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Quando o Brasil enxergou a Aids na década de 1980
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Quando o Brasil enxergou a Aids na década de 1980

No dia 7 de julho, completam-se 30 anos desde a morte do cantor Cazuza. O artista foi a primeira figura pública a falar abertamente que era soropositivo para HIV
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Cazuza é um dos maiores ícones da música brasileira (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Cazuza é um dos maiores ícones da música brasileira

Atualizada 06/07/2020 às 12 horas

O corpo jovem e vigoroso de Cazuza passou a dar sinais da doença em 1986. Com então 28 anos, de comportamento e palavras subversivas e vívidas, ele era ídolo do rock'n roll de toda uma geração, que começava a viver o que depois convencionou-se chamar de mal do século. A Aids já infectava milhares e matava no Brasil desde o ano de 1980. Quando, em fevereiro de 1989, fazendo tratamento nos EUA, amparado pelos pais, Cazuza revelou ter Aids. Tornou-se o primeiro artista brasileiro a admitir estar doente. "Não fazia sentido eu negar o vírus e minha posição liberal como artista", contou à Folha de São Paulo. Dois meses depois, com apenas 40 quilos, o cantor estampou uma emblemática e criticada capa da Veja, com os dizeres: "Uma vítima de Aids agoniza em praça pública".

Por um ano e cinco meses, desde que falou abertamente sobre ter a sorologia positiva para o vírus da imunodeficiência humana (HIV) até sua morte, 7 de julho de 1990, Cazuza firmou-se como símbolo de uma luta contra um inimigo ainda hoje enfrentado por muitos brasileiros. A batalha colocou em pauta um debate necessário sobre o patógeno, que durante as décadas de 1980 e 1990 matou mais de 115 mil pessoas no País. Vista com desprezo e muito preconceito, por acometer, naquela fase, principalmente homens homossexuais, a Aids não havia, antes de Cazuza, sido tão escancarada.

"O que ficou muito evidente com todo o caso do Cazuza é que ele revelou, numa dimensão muito dramática, forte e com muita visibilidade, os estigmas relacionados ao HIV. Aquela capa da revista (Veja) mostrou a cara do preconceito com a Aids. O Cazuza é emblemático nesse sentido, porque ele mostrou o sofrimento físico e clínico da doença, mas também mostrou o sofrimento social, trazido pelo estigma e pelo preconceito."

É como entende o psicólogo, doutor em Saúde Coletiva, e vice-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), Veriano Terto Jr.

Trabalhando com a causa desde 1989, Veriano conta que a exposição da figura muitíssimo magra e dia a dia mais debilitada de Cazuza tornou-se nos anos seguintes quase que um sinônimo de alguém com HIV, ao passo que recrudesceu preconceitos contra homossexuais e ou contra um estilo de vida que desafiava os valores dominantes e mais conservadores.

Rio de Janeiro, em 20 de dezembro de 1988. Os musicos Almir Chediak (esq) e Cazuza fazem apresentacao durante o lancamento do Song Book do cantor e compositor Caetano Veloso, na Boate People, zona sul do Rio de Janeiro. (Foto: ANA STEWART/AE)
Rio de Janeiro, em 20 de dezembro de 1988. Os musicos Almir Chediak (esq) e Cazuza fazem apresentacao durante o lancamento do Song Book do cantor e compositor Caetano Veloso, na Boate People, zona sul do Rio de Janeiro. (Foto: ANA STEWART/AE) (Foto: ANA STEWART/AE)

"O Cazuza ficou apontado como aquele que está pagando, sendo castigado, por ter sido desobediente, transgressor às normas, aos valores de uma sexualidade heterossexual, branca e reprodutiva. Ele questionou tudo isso. A família dele, ao acolhê-lo, ao assumir o tratamento, e assumir a Aids junto com ele mostrou que ele não era desobediente, que era um filho, antes de mais nada. E um ser humano e, assim, deveria ser visto."

Não obstante a dor do veredito, que àquela altura era sentença de morte, Cazuza seguia confrontando o destino, e continuava produzindo - "Burguesia", seu último álbum, trouxe 20 músicas, algumas compostas em um leito de hospital, gravadas enquanto ele estava em uma cadeira de rodas. Quando a matéria da revista o pintou como alguém fadado ao fenecimento, Cazuza esperneou: "Não estou morrendo, posso morrer a qualquer momento como qualquer pessoa viva".

Em campanha em 2019, a Abia reestampou um slogan do combate à Aids da década de 1980: "Silêncio = morte". Falar e manter-se ativo artisticamente, sendo voz, como fez Cazuza, era portanto ir contra o silêncio. "Acredito que tenha tido um impacto muito positivo ele e outras figuras públicas depois dele terem conseguido se mostrar e falar do seu diagnóstico. Isso deve ter levado muita gente que tinha se exposto (ao vírus) a fazer exame e procurar tratamento", indica Telma Martins, do Grupo de Trabalho IST/Aids e Hepatites Virais, da Secretaria Estadual da Saúde (Sesa).

Passadas três décadas da morte de Cazuza, a convivência com o vírus HIV foi transformada pela ciência, com os antirretrovirais, as profilaxias Pós-Exposição (PEP) e Pré-Exposição (PrEP) e a testagem, e pela luta dos movimentos sociais que impulsionaram às políticas públicas de acesso universal aos medicamentos. Uma pesquisa de 2019 financiada pelo Ministério da Saúde (MS) mostra que 70% dos adultos e 87% das crianças diagnosticadas entre 2003 e 2007 tiveram sobrevida superior a 12 anos. Em 1996, antes do MS ofertar o tratamento universal, a sobrevida era estimada em cerca de cinco anos (58 meses).

Ainda assim, permanece o que os especialistas apontam como o principal fator que impede o diagnóstico e a adesão ao tratamento: o estigma. "As pesquisas indicam que as pessoas deixam de fazer o teste por medo, não da doença, e, sim, do estigma. De ter aquela marca e não poder lidar com isso, de não poder levar adiante um projeto profissional, um projeto de vida afetivo e amoroso, ainda que seja possível", lamenta Veriano.

Até o ano passado, o MS estimou que 135 mil pessoas tenham HIV e não sabem. Hoje, com diagnóstico precoce e seguindo um tratamento, é possível ter sorologia positiva, sem desenvolver Aids. E, até mesmo, ter carga viral indetectável (o que permite cessar a transmissão para outra pessoa). Trinta anos depois da morte de Cazuza e 40 anos da epidemia de Aids e HIV, o que ainda mata é o preconceito.

 

Casos de HIV crescem e os de Aids seguem estáveis

Metade das pessoas registradas com HIV no Ceará não chegaram à fase de Aids. Entre 2009 e 2019, o Estado contabilizou 11.132 casos de Aids e 11.123 casos de HIV - sendo a notificação compulsória do HIV, especificamente, a partir de 2014. Conforme Telma Martins, articuladora do Grupo de Trabalho IST/Aids e Hepatites Virais, da Secretaria Estadual da Saúde (Sesa), amparada em números divulgados no boletim anual, tem se observado uma estabilização dos número de Aids, com declínio a partir de 2012.

Contudo, tem-se aumentado a taxa de detecção de pessoas com sorologia positiva para o vírus - passando de 2,5 casos/100.000 hab. em 2009 para 21,0 casos/100.00 hab. em 2018. Nos seis primeiros meses de 2020, foram registrados 504 novos casos de HIV no Estado.

O aumento da detecção é explicado por Telma por dois fatores principais: a testagem ampliada e a percepção da diminuição do uso de preservativos. Já para número de casos de Aids, Telma explica que o acesso e a adesão ao tratamento medicamentoso cresceram. Ainda assim, o Ceará mantém uma média de 340 óbitos pela doença por ano - foram 3.440 mortes registradas nos últimos dez anos. A articuladora mensura que o abandono da terapia, que chega a 10% anualmente, e o diagnóstico tardio podem ser entendidos como causas.

O teste por fluído oral, feito por ONGs parceiras em populações-chave, e os autotestes que devem ser disponibilizados a partir de agosto, são algumas das medidas indicadas pela articuladora para mitigar a descoberta tardia da doença. Para o médico infectologista e professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) Guilherme Henn, o fator vulnerabilidade social tem de ser levado em conta tanto na descoberta quanto no abandono ao tratamento.

"Imagina um paciente com HIV que está na zona rural de um município pequeno de interior. Ele chega na fase de Aids pra saber que foi infectado, porque tem algum sintoma, e está há muito tempo sem procurar um serviço de saúde. Essa pessoa vai precisar de consulta com frequência e de remédio antirretroviral e pras infecções oportunistas em um serviço de referência, que não vai estar nem na sede do município dele", observa o infectologista, salientando que, pela dificuldade de acesso, a taxa de letalidade em extratos sociais mais baixos é muito maior do que nos extratos sociais mais altos.

O Ceará tem atualmente 31 Serviços de Assistência Especializada em HIV/Aids (SAE) - 15 deles na Capital e outros 16 em cidades do Interior. O número, considerado baixo, é uma das principais queixas de Credileuda Costa de Azevedo, 49, secretaria política do Movimento nacional das Cidadãs Positivas. Com diagnóstico de soropositividade há 27 anos, Credileuda ainda aponta deficiências nas equipes multidisciplinares completas e na estruturação física dos centros de atendimento. A Profilaxia Pré-Exposição ao HIV (PEP), implementada desde 2017, por exemplo, só está em 13 dos SAE do Estado

As reivindicações também são compartilhadas pela enfermeira coordenadora da casa de adultos da Casa Sol Nascente, Bruna Nojosa. Apesar de salientar a boa tratativa no tratamento dos 20 adultos acolhidos pela casa, feita pelo Hospital São José, a enfermeira afirma que há falhas na rede de assistência, e destaca que não há no Ceará um abrigo público voltado a acolher somente a população vulnerável com HIV. Telma assente quanto à insuficiência de SAE, mas afirma haver um trabalho constante de conscientização das redes municipais para implantação do serviço. E, durante a pandemia de Covid-19, serviços como a distribuição de medicação estão presentes em 21 das 22 regiões de saúde do Estado. 

 

Especialistas criticam falta de políticas voltadas a populações-chave

Tendo apresentado queda no número de mortes por Aids, nos últimos cinco anos, passando de 12,5 mil em 2014 para 10,9 mil em 2018, no Brasil, a população entre a faixa etária de 20 a 34 tem preocupado. No período de 2007 a junho de 2019, essa faixa etária concentrou a maioria dos casos de infecção pelo HIV, com percentual de 52,7% dos casos - 18,2 mil pessoas infectadas. Especialistas também indicam um crescimento dos casos em adolescentes e um retorno de aumento de confirmações em homens que fazem sexo com homens (HSH), e apontam como causas um "desmantelamento" de políticas públicas para atingir os públicos mais suscetíveis.

O País experimentou avanços jurídicos, científicos, medicamentosos, e se tornou referência ainda na década de 1990 no tratamento e na disponibilização universal de medicamento. Contudo, para o psicólogo, doutor em Saúde Coletiva e vice-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), Veriano Terto Jr., o Brasil nos últimos dez anos, e ainda mais acentuadamente desde 2018, tem sofrido uma estagnação e, em certos pontos, retrocessos.

Ele cita a falta de apoio a movimentos da sociedade civil - que inclusive impulsionaram a conscientização sobre a doença e ajudaram na mobilização para pressionar indústrias farmacêuticas a reduzir preços -; a retirada de um setor de Direitos Humanos de dentro das políticas de enfrentamento a Aids; a falta de modelos consolidados e disseminados de educação sexual; e, mais recentemente, a mudança, em maio de 2019, no Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das ISTs, do HIV e Hepatites Virais que foi transformado no Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis, que também agrupou tuberculose e hanseníase, que não são de transmissão sexual.

Além disso, Veriano aponta a fala do presidente da República, no início deste ano, que disse que "uma pessoa com HIV é uma despesa para todos". "Saímos dos anos (19)90 em que o soropositivo é chamado de cidadão, e portanto, possuidor de direitos, inclusive do direito à vida, ao tratamento, e a saúde, para anos depois ser tratado como uma despesa, um gasto", criticou.

As campanhas feitas pontualmente, em fevereiro, no Carnaval, no Dia Mundial da Aids, em dezembro, e de forma genérica, sem dialogar com públicos LGBT e outras populações-chave, também é alvo de críticas. "Não adianta dizer que tem acesso universal ao medicamento, se a gente não está prevenindo que infecções aconteçam. Nunca se teve tanta clareza de que a prevenção combinada funciona e, de repente se tem uma interrupção de construir campanhas focadas nessas populações em que tem tido aumento de novo de casos", observa o infectologista Guilherme Henn, que também assinala o subfinanciamento e os corte em pesquisa em curso de pós-graduação.

Como responde o Ministério da Saúde

Questionado sobre vários pontos colocados por especialistas, veja como se posiciona o Ministério da Saúde:

O POVO - A retirada da palavra Aids, quando o DIAHV foi transformado no Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis é tido como um silenciamento da tratativa da doença. Como o MS vê essa questão?

Ministério da Saúde - A reestruturação administrativa é praxe comum na Administração Pública. A mudança organizacional no nome e na estrutura do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais (DIAHV), que passou a se chamar Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI), não alterou as ações de prevenção, tratamento e controle do HIV/aids.

Destaca-se também que a reestruturação, um ano e meio depois de ocorrida, não trouxe impacto algum em relação à política de distribuição dos medicamentos para o tratamento antirretroviral, uma vez que trata-se de Política Nacional de Medicamentos, parte essencial da Política Nacional de Saúde. Desse modo, em consonância com a política de acesso universal e gratuita aos medicamentos, o Ministério da Saúde garante seu compromisso em assegurar às pessoas vivendo com HIV/aids a continuidade da política de acesso aos medicamentos antirretrovirais para tratamento do HIV/aids.

Desde a década de (19)90, o Governo Federal financia integralmente o terapia antirretroviral para o HIV no Sistema Único de Saúde (SUS), sendo um dos primeiros países a fazer a distribuição gratuita desses medicamentos. Cabe destacar que, desde 2013, o Brasil adotou a recomendação de tratamento para todas as pessoas vivendo com HIV, onde o tratamento deve ser iniciado logo após o diagnóstico de HIV, independentemente da condição clínica da pessoa.

OP - No início do ano, o presidente Bolsonaro falou sobre os custos que uma pessoa com HIV traz para o SUS. Qual é a média de gastos que o governo tem com um paciente de HIV por ano?

MS - Com a reestruturação não houve perda orçamentária para a política de HIV/aids, uma vez que o orçamento da área passou de R$ 1,7 bilhão em 2018 para R$ 2,2 bilhões, em 2019. Esse orçamento, posteriormente, foi suplementado com a publicação da Portaria n º 133 de 7 de junho de 2019, no Diário Oficial da União de 10 de junho de 2019, que outorgou crédito suplementar no valor de R$ 161.200.000 (cento e sessenta e um milhões e duzentos mil reais) para atender às programações de “Atendimento à população com medicamentos para tratamento dos Portadores de HIV/AIDS e outras Doenças Sexualmente Transmissíveis”. Em 2020 o orçamento para a política de HIV/Aids é de R$ 2,45 bilhões.

O investimento do Governo Federal no tratamento do paciente HIV/aids envolve, dentre outras coisas, a aquisição de medicamentos antirretrovirais, bem como de testes e marcadores utilizados para avaliação do quadro e do avanço da infecção pelo HIV no paciente. Atualmente, o Ministério da Saúde adquire e distribui mais de 80 itens entre medicamentos e insumos diagnósticos, além dos insumos de prevenção, como preservativos masculino e feminino. Além disso, o custo do tratamento do paciente HIV/aids depende do esquema e tratamento que é definido para cada paciente e envolve ainda as instâncias estadual e municipal, uma vez que outros aspectos relacionados ao tratamento estão ligados ao serviço de saúde local, tais como os custos de internações, medicamentos para infecções oportunistas, dentre outros.

OP - Ainda sobre essa fala, ONGs que trabalham diretamente com soropositivos falam que essa declaração retrata uma ameaça de perdas de direitos e de cidadania das pessoas soropositivas. Qual o posicionamento do MS quanto à isso?

MS - O direito à saúde é assegurado constitucionalmente a todas as pessoas e o acesso universal ao tratamento e aos medicamentos antirretrovirais está previsto em Lei desde 1996, portanto, não há nenhuma possibilidade de que haja uma ameaça aos direitos das pessoas que vivem com HIV/Aids.

Ademais, o Ministério da Saúde tem envidado esforços para garantir a melhor opção terapêutica aos pacientes que vivem com HIV/aids e tem incorporado os medicamentos mais avançados na primeira linha de tratamento, à exemplo do Dolutegravir, um dos medicamentos antirretrovirais mais modernos do mundo.

OP - As ONGs historicamente tiveram papel preponderante no trabalho de acolhida dos pacientes e também na pressão às indústrias farmacêuticas para diminuição dos preços para as medicações. Qual a tratativa que o Governo Federal tem com as ONGs que tratam de Aids e HIV no Brasil?

MS - A participação social na formulação de políticas públicas de saúde é prevista por lei. No caso da resposta ao HIV/aids, há instâncias consultivas que auxiliam o processo de tomada de decisão e na formulação das políticas públicas. Além disso, há também outros mecanismos de cooperação com as Organizações da Sociedade Civil que permitem a atuação conjunta entre Governo e Sociedade Civil e dentre elas podemos destacar a estratégia “Viva Melhor Sabendo – VMS” que prevê o incentivo ao diagnóstico em populações chave para o HIV/aids e que trouxe importantes resultados no enfrentamento à epidemia de HIV no Brasil.

OP - Há também um questionamento quanto ao teor de campanhas genéricas que não conversam com o público das chamadas populações-chave da doença, e que só acontecem em momentos como dezembro e fevereiro. Como o MS se posiciona quanto a isso?

MS - O MS tem adotado uma estratégia de comunicação em duas mãos. Realizar campanhas para a população em geral buscando atingir maior cobertura das informações e uma outra estratégia que visa dar maior focalização com vistas a atingir públicos específicos. Para cada uma das duas estratégias há a segmentação do processo comunicativo. Nas campanhas de massa para o público em geral o resultado pretendido é atingir o maior número de pessoas com informações básicas sobre prevenção, independentemente do grau de exposição das pessoas ao risco de infecção pelo HIV. O Ministério da Saúde tem ampliado e investido, também, em campanhas de informação, sobretudo na segmentação das mensagens para públicos específicos, em especial o público jovem.

Já na focalização o objetivo é outro. Nesse caso, o objetivo é direcionar as informações para condições específicas associada a vulnerabilidade e ao risco de infecção, atendendo públicos do que se convencionou denominar de populações chave (Homens que fazem sexo com homens, transexuais, pessoas privadas de liberdade, pessoas que usam álcool e outras drogas e trabalhadores do sexo) , essa estratégia prevê ações de comunicação tanto para as pessoas soronegativas como para aquelas que vivem com HIV, e por ser uma estratégia de comunicação focalizada, em geral, os meios de difusão das informações não são os meios convencionais da comunicação de massa, segue outra lógica, como uso de mídias sociais e comunicação entre pares.

OP - Os números de soropositividade em jovens têm crescido, conforme especialistas, muito por falta de informação mediada. Como o MS tem trabalhado educação sexual para esse público?

MS - A resposta brasileira ao HIV tem sido pioneira por adotar tecnologias e as metodologias mais modernas e eficazes. O Brasil tem trabalhado com a população jovem, mas não exclusivamente, no que se refere a prevenção, diagnóstico e tratamento.

Na área de prevenção, trabalhamos com a estratégia de Prevenção Combinada, que faz uso de intervenções biomédicas, comportamentais e estruturais – no nível individual e de suas relações – ofertando de forma gratuita diversas possibilidades de prevenção, como, por exemplo, o incentivo ao uso de preservativos masculinos, femininos nas unidades de saúde, a oferta de testes rápidos, a profilaxia pós-exposição (PEP), profilaxia pré-exposição (PrEP).

Em relação à promoção da ampliação de acesso ao diagnóstico, uma das iniciativas voltadas para o público jovem, envolve o projeto Viva Melhor Sabendo (VMS), onde foram realizados mais de 200 mil testes entre 2014 e 2019. O projeto é desenvolvido em conjunto com organizações da sociedade civil (OSC) e envolve a oferta de testagem entre pares em lugares de sociabilidade e em horários alternativos (casas noturnas, bares, boates, saunas e outros locais de fluxo das populações atendidas).

Além disso, nossas campanhas de utilidade pública, tentam se aproximar desse público por meio da estética e da linguagem nas mídias sociais e envolvendo influenciadores jovens. Também destacando a importância do papel da família e da escola na orientação desses jovens quanto a prevenção.

Na parte de insumos, o Sistema Único de Saúde (SUS) disponibiliza gratuitamente preservativos masculinos e femininos, gel lubrificante e testes rápidos para a detecção do vírus HIV nas unidades de saúde do país. Em 2019, foram 468,2 milhões de preservativos masculinos, 10,6 milhões de preservativos femininos e 11,9 milhões de testes rápidos de HIV distribuídos em para todo o Brasil. No mesmo ano, foram realizadas 138.019 dispensações de PEP e 16.643 indivíduos tiveram pelo menos uma dispensação de PrEP.

OP - O Brasil aderiu à meta recomendada pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids). A partir da meta 90-90-90 até 2020, busca- se que 90% das pessoas vivendo com HIV estejam diagnosticadas; que destas, 90% estejam em tratamento; e que deste grupo, 90% tenha carga viral indetectável. A meta foi atingida? Quais são esses percentuais atualmente?

MS - O Brasil tem se aproximado do cumprimento das metas 90-90-90 do Unaids. Em relação à primeira meta de diagnóstico, 89% do número estimado de pessoas vivendo com HIV no País haviam sido diagnosticadas até dezembro de 2019. Já a proporção de pessoas diagnosticadas que estavam em tratamento antirretroviral foi de 77% no mesmo ano. Em relação à meta de pessoas em tratamento antirretroviral que atingiram a carga viral indetectável em 2019, o Brasil ultrapassou a meta do Unaids, registrando 94% pessoas em tratamento com supressão viral.

OP - A PrEP foi implementada como política pública em 2017, disponibilizada em 12 cidades para ser expandida gradativamente para todo País. Em que passo está essa disponibilização?

MS - A expansão da oferta da PrEP é vista pelo Ministério da Saúde (MS) como prioridade, em especial como importante ação de prevenção para aquelas populações que estão sob risco substancial para a infecção pelo HIV, como: pessoas trans, gays e outros homens que fazem sexo com homens, trabalhadores do sexo e casais sorodiscordantes. Desde agosto de 2018, está ocorrendo a ampliação do número de serviços de PrEP. Em dezembro de 2019, havia 176 serviços de saúde atendendo usuários de PREP, em dezembro de 2018 eram 82. Atualmente, a PrEP encontra-se disponível em 26 Unidades da Federação, faltando somente o estado do Acre, que já está em processo de preparação para disponibilizar o acesso à profilaxia.

OP - Como está acontecendo com a pandemia de Covid-19 a assistência e a prevenção de Aids e HIV, com testagem, medicação, PReP e PEP?

MS - Os serviços de HIV/aids no Sistema Único de Saúde (SUS), que em grande parte são constituídos por serviços de referência para doenças infecciosas em geral, incluindo a covid-19, também foram impactados pela pandemia.

Nesse sentido, com vistas a garantir a assistência adequada às pessoas vivendo com HIV (PVHIV), o Ministério da Saúde tomou uma série de medidas desde o início da pandemia, que incluíram a orientação da rede quanto à mudança no fluxo assistencial, abrindo a possibilidade de teleconsultas, de ampliação do intervalo para consultas clínicas e exames laboratoriais de rotina em pacientes estáveis, e de ampliação da dispensação mensal de antirretrovirais (ARV) para 60 e até 90 dias. Como resultado dessas medidas, observou-se um crescimento de 38% no número de PVHIV que receberam dispensações para 60 dias e de 80% nas que obtiveram dispensações para 90 dias, nos primeiros cinco meses do ano. 

Quanto ao número de pessoas diagnosticadas e que iniciaram tratamento para o HIV, observou-se, entre janeiro e maio de 2020, uma ligeira queda de 7% em relação ao mesmo período de 2019, o que pode estar associado ao desafio de manter o nível de oferta de diagnóstico para o HIV pelos serviços, em decorrência da pandemia de covid-19.

Para PrEP, também houve ampliação da dispensação mensal de antirretrovirais para até 120 dias. Em janeiro de 2020, 50% das dispensações tinham duração para 30 dias e apenas 2% eram para 120 dias. Em maio do mesmo ano, as dispensações para 120 dias representaram 43% do total e as para 30 dias, 23%. Com relação ao número de usuários novos de PrEP por mês, houve um aumento constante desde a implantação em dezembro de 2017 com o pico em agosto de 2019 (1.251 novos usuários). A partir de março de 2020, observa-se uma diminuição na quantidade de novos usuários de PrEP (942 usuários novos), coincidindo também com o início da pandemia de COVID-19 no Brasil.

Vando Oliveira - coordenado da Rende Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e Aids (RNP+CE)
Vando Oliveira - coordenado da Rende Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e Aids (RNP+CE)

Avanços e retrocessos da Aids no Ceará

Desde o inicio da epidemia de Aids, em 1980, avanços foram registrado e o diagnóstico deixou de ser uma sentença de morte. Apesar de tantos desafios, muitas conquistas foram alcançadas, como a chegada dos antirretrovirais em 1996 - que fez com que as pessoas com HIV pudessem viver melhor -; a diminuição da transmissão vertical (de mãe soropositiva para o feto); a participação dos movimentos sociais; e a criação das redes de pessoas vivendo com HIV, em que muitos assumiram a sorologia para lutar por políticas públicas e assistência, para uma melhor qualidade de vida.

Nos últimos anos, no entanto, muitos retrocessos vêm ocorrendo com a política de Aids no Brasil. Desde o rebaixamento do programa de Aids do Ministério da Saúde, o fim dos programas em estados e municípios, até o fechamento de serviços especializados e atendimento na atenção básica - o que tem contribuído drasticamente para o abandono no tratamento.

No Ceará, nos últimos cinco anos, temos denunciado à gestão Estadual e aos municípios o  problema no hospital de referência, o Hospital São José, que atende pacientes de todo o Estado, e que, apesar do grande número de novos casos diagnosticados, as estruturas físicas do hospital e dos serviços municipais não suportam a quantidade de pessoas atendidas.

É preciso maior empenho dos governos na prevenção, diagnóstico e assistência a quem vive com HIV no nosso Estado. A descentralização do nosso hospital de referência se faz necessária e urgente, mas só será possível se os gestores nos seus municípios assumirem suas responsabilidades.

Ainda vivemos um preconceito muito forte que, mesmo após 40 anos de epidemia, ainda exige mais informação da sociedade. Cabe aos governantes promoverem mais campanhas de prevenção e informação. Porque, mesmo com significativos avanços, a Aids ainda existe e mata mais de 300 pessoas todos os anos no Ceará.

 

História do vírus

Ao longo das últimas quatro décadas, desde os primeiros casos da doença, houve diversos avanços científicos e sociais para prevenção, diagnóstico, tratamento e assistência no enfrentamento da Aids.

Antes da década
de 1980

Registros de mortes sem que houvesse uma explicação médica, com sintomas de fadiga, perda de peso, baixa imunidade e pneumonia, na África Central, Haiti e EUA.

1980

Primeiro caso da doença no Brasil, em São Paulo, divulgado e confirmado apenas dois anos depois.

1981

Descreve-se pela primeira vez a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, sem ainda nomeá-la cientificamente. Morre Gaëtan Dugas, conhecido como "paciente zero", pois teria sido ele um dos primeiros a espalhar a doença nos Estados Unidos.

1982

Confirmação do primeiro caso de Aids no Brasil e identificação da transmissão por transfusão sanguínea. Em príncipio a doença é divulgada com o nome provisório de Doença dos 5 H, em razão de casos registrados em homossexuais, hemofílicos, haitianos, heroinômanos (usuários de heroína injetável) e prostitutas (hookers em inglês).

1983 / 1984

Pesquisadores franceses e norte-americanos conseguem isolar o vírus causador da doença. Se iniciou uma disputa pela autoria da descoberta que posteriormente ficou dividida entre os dois países. Neste mesmo período, especialistas concluem que a Aids representa a fase final de uma doença provocada pelo vírus HIV. Também em 1984, o Ceará registra a primeira confirmação de Aids, já com uma morte.

1986

Criação do Programa Nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde.

1987

Início da administração do AZT, medicamento utilizado em pacientes com câncer, para o tratamento da Aids. Neste mesmo ano, a Assembléia Mundial de Saúde e ONU estabelecem o 1° de dezembro como Dia Mundial de Luta Contra a Aids. Neste ano, Cazuza recebe o diagnóstico de Aids.

1989

Após pressão social, indústria farmacêutica reduz o preço do medicamento AZT. Em fevereiro deste ano, em viagem aos EUA para tratamento, Cazuza concede entrevista a Zeca Camargo e admite, em matéria do jornal Folha de São Paulo, estar com Aids. Dois meses depois, a revista VEJA traz na reportagem de capa um Cazuza magro, sob título "Cazuza - Uma vítima de aids agoniza em praça pública".

1990

Com 32 anos, cinco anos após o início da infecção pelo vírus HIV e um ano depois de falar abertamente sobre a sorologia positiva, Cazuza morre em 7 de julho, devido a um choque séptico, em decorrência do agravamento da Aids.

1991

É iniciado o processo de aquisição e distribuição gratuita de antirretrovirais, medicamentos utilizados para o tratamento que dificultam a multiplicação do vírus.

1992

O Ministério da Saúde inclui os procedimentos para o tratamento da Aids na tabela do Sistema Único de Saúde (SUS) e, no ano seguinte, o Brasil passa a produzir o AZT.

1996

É sancionada a Lei 9.313 que estabelece a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores de HIV. Com mais de 22 mil casos de Aids, o Brasil registra aumento de casos em mulheres, pessoas do interior e de baixa renda.

1998

Pesquisadores norte-americanos dão início ao primeiro teste de um produto candidato à vacina anti-HIV/Aids.

1999

O Governo Federal divulga redução em 50% de mortes e em 80% de infecções oportunistas, em função do uso do coquetel

2000

A Profilaxia Antirretroviral Pós-Exposição de risco à infecção pelo HIV (PEP) é adotada no País. Inicialmente utilizada apenas para acidentes ocupacionais, foi posteriormente ampliada para situações de violência sexual e de exposição sexual consentida.

2006

Timothy Brown, também conhecido como "Paciente de Berlim", é a única pessoa de quem se tem notícia até hoje que tenha ficado curado da Aids após um transplante de medula óssea de um doador imune ao vírus HIV.

2008

O Brasil conclui o processo de nacionalização de um teste rápido que permite detectar a presença do HIV no organismo em 15 minutos.

2013

O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) aprovou a competência do profissional enfermeiro para realizar testes rápidos para diagnósticos de HIV, sífilis e outros agravos. Neste mesmo ano, Brasil inicia estudos sobre Profilaxia Pré- Exposição.

2015

Um novo Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) de PEP é estabelecido, no âmbito do SUS, simplificando as recomendações clínicas e instituindo um único algoritmo para todos os tipos de exposição ao HIV com vistas à ampliação da oferta da PEP.

2017

A incorporação da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), que visa reduzir o risco de transmissão do HIV, passou a ser implementada como política pública na rede do SUS. Foi liberado pela Anvisa o primeiro registro para o autoteste para diagnóstico do HIV.

2019

MS divulga que nos últimos cinco anos, o número de mortes pela doença caiu 22,8%, de 12,5 mil em 2014 para 10,9 mil em 2018. A estimativa é de que 135 mil pessoas vivem com HIV no Brasil e não sabem.

2020

30 anos da morte de Cazuza.

 

 

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