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No rastro da pólvora dos decretos das armas
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No rastro da pólvora dos decretos das armas

| AGENDA PRESIDENCIAL | Governo Federal acelerou em fevereiro projeto de armar o Brasil. Via decreto presidencial, uma série de permissões a quem quer possuir armas foi concedida por Bolsonaro
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Impacto da postura armamentista do presidente no combate ao porte ilegal de armas é alvo de questionamento (Foto: Divulgação/Instagram)
Foto: Divulgação/Instagram Impacto da postura armamentista do presidente no combate ao porte ilegal de armas é alvo de questionamento

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) usou o último dia 13 de fevereiro para dar mais um passo na concretização da pauta armamentista, uma plataforma política e de segurança defendida por ele para o País.

Nesse dia, quatro decretos de 2019 foram alterados, conferindo mais permissões a quem deseja possuir e portar armas, além de ampliar o acesso a munições e registrar armamentos. O teor belicista desses instrumentos, que evitam o crivo do Congresso Nacional, se soma a outros movimentos do militar, desde que chegou à Presidência.

No entendimento governista, o avanço dessa agenda confere à sociedade mais condições de se defender. Bolsonaro e os seguidores se ancoram na máxima de que “o vagabundo já está armado”, faltando que o “cidadão de bem” esteja em igualdade de condições. A retórica mais recentemente foi incrementada com novo argumento, este de dimensão marcadamente política.

 

É o de que, armada, uma pessoa terá condições de se insurgir contra suposto tiranismo de governadores ou prefeitos. O pano de fundo da nova vertente de defesa é a pandemia de Covid-19 e as medidas de contenção do vírus impostas pelos Executivos municipais e estaduais.

Existem dois sistemas por meio dos quais é possível registrar dados sobre armamento no Brasil. Um deles é o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas de Fogo (Sigma), controlado pelo Exército Brasileiro. O outro se chama Sistema Nacional de Armas (Sinarm), e é gerido pela Polícia Federal (PF). Em ambos houve aumento do número de armas registradas.

Em 2019, o monitoramento da PF registrou crescimento de 65,63% em relação a dois antes. Um salto de 637,9 mil para 1,05 milhão. Na listagem do Exército, 1,1 milhão de armas de fogo constavam como tendo registro ativo, de acordo com dados de agosto do ano passado.

Impacto da postura armamentista do presidente no combate ao porte ilegal de armas é alvo de questionamento
Foto: Divulgação/Instagram
Impacto da postura armamentista do presidente no combate ao porte ilegal de armas é alvo de questionamento

Os CACs, sigla para caçadores, atiradores e colecionadores, são responsáveis por 496,1 mil do total contabilizado pelo Exército. Esta categoria de armamentistas, em 2019, possuía 225,2 mil armas registradas segundo o Sigma. Crescimento de 120%. Esses números foram extraídos do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e revelam um “efeito Bolsonaro” em curso.

Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o economista Daniel Cerqueira analisa em conversa com O POVO que o “liberou geral” vai no sentido de dificultar o controle e o rastreamento de armas, elementos imprescindíveis à solução de crimes.

Os dois sistemas de registro de armas citados nesta reportagem não compartilham informações de modo fluido, um foco de crítica de pesquisadores da área pelo agravamento do quadro de dificuldades. Promessa do presidente de interligar as duas plataformas ainda não foi cumprida.

“O conjunto dessas normas assinadas pelo presidente vão no sentido de um armamento absurdo e com potencial de fogo maior. Armas que antes eram de uso permitido só para as forças de segurança não serão mais. Houve um liberou geral. Se uma munição for resgatada numa situação de crime, muito dificilmente o Estado Brasileiro vai conseguir rastrear a origem dessa munição. A quem esse conjunto de normas beneficia?”, ele questiona.

Cerqueira destaca haver um excedente do mercado legal que transborda para as dinâmicas criminais. Morador do Rio de Janeiro, o economista se reporta ao trabalho da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Armas, desenvolvido no âmbito da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), para dizer que de 2005 a 2015 foram 18 mil armas roubadas ou extraviadas.

“Vai ter mais armas no mercado ilegal. Absurdo do número. Significativa parte do mercado legal termina caindo no mercado ilegal. Em 10 anos apenas no Rio de Janeiro, 18 mil armas foram roubadas apenas de empresas de segurança privada, apenas no Rio de Janeiro”, enfatiza o pesquisador, para quem as armas de fogo são “excelente instrumento de ataque”, não de defesa.

(Brasília - DF, 07/05/2019) Presidente da República, Jair Bolsonaro  assina o Decreto que dispõe sobre a aquisição, o cadastro, o registro, a posse, o porte e a comercialização de armas - SINARM e SIGMA.
Foto: Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 07/05/2019) Presidente da República, Jair Bolsonaro assina o Decreto que dispõe sobre a aquisição, o cadastro, o registro, a posse, o porte e a comercialização de armas - SINARM e SIGMA.

Afora o componente político implícito no armamentismo encorajado pelo presidente, Cerqueira também se atém ao fomento de milícias armadas pelo País, um tipo de grupo criminoso cuja atuação, segundo assinala, pode ser ainda mais prejudicial à sociedade do que as facções criminosas.

Se as facções entoam discursos contrários ao Estado, as milícias estão entranhadas no aparato público e se espalham pelos espaços oficiais de poder - casas legislativas municipais, estaduais e federais.

“Não estamos falando de garotos desgarrados portando AR-15. Estamos falando de pessoas com influência, de média idade, treinadas, operando na segurança pública e no mercado de vidas.” Para esta reportagem, O POVO conversou com três cientistas políticos e colheu o relato de dois deputados com pensamentos distintos sobre o tema. Boa leitura!

 

Jair Bolsonaro voltou a desrespeitar isolamento social e participou de manifestação neste domingo, 19
Jair Bolsonaro voltou a desrespeitar isolamento social e participou de manifestação neste domingo, 19

Armas e democracia: uma relação que Bolsonaro não consegue convencer

O sociólogo e cientista político da Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP), Rodrigo Prando, destaca que o debate sobre armas passa por teses do liberalismo clássico referentes ao direito do indivíduo, que dizem respeito a poder ou não atuar para garantir a proteção da família, por exemplo.

No outro polo da disputa de ideias estão postados os teóricos que chamam atenção para violência alarmante em grandes centros urbanos e que entendem que o aumento do número de armas em circulação acentuaria esse quadro.

"Sempre se retoma a ideia nos Estados Unidos, que está na Constituição americana, de que o povo armado poderia, se necessário for, destituir um governo tirânico. A gente sabe que quando isso foi escrito você vivenciava um outro período, um outro momento", assinala o cientista político.

Prando compara a antiga ideia estadunidense de que milícias seriam constituídas como uma força coletiva armada que poderia deter avanços autoritários, com o que o Jair Bolsonaro tem dito a apoiadores, que armados poderiam se contrapor a governadores e prefeitos.

"Lógico que há uma desconfiança enorme com esse tipo de colocação por parte do presidente ou dos bolsonaristas, até pelo pouco apreço que o presidente já verbalizou que tem em relação ao sistema político democrático", interpreta o sociólogo.

Doutora em Ciência Política e pesquisadora pelos laboratórios SCNLab (Mackenzie) e Doxa (Iesp-Uerj), Carolina Botelho afirma que os armamentistas constituem as franjas do movimento bolsonarista mais fiéis ao presidente.

"Foi com ela que ele se ajudou a se eleger e é com ela que tem apoio até agora. É nesse grupo ligado a questão das armas, e outras que a gente já viu, o núcleo duro do bolsonarismo, de pessoas completamente aficionadas por ele", afirma Botelho, para quem este núcleo já deu mostras de que não deve se diluir facilmente.

Diferentemente de setores do mercado financeiro que não veem mais em Bolsonaro o liberal que o presidente disse ser, nem em Paulo Guedes um ministro da Economia capaz de entregar resultados, Botelho sublinha que "o grupo armamentista, pelo contrário, é a base radical" e a "tendência é de que ele fique."

Cleyton Monte, cientista político vinculado ao Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem-UFC), analisa que o momento de cumplicidade entre Bolsonaro e o Centrão, grupo de partidos fisiológicos e associados a um modo clientelista de agir na política, acende no presidente um receio: o de ser visto como mais um do meio.

Monte diz que nesses casos e em outros, por exemplo vê a popularidade derrapar, é que ele tende a fazer acenos a esses segmentos, num modo de comunicar "olha, sou o Bolsonaro de antigamente".

"Sendo aprovado ou não aprovado, ele sai ganhando. Sendo aprovado, ele consegue sinalizar para sua base. Não sendo aprovado, ele vai dizer que tentou, mas as instituições foram contra", ele prossegue.

 

Rosa Weber destacou a inclusão de entidades que poderão fiscalizar votação
Foto: Nelson Jr./SCO/STF
Rosa Weber destacou a inclusão de entidades que poderão fiscalizar votação

A ministra do STF, Rosa Weber, atendeu a partidos de oposição e solicitou que o presidente explique os decretos. O plenário da Corte deve deliberar sobre a constitucionalidade das medidas em breve.

Outro ponto que dá combustível ao discurso de bolsonaristas, na avaliação de Monte, é um entendimento de que as policias militares cumprem sua função, mas o Judiciário, não. De que esse Poder falharia ao produzir impunidade.

"Você vê isso muito claramente na fala dos deputados que defendem essa liberação das armas. Você vai ver que se o estado democrático de direito não funciona, o 'cidadão de bem' tem de estar livre para defender sua vida, sua propriedade e sua família."

O novo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (L), fala ao lado do presidente Jair Bolsonaro (C) e do novo presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, durante entrevista coletiva no Palácio do Planalto, em Brasília, no dia 3 de fevereiro, 2021. - O Congresso do Brasil elegeu na segunda-feira dois aliados do presidente Jair Bolsonaro para chefiar o Senado e a câmara baixa, uma importante vitória para o líder de extrema direita que busca revigorar seus esforços de reeleição para 2022. (Foto de Sergio LIMA / AFP)
O novo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (L), fala ao lado do presidente Jair Bolsonaro (C) e do novo presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, durante entrevista coletiva no Palácio do Planalto, em Brasília, no dia 3 de fevereiro, 2021. - O Congresso do Brasil elegeu na segunda-feira dois aliados do presidente Jair Bolsonaro para chefiar o Senado e a câmara baixa, uma importante vitória para o líder de extrema direita que busca revigorar seus esforços de reeleição para 2022. (Foto de Sergio LIMA / AFP)

Decretos: a forma como Bolsonaro evita Câmara e Senado

Jair Bolsonaro (sem partido) editou mais do que o dobro de decretos no primeiro ano de governo, 2019, na comparação com a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em 2011. Foram 536 do militar contra 239 da petista. Uma variação percentual de 124,6%. 

Já em 2020, o presidente utilizou menos o recurso: 398 decretos assinados. O segundo ano do atual mandatário também fica à frente do 2012 da petista. Dilma naquele ano lançou mão do instrumento em 219 oportunidades. Neste comparativo, a variação percentual é de 81,7%.

Os números foram levantados por O POVO e têm como base o site do Palácio do Planalto, numa seção que abriga os decretos presidenciais (clique aqui). Este levantamento considerou as edições extras de cada um.

O decreto é um instrumento da prática político-administrativa por meio do qual o presidente pode regular ou detalhar leis que já existem. Numa compreensão política, é possível observar o uso frequente por governos sem bases sólidas na Câmara dos Deputados e no Senado Federal e que não possuam articulações políticas eficientes.

Dilma, como reconhece o próprio ex-presidente e aliado Lula (PT), não era habilidosa no trato político. Jair Bolsonaro já acumulou derrotas no Legislativo. O presidente emplacou um general para cuidar da tarefa, o ministro Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo). 

Existem, porém, os projetos de decretos legislativo, meio pelo qual deputados e senadores podem tornar nulo os efeitos de canetada presidencial. Foi o que aconteceu com o decreto 9.785/2019 que flexibilizou porte e posse de armas, uma das principais derrotas presidenciais no Senado.

O Supremo Tribunal Federal (STF), Corte mais alta do Poder Judiciário, também desarticulou iniciativa do capitão da reforma. Unanimemente, 11 ministros escolheram acatar ação protocolada pelo PT, determinando que o presidente não poderia extinguir conselhos mediante ato unilateral e tentando se livrar de qualquer discussão. 

Confronto das ideias: O decreto que facilita o acesso a armas, editado por Bolsonaro, é benéfico? Por que?

SIM
Deputado federal Heitor Freire (PSL):
Com certeza não será a menor burocracia para a aquisição de armamento legal e seguro que vai aumentar a violência no Brasil. Pelo contrário. Certamente teremos menos contrabando e outras formas ilegais de compra e venda. O que precisa ser dito para a sociedade é: o que aumenta a violência é o crime organizado, o tráfico de drogas, a agiotagem e tantos outros males. Os decretos vão melhorar o acesso para aqueles que querem ter pelo menos o direito a se defender caso venham a sofrer algum tipo de violência.

NÃO
Deputado estadual Renato Roseno (Psol):
Com 250 mil mortos pela Covid, depois de ter recusado e sabotado a possibilidade de aquisição de vacinas, com 14 milhões de desempregados e mais de 26 milhões de pobres, Bolsonaro quer armar sua base de apoio. É um projeto de milicianização para consolidar um golpe. Inspira-se em Trump e conta com o fanatismo que alimenta com sua rede de fake news e desinformação. A violência não será superada pela liberação de armas. O caminho para a paz é outro: combater o tráfico de armas e reestruturação da política de segurança. Se a violência é retorno da segregação, a paz somente será fruto da justiça.

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