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Por que a desbancarização ainda é um problema no Brasil
Economia

Por que a desbancarização ainda é um problema no Brasil

A concessão do auxílio emergencial expôs o problema da exclusão financeira no Brasil e trouxe à tona a necessidade de tornar o sistema financeiro acessível aos mais vulneráveis
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Mais de 23 milhões de brasileiros não têm conta em banco (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Mais de 23 milhões de brasileiros não têm conta em banco

A pandemia do novo coronavírus delineou a fisionomia das desigualdades sociais no País. Dentre os traços assimétricos escancarados, está a exclusão financeira, com mais de 23 milhões de brasileiros sem conta em banco, os desbancarizados. Uma população que ainda guarda o dinheiro em colchões, cofres caseiros e recorre a empréstimos de agiotas, mas saiu do limbo do mercado financeiro em razão da poupança digital compulsória para receber o auxílio emergencial, em abril deste ano.

Em maio, a Caixa Econômica Federal estimava que, do universo de 40 milhões de beneficiários, 23 milhões a 24 milhões eram desbancarizados. No início deste mês, o número destas contas subiu para 100 milhões. A instituição, entretanto, não informou quantos destes alcançados não eram correntistas em algum banco.

O contingente identificado pela Caixa, no início da crise, é bem superior ao computado pelo Banco Central. Segundo a entidade, em março deste ano, o Brasil tinha 166 milhões de pessoas físicas com algum relacionamento bancário ativo.

Em outubro último, esse número subiu para 177,4 milhões. São mais de 11 milhões de cidadãos inseridos no sistema. Todavia, em 2019, o Instituto Locomotiva já contabilizava 45 milhões de desbancarizados. As instituições, porém, não têm dados estaduais.

Informalidade

O trabalhador que não tem acesso a esses serviços e produtos, geralmente, recorre à informalidade e paga caro por isso, além da insegurança e risco de endividamento. No livro "Desafios do Sistema Financeiro Nacional: o que falta para colher os benefícios da estabilidade conquistada", os autores Alessandra Dodl e José Renato Barros (Editora Campus) apontam que a população baixa renda era indesejada pelo setor.

Na década de 1990, esses usuários buscavam os bancos para receber salários e pagar, principalmente, contas de água e energia. Porém, o custo operacional da chamada "boca do caixa" era superior à tarifa paga pelas concessionárias prestadoras dos serviços. Ou seja, esse público não era interessante para os banqueiros.

Enquanto isso, havia guichês voltados para pessoas jurídicas e clientes de alta renda. Do lado de fora, os pobres encaravam filas e esperavam mais pelo atendimento. Em alguns casos, as faturas de não correntistas eram recusadas e os desfavorecidos sentiam-se inferiorizadas.

Outros pontos são a burocracia e linguagem formal inadequada para dialogar com quem possui baixo nível de instrução, além da distância geográfica entre agências e comunidades. Com as unidades concentradas nos aglomerados urbanos, havia custos adicionais para o deslocamento.

Diante dos inúmeros obstáculos, recorrer a mecanismos informais era muito mais fácil. De acordo com os autores, a instituições deveriam desenvolver modelos flexíveis e cômodos que levassem os clientes de baixa renda a adotá-los, com produtos e serviços inovadores direcionados.

Fintechs

Esse movimento até vem ocorrendo com as fintechs, mas ainda é incipiente para ser inclusivo aos mais carentes. Um avanço recente foi o Pix — meio de pagamentos instantâneos gratuito para pessoas físicas. Mas o coordenador de Pesquisa e Incidência em Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil, Jefferson Nascimento, pondera que a necessidade de concessão do auxílio emergencial traz à pauta os aspectos que sustentam a exclusão financeira.

"A pandemia escancarou várias desigualdades. Uma delas foi a sociedade à margem do sistema financeiro e essa é uma questão ainda mais profunda do que parece", observa. "A população em situação de rua é elegível para receber o recurso, mas não tem como acessar internet e obtê-lo. Isso expõe que, mesmo com a possibilidade de bancos digitais, o desafio é muito maior para os mais pobres", enfatiza.

Ele acrescenta que a reforma tributária pode gerar mais taxações, mantendo essas pessoas excluídas, a depender do texto aprovado. Diante disso, defende um modelo mais justo com uma redistribuição da carga tributária para diminuir os impostos indiretos (sobre produtos e serviços) e aumentar sobre renda e patrimônio.

Exclusão

Para o coordenador do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP), da Universidade Federal do Ceará (UFC), Vitor Hugo Miro, o mercado financeiro é excludente e não facilita a entrada da camada social mais vulnerável, gerando privação de crédito e aquisição de bens e serviços.

Vitor destaca que houve avanços no País com o microcrédito, nos últimos anos, mas a modalidade alcança um contingente que tem alguma oportunidade de empreender. Como ficam os outros? O acesso à informação, educação financeira e inclusão digital serão fundamentais para mudar a realidade dos desbancarizados e sub-bancarizados.

O economista exemplifica que um estudante universitário consegue ofertas diferenciadas e custos menores, mas um trabalhador de baixa renda não tem a mesma chance. "É preciso informação, políticas de educação financeira, bancos mais acessíveis e linhas de específicas", defende. Uma possibilidade seria produtos para inscritos em programas governamentais, desde que comprovada a renda.

Vitor frisa que o Governo Federal tem, no atual momento, a conveniência de conhecer e mapear esse coletivo. Isto posto, os dados obtidos podem balizar políticas públicas e mecanismos sociais para corrigir essa distorção. Do contrário, com o fim do auxílio emergencial, esses brasileiros serão novamente esquecidos pelo mercado financeiro.

 

Pix é o pagamento instantâneo brasileiro. O meio de pagamento criado pelo Banco Central (BC) em que os recursos são transferidos entre contas em poucos segundos, a qualquer hora ou dia. É prático, rápido e seguro.
Pix é o pagamento instantâneo brasileiro. O meio de pagamento criado pelo Banco Central (BC) em que os recursos são transferidos entre contas em poucos segundos, a qualquer hora ou dia. É prático, rápido e seguro.

O que dizem as instituições financeiras

A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) informou que as instituições financeiras têm total interesse em atrair a população não bancarizada. Para isso, elas vêm desenvolvendo, ao longo dos últimos anos, diversas formas de ampliar a capilaridade de sua rede de atendimento e, consequentemente, aumentar o alcance de seus serviços e produtos.

Dentre elas, caixas eletrônicos, operações bancárias por telefone, correspondentes bancários, além de internet e mobile banking. A entidade destaca o avanço com as poupanças digitais da Caixa. "Seguramente, milhões desses novos clientes manterão suas contas e tendem a consolidar seu relacionamento com os bancos", diz.

A Febraban também acredita que a chegada do Pix deverá ser "uma poderosa ferramenta para impulsionar a bancarização no País, trazendo novos clientes para o sistema financeiro". "O PIX representará uma redução na quantidade de transações com dinheiro vivo, reduzindo custos operacionais, aumentando a rastreabilidade dos recursos e auxiliando a economia no momento em que é importante a retomada do crescimento econômico", complementa.

 

FORTALEZA,CE,BRASIL,03.07.2019: Artistas e produtores culturais se manifestam pedindo a continuidade dos centros culturais Banco do Nordeste, na sede do banco localizado na Avenida Santos Dumont. (fotos: Tatiana Fortes/ O POVO)
FORTALEZA,CE,BRASIL,03.07.2019: Artistas e produtores culturais se manifestam pedindo a continuidade dos centros culturais Banco do Nordeste, na sede do banco localizado na Avenida Santos Dumont. (fotos: Tatiana Fortes/ O POVO)

O que os bancos estão fazendo para mudar o cenário

Crucial para o desenvolvimento regional, o Banco do Nordeste (BNB) tem programas de microfinanças que são portas de entrada da população de baixa renda ao mercado financeiro. São eles: Crediamigo, microcrédito urbano e o Agroamigo.

No Crediamigo, que oferece capital de giro e investimento para micros e pequenos empreendedores, superou R$ 10 bilhões em aplicações até o último dia 18. O valor corresponde a 3,7 milhões de operações que beneficiaram toda a área de atuação do BNB, os nove estados da Região e o norte de Minas Gerais e do Espírito Santo.

No Ceará, os investimentos do Crediamigo neste ano superaram R$ 3,2 bilhões, valor equivalente a 1,3 milhão de operações. Já o Banco do Brasil informa que dispõe da "Conta Fácil", que pode ser movimentada logo após a abertura e oferece a opção fazer e receber transferências, pagar contas e "uma série de produtos e serviços bancários de forma simplificada".

A Caixa Econômica acentua que foram 100 milhões de contas digitais "na maior ação de bancarização da história brasileira. A Poupança Social Digital é gratuita e não possui tarifa de manutenção. Também é possível fazer até três transferências por mês sem custo adicional. A conta possui um limite de movimentação de R$ 5 mil por mês.

Dentre os privados, o Bradesco informa que lançou, em setembro deste ano, o Bitz, carteira digital que tem o apelo de bancarização. O aplicativo viabiliza pagamentos de contas diretamente do celular, além de outras funcionalidades, como transferência de valores entre contas Bitz, TEDs, recarga de celular, crédito, inclusão de cartões Alelo Alimentação e Refeição e pagamentos via QR Code em estabelecimentos que possuam máquina da Cielo.

O Itaú Unibanco destaca que o app Iti permite pagamentos e transferências sem contato (contactless), de forma instantânea, 24 horas por dia, sete dias por semana, para qualquer pessoa ou estabelecimento e sem nenhum custo. Para criar a conta, não é necessária a comprovação de renda ou de endereço.

As fintechs Inter e Nubank afirmam que trabalham para contribuir com a inclusão financeira. O Inter diz que oferece uma conta corrente 100% digital e gratuita, isenta de taxa de manutenção ou tarifas. "Assim, colabora com o acesso de milhões de brasileiros a serviços bancários". Segundo a empresa, são mais de 7,5 milhões de correntistas, 300 mil deles do Ceará. A instituição está presente em 99% das cidades brasileiras.

Segundo o Nubank, cerca de 6 milhões dos seus clientes nunca tinham tido acesso a um cartão de crédito antes. E, entre com mais de 55 anos, 15% tiveram o "roxinho" como o primeiro cartão de crédito. "São pessoas que passaram praticamente a vida toda sem acesso a uma ferramenta básica de crédito e que agora podem usar o seu cartão Nubank de uma maneira descomplicada e acessível", pontua a instituição.

 

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