Freddie Mercury, Roger Taylor, Brian May e John Deacon estremeceram os palcos do estádio paulista do Morumbi ao som de “We will rock you” em 1981. No coro de mais de 110 mil vozes, Guto Goffi e Maurício Barros se somavam — jovens, enérgicos, apaixonados por riffs de guitarra e solos de bateria.
Na volta ao Rio de Janeiro, um desejo ganhou corpo: montar a banda Barão Vermelho, codinome do aviador alemão e principal inimigo dos Aliados na Primeira Guerra, Manfred von Richthofen. Ao lado de Cazuza, Roberto Frejat e Dé Palmeira, os amigos integraram o quinteto que colocou fogo no rock brasileiro da década de 1980.
O POVO - Nos idos de 1981, Maurício Barros e você fundaram o Barão Vermelho instigados por um show do Queen. Além da banda britânica, que outros grupos, sobretudo nacionais, influenciaram o percurso sonoro do Barão?
Guto Goffi: Em 1981, quando a gente fundou a banda, a gente era muito ligado ao Queen — tanto que fomos ao show do Queen no Morumbi naquele ano. Aquilo foi o motivador, realmente, para fundar o Barão Vermelho. A gente já tinha um crossover de várias influências musicais: a gente gostava do rock progressivo, durante a adolescência a gente curtiu muito Yes, Triumvirat, Pink Floyd — que não era tão progressivo, mas tinha uma atmosfera diferente —, Genesis… O nosso desbunde brasileiro foi através da Cor do Som, do Pepeu Gomes, do Moraes Moreira, toda aquela onda dos Novos Baianos de misturar o samba com o rock, aquilo fez muito a nossa cabeça. Tem também a coisa da música negra...
O Barão é um caldeirão de influências muito variado. O Barão é um grupo que não aprendeu a gostar de rock a partir do Sex Pistols ou do The Clash. Nessa época, quando o punk invadiu o rock, a gente já estava curtindo a cena do rock há muito tempo; curtindo Led Zeppelin, curtindo o filme do The Band, The Last Waltz, e o filme do Woodstock. A gente ia ao cinema ali na Praia de Botafogo, no antigo Coral Scala, que fazia sessões de rock à meia-noite e também no Cinema Ricamar, que hoje virou o Centro Cultural Baden Powell. A gente frequentava para poder pegar alguma coisa de rock, era muito difícil alguém fazer algum evento ligado ao gênero porque a gente tava muito naquela frase da discoteca e a playboyzada toda usava calça bonitinha, camisinha dobrada, relojão, careta mesmo. A gente já andava todo rasgado! Minha mãe olhava para mim e dizia “meu filho, você tá um farrapo! Que roupa é essa toda rasgada?” (risos). “Mãe, eu tenho que ir contra essa galera que está se vestindo igual caixa de bombom! Eu não sou isso!”. Esse começo do Barão tem muito disso.
OP: O cantor Leo Jaime, à época ainda Léo Guanabara, foi cogitado para assumir os vocais do Barão — mas foi a voz rascante de Cazuza que conquistou a banda. Como foi o processo de escolha do nome do vocalista? O que o Cazuza acrescentou ao Barão, nesse sentido?
Guto: Começamos o Barão eu, Guto Goffi, baterista, e Maurício Barros, pianista. A gente era colega de colégio. Quando a gente começou a procurar outros integrantes para formar a banda, já tinha até escolhido o nome Barão Vermelho. Primeiro achamos o Dé (Dé Palmeira) no baixo e viramos um trio. Depois pintou o Frejat (Roberto Frejat) e nós viramos um quarteto. Uma curiosidade legal dessa época é que nós quatro estudávamos na mesma escola de música, mas sem saber, porque cada um tinha um horário diferente, um dia diferente. Eu estudava bateria; o Maurício, piano; o Dé, contrabaixo e o Frejat, guitarra. Faltava um vocalista.
O Léo Jaime pintou nessa época para trazer uma certa luz para gente. Depois do primeiro ensaio, ele comentou que tinha um amigo que achava realmente perfeito para ocupar aquele posto — essa pessoa era o Cazuza. O Cazuza foi realmente transformador. A partir do primeiro segundo que nós cinco nos juntamos em uma sala com tudo montado para fazer um som, a coisa fluiu de uma forma muito bacana. A gente soube na hora que aquele era o vocalista do Barão de Vermelho, que não tinha para ninguém. Foi uma coisa muito mágica, um encontro que já estava marcado para acontecer conosco... De uma forma totalmente inesperada, mas aconteceu.
OP: O disco de 1982 foi o primeiro álbum lançado por uma banda de rock brasileiro. Como foi o processo de criação desse trabalho?
Guto: O primeiro disco do Barão é o mais importante da nossa carreira, foi o disco que nos projetou. É um disco apaixonado; era uma banda que tinha seis meses de convivência, compondo repertório inédito e autoral, fazendo os primeiros arranjos. Nós todos éramos muito novos ainda, mas o nosso produtor Ezequiel Neves quis preservar todo esse frescor. Ele falou “cara, eu não quero mudar nada, é o que vocês estão ensaiando, vocês vão entrar no estúdio e vão registrar isso tipo um som Polaroid” — Polaroid, para quem não sabe, é uma máquina que tirava fotos que eram reveladas na hora. Ele queria realmente esse registro fotográfico do nosso som, como era nu e cru. Inclusive o disco era muito criticado na época por parecer amador, mas não tinha nada de armador, não: era verdade pura mesmo, que é um elemento que o rock sempre precisa. O rock de mentira não existe, ou ele é de verdade, ou ele não é rock.
O Barão conseguiu (essa verdade) através da sensibilidade do Ezequiel, mesmo percebendo que ainda éramos verdes e que a gente ainda tinha trabalho de lapidação a ser feito, que foi sendo conquistado disco a disco, mas aquele momento era aquele. Tinha que ser daquela forma, lindo daquela forma... O estúdio era uma festa, era uma alegria só, era um momento de energia juvenil jorrando para fora. Muito astral envolvido, muita felicidade, muita conquista, muita transformação das nossas vidas. Aquilo tudo, na minha opinião, deu nesse disco maravilhoso que tem músicas lindas, tem a banda num frescor fantástico. O disco foi remixado e remasterizado quando a gente fez 30 anos de carreira e relançou ele com aquela faixa extra, “Sorte ou Azar”, e algumas regravações da época, mas ele não ficou tão bom quanto o disco original. Mesmo com todas aquelas deficiências apontadas ali — que o som podia ser melhor, que o arranjo podia ser melhor, que é música corria aqui numa parte e discorria na outra parte —, a gente viu que era aquilo. Aquilo era o melhor porque era muito verdadeiro.
OP: O Barão Vermelho relançou o disco remixado pelos músicos da banda, com mudanças no volume e timbre dos instrumentos, nos 30 anos do álbum. Como foi revisitar este trabalho? O que do Barão da década de 80 ainda se reverbera hoje?
Guto: Poder revisitar um disco teu 30 anos depois tem toda uma magia. A gente tinha essa dúvida, se o disco realmente tinha, em 1982, aquela qualidade que nós gostaríamos de alcançar. Tentamos remixar, remasterizar, mexer naquela receita do bolo e o que a gente descobriu é que não tem certeza se ele é melhor que a versão original.
A única coisa bacana dessa remixagem e remasterização foi pegar uma música antiga que não tinha entrado no disco, “Sorte ou Azar”, e pegar a voz do Cazuza, botar ali uma unidade de tempo para nos guiar e a gente gravou os instrumentos todos em cima só de voz dele. Foi uma das coisas mais emocionantes que eu já passei na música, poder ouvir a voz de um amigo meu que tinha morrido há quase há 25 anos. Estar acompanhando ele ali foi uma coisa mágica, eu me arrepio até agora de lembrar daquele encontro... Poder ter de novo aquele encontro com o Cazuza, que infelizmente foi muito cedo embora das nossas vidas. Mas “Sorte ou Azar” é linda e a regravação também é ouro 24 quilates.
> ARTIGO
Por Clodomir Freire*
Há 30 anos, Agenor de Miranda Araújo Neto (Cazuza) pegou um “trem para as estrelas” e foi embora, deixando-nos de presente uma obra intensa e genial, produzida ao longo dos seus pouco mais de trinta anos de vida flamejante.
A década de 80 do século passado foi marcada pela explosão do rock nacional ou BRock, em meio ao questionamento da ordem política vigente, no ocaso da Ditadura Militar (1964-1985) e no renascimento da sociedade civil organizada.
Cazuza era o vocalista e principal letrista do grupo Barão Vermelho, uma das mais importantes bandas do BRock. Nos discos produzidos com a banda, as letras de Cazuza ainda não apresentavam, com tamanha intensidade, as críticas e o engajamento social e político que se fariam presentes em seu repertório solo, sobretudo a partir do álbum Ideologia, produzido em 1988. O despertar, segundo o próprio Cazuza, foi quando escreveu a letra de “Um Trem Para as Estrelas”, em música de Gilberto Gil, para obra cinematográfica homônima do cineasta Cacá Diegues, em um olhar para a cidade com sua violência, miséria e injustiças.
Quando gravou o álbum Ideologia, Cazuza já havia descoberto estar contaminado pelo vírus HIV. Foi a primeira personalidade pública a admitir ser soropositivo e sua coragem ajudou a quebrar tabus sobre a AIDS. Essa descoberta teria impacto na sua música. Dizia que “parou de olhar para o próprio umbigo e passou a cantar o seu país”. O poeta que viu “a cara da morte e ela estava viva”, dizia agora precisar falar para além da sua tribo. Expressou, em músicas como Ideologia e Brasil, sentimentos de desesperança e decepção com o Brasil que emergia da Ditadura Militar, sem que esses sentimentos implicassem numa postura imobilista. Cuspiu no Brasil das elites e chamou os jovens a buscarem uma ideologia para viver. Foi inquieto e arrebatador. Foi embora criticando a caretice.
Ao retratar o Brasil da sua geração, Cazuza tornou-se atemporal. Sua poesia continua alimentando rebeldes e contestadores, tornando-se necessária no Brasil atual.
Fico a imaginar Cazuza, lá das estrelas, contemplando o nosso Planeta, até pouco tempo insuspeitavelmente esférico, e em especial o Brasil, cantando o seu Blues da Piedade para “essa gente careta e covarde”, que “paga para a gente ficar assim”.
Pois é, poeta, o Brasil segue “um museu de grandes novidades” e o futuro que você temia repetir o passado, parece-nos ameaçador. Aquela gente que apagou o sol da liberdade e mergulhou o Brasil numa noite escura que durou mais de duas décadas, acredite, está de volta.
Sua rebeldia e sua coragem de combater tudo que não é livre e libertador nos fazem imensa falta. Mas não nos desesperançamos, afinal, versos de um saudoso poeta nos ensinam: “...Mas se você achar/ Que eu tô derrotado/ Saiba que ainda estão rolando os dados/ Porque o tempo, o tempo não para.”
* Clodomir Freire é professor, poeta e compositor
Do primeiro disco com o Barão Vermelho, lançado em 1982, até a morte de Cazuza, em 7 de julho de 1990, a carreira do cantor e compositor carioca passou de muitas formas pelas páginas do O POVO. Críticas dos discos, polêmicas, lançamentos, shows, entrevistas e o dia a dia do seu tratamento contra o HIV. Do ídolo rebelde ao romântico malandro, muito se falou dele por aqui. A seguir, seguem alguns destaques dessa relação de Cazuza com O POVO.
(Foto: Divulgação)O Vida&Arte de 23 de agosto de 1989 apresentava as novidades e polêmicas do disco Burguesia. "As dificuldades, como não poderiam deixar de ser, foram muitas e quem já ouviu o disco diz que ele ficou longe de alcançar resultado de trabalhos anteriores de Cazuza"
(Foto: Divulgação)Matéria do dia 26 de março de 1990 narra os dias de Cazuza na Clínica San Vicente, no Rio de Janeiro. "Alimenta-se pela via oral, está consciente e as funções vitais estão dentro do padrão da normalidade"
(Foto: Divulgação)Em 8 de julho de 1990, o Vida&Arte prestou uma homenagem ao cantor e compositor falecido no dia anterior. "Cazuza, provavelmente, não quis ser símbolo de nada, nem da própria resistência, como acabou sendo pela força do destino"
(Foto: Divulgação)Na página de músico do O POVO, o jornalista Nelson Augusto fala do lançamento da trilha sonora do filme Um Trem Pras Estrelas, que conta com tema assinado por Cazuza e Gilberto Gil
Especial homenageia o legado musical de Cazuza 30 anos após sua morte, e mostra a atualidade do seu discurso.