“Pouco importa o que essa gente vá falar mal”. Voz gutural rasgando a laringe, pra lá de rouco, Cazuza entoou os primeiros versos da canção “Posando de star” — faixa que abre o álbum de estreia da banda carioca Barão Vermelho em 1892 — como uma profecia: “Falem mal”. Agenor de Miranda Araújo Neto rebentou ao mundo em 4 de abril de 1958, nos idos das tardes quentes e preguiçosas do Rio de Janeiro.
Filho do produtor fonográfico João Araújo (1935-2013) e da cantora Lucinha Araújo (1936 -), já nasceu Cazuza, moleque que mordeu a vida com dentes fortes e encheu a boca, lambeu os dedos. Símbolo do rock enérgico dos anos 1980, o cantor e compositor embarcou num trem pras estrelas com apenas 32 anos, em 7 de julho de 1990. Desses 30 anos passados, presentes, vividos, reverbera ainda a força inconformada da juventude que ecoa no timbre inesquecível.
"Quando ele foi para a escola e eu falei ‘Agenor’ ele nem ouviu. Expliquei para a professora: experimenta chamar de Cazuza. Ela chamou e ele veio correndo”, riu-se Lucinha ao relembrar, durante entrevista concedida ao jornalista Pedro Bial em 2018, a infância do filho. Cazuza, criado ouvindo Lupicínio Rodrigues, Noel Rosa, Maysa e Dalva de Oliveira, afeiçoou o corpo ao som — só admitiu o nome Agenor para si quando descobriu compartilhar o epíteto com o grande Cartola.
Cresceu bebendo as palavras de Caetano Veloso, Elis Regina e Gilberto Gil na fonte: seu pai fundou a gravadora das Organizações Globo, a Som Livre, em 1969. Foi o rock de garagem, entretanto, que fez do palco a morada de Cazuza. Leo Jaime, à época ainda Leo Guanabara, indicou o amigo para assumir os vocais de um até então quarteto surgido timidamente no bairro carioca do Rio Comprido, o Barão Vermelho. Começava ali, no primeiro ensaio entre Cazuza, Roberto Frejat, Guto Goffi, Maurício Barros e Dé Palmeira, o percurso artístico de um dos maiores letristas da música contemporânea brasileira.
Queen, Led Zeppelin, Janis Joplin, Joe Cocker, Big Mama Thornton, Van Halen, Angela Ro Ro e A Cor do Som se revezavam nas vitrolas e nas cucas mirabolantes de Cazuza e Roberto Frejat. “Eu acho que quando a gente conheceu o Cazuza — ou seja, no ensaio que ele foi participar —, a partir do momento em que ele começou a cantar a primeira música a gente percebeu que ele tinha a energia que a gente queria, ele tinha o astral que a gente queria e ele tinha um timbre de voz que era muito bonito. Combinava com o som da banda”, rememora o cantor e guitarrista carioca Frejat. “O Cazuza tinha o barato de tocar com punch, com energia, com muito gás. Isso bateu de primeira. Quando a gente tocou a primeira música com ele e deu um breque, ele fez uma firula bem bluseada. ‘Achamos o cara, é esse aí’”, complementa o principal parceiro de Cazuza em composições. Em 1982, com produção de Ezequiel Neves, o Barão Vermelho entrou em estúdio e gravou o hoje aclamado álbum homônimo.
“O disco foi gravado em dois fins de semana, quatro sessões. A gente chegou no estúdio e tocou como no ensaio, com as músicas que a gente tinha no repertório na época. Esse álbum tem uma coisa bem cronológica, é um disco em que o Ezequiel e o Guto Graça Mello (produtor musical) queriam muito capturar a nossa energia de tocar ao vivo. Ele tem uma ingenuidade, é muito bacana, muito gostoso. Eu tenho muito carinho até hoje porque é um retrato fiel de como a banda era naquele momento, com toda a nossa pureza de intenções e com um repertório que eu particularmente gosto muito”, continua Frejat. Sucessos como “Bilhetinho azul”, “Todo amor que houver nessa vida”, “Ponto Fraco” e “Down em mim” integram a obra que marcou a historiografia do rock brasileiro.
Sensual, provocador, irônico e dono de uma acidez certeira, Cazuza carregava no corpo os anseios democráticos de um País que aspirava a vindoura abertura concretizada em 1985, após as agruras da ditadura militar (1964-1985). “Cazuza vivenciou o Brasil que se retirava após muita mobilização, suor e sangue, dos anos tenebrosos da ditadura militar.
O poeta e compositor era símbolo do povo que queria ter voz, sem medo, participar da construção de uma nação com pluralidade de atores, do povo para o povo”, defende o historiador e vereador cearense Evaldo Lima.
“Em 1985, houve o show antológico do Barão Vermelho na primeira edição do Rock in Rio em que Cazuza cantou “Pro Dia Nascer Feliz” exatamente na noite anterior à eleição do presidente Tancredo Neves. Anunciou em palco o fim dos anos de repressão no País. Isso tem uma carga de valor social e político enorme.
Quando o artista faz jus ao seu poder transformador, convida o povo ao debate e ao protesto. Cazuza cantou o período de transição crucial para o nascimento do nosso jovem Estado Democrático de Direito. Precisamos sempre saudar os arquitetos da música brasileira que, num passado recente, como fez Cazuza, estabeleceram referências para novas vozes se erguerem contra a intolerância e o autoritarismo”, adiciona Lima.
Para a cantora e compositora cearense Mona Gadelha, Cazuza consolidou, na década de 1980, a possibilidade de escrever rock como poesia — já tão presente nas obras de Bob Dylan, John Lennon e Lou Reed.
“Nos anos 1980 a gente começava a ver o rock como uma música capaz de atingir um público muito maior, de chegar no mainstreaming. Começou com a Rita Lee em 1975. As músicas de Cazuza, Legião Urbana e Titãs vinham com conteúdo social muito grande. O Cazuza apresentou uma poética muito enriquecedora e contextualizada com esse começo da década de 1980, de uma transição política que misturava a esperança e o medo; uma poética muita crítica em relação aos acontecimentos e à cada esperança que foi adiada”, compartilha a também pesquisadora musical e mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
E acrescenta: “O Cazuza mostra que essa música transgressora, que essa música de origem negra que é o rock, podia se expandir de forma poética e bastante politizada, com uma mensagem sociopolítica muito forte da transgressão; da causa gay. Ele está no panteão dos grandes nomes da música brasileira”.
Em 1985, Cazuza abandonou os vocais do Barão Vermelho — numa saída “pra mim é tudo ou nunca mais” — e iniciou sua carreira solo com o álbum Exagerado, que abriga sucessos como “Exagerado”, “Mal nenhum” e “Codinome Beija-Flor”.
Ávido pela liberdade de amar e profundamente romântico, o carioca desaguou também no blues. “Eu sempre acreditei na tese do blues brasileiro, que é um blues com os famosos compassos do blues americano e com o nosso sotaque, com as nossas letras. Acho que, no Cazuza, a gente encontra realmente uma boa concepção desse blues brasileiro; um blues que salta o sentimento blue de uma dor, de uma tristeza, de uma força, dentro do compasso dos 12 acordes que caracterizam o blues americano”, retoma Mona Gadelha.
“Eu sempre tive uma identificação muito forte, uma proximidade e uma afinidade com o Cazuza por ser o blues uma das minhas principais referências. É uma música melancólica e doída, mas ao mesmo tempo é uma música com resistência, com esperança, é uma música que reage a essa dor com muita energia. Esse modo de cantar do Cazuza de forma muito visceral, muito verdadeira, de ser um intérprete com a alma, com o corpo, isso sempre me trouxe muita admiração. O Cazuza foi singular nas tiradas, na sofisticação”.
O segundo álbum solo de Cazuza, "Só se for a dois", foi lançado em 1987. Já com o diagnóstico de Aids, o cantor viaja aos Estados Unidos para tratamento naquele mesmo ano. Retorna ao Brasil e, em 1988, lança o LP Ideologia, com turnê dirigida por Ney Matogrosso que resultou no álbum ao vivo "O tempo não para"(1989).
Com toda a educação burguesa, criado no Leblon, Cazuza destilava terceiras intenções no seu exímio trabalho como letrista. “O Cazuza é atemporal”, defende a professora Hertenha Glauce, coordenadora do Grupo Mirante de Teatro Unifor, fã apaixonada pelo Cazuza desde a adolescência.
“Se a gente pegar letras como ‘Brasil’, por exemplo, elas se adequam perfeitamente ao 2020. Sempre muito afiado, Cazuza dizia as coisas certas nos momentos certos, principalmente porque ele era fruto da burguesia, ele era fruto dessa elite e podia criticar o que ele conhecia no cotidiano”, pontua. Hertenha coleciona todos os discos de Cazuza, do primeiro do Barão ao póstumo Por aí (1991), assim como biografias e até recortes de jornais. “Cazuza é de uma importância gigante”.
Cazuza lançou o LP "Burguesia" em 1989 e, já bastante debilitado, faleceu no Rio de Janeiro em julho de 1990. O compositor e guitarrista cearense Caike Falcão, nascido em 1994, cresceu ouvindo Cazuza, Legião Urbana e Engenheiros do Hawaii.
O artista acredita que a contribuição do astro carioca foi imensurável para a formação musical de gerações de instrumentistas. “Quando o Cazuza morreu eu não era nem nascido ainda, mas a década de 1980 influenciou totalmente na minha formação enquanto músico desde sempre. Para mim, hoje é muito natural falar e tocar essa galera em 2020, esses cantores que são ainda mais atuais. O Cazuza era um cara ácido, romântico, crítico”, destaca.
Membros da banda de rock surgida em 1985 Hanoi-Hanoi, o cantor, compositor e instrumentista Ricardo Bacelar soma-se aos comentários de Caike sobre a perpetuação do Cazuza ainda três décadas após a morte. “Um lado do Cazuza que as pessoas não conhecem é que ele era muito doce, muito carinhoso, abraçava e beijava os amigos, era tímido até. As coisas que o Cazuza escreveu marcaram gerações.O Cazuza representou o rock que, além de ser uma música, é um comportamento, um estilo de vida. Com essa sonoridade mais crua, visceral, o rock é protesto. Hoje, nós vivemos um falso conservadorismo e o Cazuza faz muita falta. Se vivo fosse, com certeza estaria escrevendo contra o autoritarismo, o fascismo, o descaso com a saúde pública”, encerra.
Nestes sete anos de carreira meteórica, o cantor e compositor carioca ganhou páginas e mais páginas de jornais entre críticas e louvores. Cantou um Brasil desigual quando a ditadura agonizava e o País se afogava em saudosismos vazios. Gozou o amor livre de homens e mulheres perante uma nação careta. Cazuza ousou ser quem era — “faz parte do meu show, meu amor”.
Episódio 2 – O baterista e fundador do Barão Vermelho, Guto Goffi, conta sobre o período de Cazuza à frente dos vocais da banda. Para saber o quanto você conhece do cantor, é só responder a um quiz.
Especial homenageia o legado musical de Cazuza 30 anos após sua morte, e mostra a atualidade do seu discurso.