfil. Apesar de muitas semelhanças com o layout e algumas propostas, não era a mesma coisa.

Mas o “Face” tinha também o seu lado interessante. As “cutucadas” eram uma forma de chamar a atenção (e até de flertar); por meio dos Eventos era possível saber o que tinha de programação na Cidade (e o melhor: quem havia confirmado presença).

Os grupos permitiam uma aglutinação de pessoas de diferentes lugares com os mesmos interesses para movimentos, mobilizações, compartilhamento de hobbies, discussões. Era possível enviar reações aos conteúdos, curtir e compartilhar.

Foi o nascimento dos “likes” que caíram no gosto popular — especialmente dos brasileiros, culturalmente assíduos nas redes sociais.

O feed de notícias fazia um apanhado geral da vida de quem estava no nosso ciclo de amigos, além de exibir o conteúdo de páginas que eram seguidas a partir do interesse de cada perfil em um formato de linha do tempo.

Em “Lugares”, as pessoas faziam check-in para mostrar onde estavam em tempo real — quando a segurança com a exposição disso passou a ser uma questão. Com os smartphones se popularizando, o “FB” viveu tempos áureos.

Por mais esquecida que seja hoje em dia, a rede ainda concentra um público que utiliza ativamente da plataforma. Digo isso porque vez por outra entro lá e sempre percebo que o movimento continua — só não é mais a “minha galera”.

Enviar e receber mensagens instantâneas pelo aplicativo Messenger resolveu a limitação tarifária dos SMS e abriu espaço para a difusão do WhatsApp de uma maneira tão forte que hoje ele é ferramenta de trabalho para muita gente (como nós jornalistas, por exemplo, que o tempo inteiro estamos em contato com outras pessoas).

O celular passou a aglutinar todas as áreas da vida: social, saúde, entretenimento, transporte, finanças. É nele que escrevo o rascunho desse texto, aliás. Tenho um grupo comigo mesma (vários, inclusive) para organizar minimamente a minha vida, tamanho é o volume de informações que chegam e saem a partir desse app todos os dias.

Parece algo que aconteceu há muito tempo, mas esses são fenômenos relativamente recentes. Tudo muda muito rápido e, quando menos se espera, outra rede social se torna o vício do momento. A de agora, por exemplo, é o TikTok.

Naquela de não ficar de fora, baixei e fiquei acessando de vez em quando. Não me interessei de início, mas me explicaram: você precisa treinar o seu algoritmo. O celular te escuta conversando com as pessoas no dia a dia e até falando sozinha. Ele vai te mostrar várias coisas aleatórias, vai observar o que você passa e o que assiste e a partir disso vai te entregar o que é do seu interesse.

Treinei o meu algoritmo e começou a fazer sentido, mas percebi que realmente não é para mim. O pouco que fico lá sempre me deixa bastante preocupada com os efeitos dessa rede na autoestima de crianças, adolescentes e até mesmo adultos que passam o dia rolando para baixo.

Alguns minutos observando rostos, corpos e cérebros perfeitos são suficientes para voltar o olhar para si por uma lente distorcida.

Mas as edições são incríveis, devo reconhecer. Nossa. De fato, muita gente com talento para o audiovisual. E é interessante observar que se tornou um novo Google: tudo o que você tem dúvida ou quer ver alguém fazendo antes de tentar, basta pesquisar na caixa de busca: vai ter um vídeo sobre aquilo.

Não é tão diferente do Instagram, porque no “IG” tem bastante disso. E a artificialidade também está nas expressões, nas falas, na iluminação. Tudo muito bonito, refinado. Cenários fantásticos, pessoas felizes, vídeos engraçados. Explosão de dopamina.

Curioso é que depois dessa experiência, agora assisto aos vídeos do Instagram querendo clicar no canto superior esquerdo da tela (movimento que ativa a função de acelerar a reprodução).

Simplesmente assistir na velocidade normal já parece ser algo demorado. Causa ansiedade e perda de interesse no conteúdo o mero fato de não poder assisti-lo mais rapidamente.

A função inicial da rede (de postar fotos) passou a ficar mais restrita aos stories, que somem em 24 horas. O que chama a atenção para outro fato curioso: por que essa geração não posta foto no feed?

Para responder a isso, vamos olhar para as respostas que o historiador Victor Hugo conseguiu ao questionar seus alunos entre 13 e 17 anos sobre o assunto.

Será que, para eles, nós que ainda usamos essa ferramenta somos a “tia do zap”? O professor de história e sociologia em São Paulo resolveu fazer um teste com as turmas do 7º, 8º, 9º ano e 2º ano do ensino médio.

93 alunos responderam aos seguintes questionamentos: 1. Por que não postam fotos no feed? 2. Por que dificilmente colocam foto no perfil? 3. Por que postam só nos stories? 4. O que acham de quem posta conteúdo frequentemente? 5. Se acham bonitos/seguros para compartilharem fotos nas redes sociais?

Trata-se de uma escola periférica, onde a maioria dos estudantes são carentes e grande parcela de pretos e pretas. As respostas foram as mais diversas.

Foto no perfil é “cringe”, fotos nos stories somem rápido e é preferível que só os “melhores amigos” vejam, poucos são seguros com a beleza e a maioria aponta vergonha em relação ao rosto (principalmente boca, sorriso e cabelo).

É difícil encontrar uma foto boa e alcançar um bom número de curtidas e comentários — é quase uma competição, por isso todos se cobram muito.

“As respostas reforçam questões atuais bem problemáticas sobre a autoestima e também sobre a própria padronização do corpo nas redes. Além disso, os mais novos sofrem mais com a autoestima e sentem mais medo em relação às redes. Todos se cobram”, conclui o historiador.

São questões que estão na cabeça desse público, mas não são exclusivas a ele.

Quando fui convidada para participar de uma imersão de quatro dias em Icapuí e viver experiências de terapia holística, logo pensei: essa é a oportunidade perfeita de passar algum tempo distante do celular, me desconectar do mundo virtual e me fixar melhor no que está ao meu redor.

No começo foi fácil e isso me fez achar que seria tranquilo. Tirei os primeiros 60 minutos de letra, pois já tenho o costume de deixar o celular um pouco de lado quando estou longe das obrigações. Com o passar das horas, no entanto, percebi que aquilo seria bem mais difícil do que havia imaginado.

Três dias cobrindo os Jogos Olímpicos de Paris 2024 foram suficientes para despertar a torcedora empolgada/comentarista esportiva que há em mim, então logo comecei a confabular se acaso algum brasileiro havia conseguido medalha.

Já sabia que Rebeca Andrade teria uma decisão importante, as meninas do vôlei, do judô… Fiquei encasquetada e isso tirou minha concentração durante alguns momentos. Percebi que não aguentaria interromper assim tão abruptamente o uso do aparelho.

Para além das utilidades, é realmente um vício. Um vício como qualquer outro, aliás. Nicotina, cafeína, álcool, remédio para dormir. De dois em dois minutos, mesmo sem ter nada objetivo para fazer, me via tateando à procura do celular. Sentia vibrando mesmo sem estar com ele.

Uma das situações de maior autocontrole foi quando abri o WhatsApp para falar com uma pessoa importante da família e vi que alguém havia me marcado em uma mensagem no grupo do trabalho. Apareceu o @ e eu fiquei a ponto de clicar em vários momentos. “E se for algo urgente?”, me penitenciava.

Todavia, me segurei ao máximo. Depois de algum tempo, nem lembrava mais. Passou a ansiedade de ver o que era e abri somente quando já havia regressado para casa. Não era nada urgente.

Comecei a me conectar mais com a experiência e lembrei que existe algo que só se toca no olhar. Estar constantemente mirando e sendo encarada de frente me fez retomar esse prazer.

Já o momento mais surpreendente, para mim, foi quando minha colega de quarto, por acidente, derrubou o celular dentro da piscina. Por dentro me desesperei por ela, mas logo fiquei despreocupada ao observar a tranquilidade que estava a moça mesmo após o mergulho do aparelho.

“Ele é à prova d'água?”, perguntei, perplexa, diante de tamanha calmaria. “Nós vamos descobrir agora”, ela respondeu em tom bem-humorado, serenamente.

O dia passou e eu me percebi mais preocupada que ela. “Deu certo? Ele sobreviveu?”, questionei algumas vezes quando nos cruzamos a caminho do quarto. Imagina passar o resto da viagem incomunicável, sem poder tirar uma foto ou sem saber se arquivos importantes estão na nuvem? Pois ela não demonstrava nenhuma aflição.

No fim das contas, depois de ficar um tempo num pote de arroz, o celular voltou aos poucos e ela disse que talvez só precisasse levar na assistência depois para ver o estado do sistema operacional. Zero tormento com a situação.

Surpresa, eu guardei para mim a reação sossegada e o raro momento em que testemunhei alguém sem apego algum ao mundo virtual. Ora ora, não é que essas pessoas ainda existem?!

*Karyne Lane é jornalista e repórter do O POVO+


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