Sem o fornecimento de gás natural via navio no Porto do Pecém, o Ceará deve enfrentar um período de crescimento modesto na oferta de gás. O cenário tem o potencial de gerar prejuízos a investimentos planejados para mudança de matriz energética de investimentos já instalados no Complexo do Pecém, além de inviabilizar ou atrasar a atração de novos.
Sem fornecimento por meio de navio regaseificador da Petrobras (após contrato encerrado em dezembro) e da Shell (que cancelou seu acordo de fornecimento), o Estado já viu duas termelétricas cancelarem investimentos e a transição energética de fontes fósseis para gás natural, como é o caso da termelétrica da ArcelorMittal Pecém, ficam prejudicadas.
Isso ocorre porque a Cegás, distribuidora de gás natural no Estado, agora só depende do volume recebido via tubulações terrestres da Transportadora Associada de Gás (TAG). Segundo a companhia, o abastecimento atual está garantido, não correndo risco para o mercado industrial, residencial e automotivo.
"A Cegás trabalha atualmente com seis supridores de gás atendendo a rede de distribuição, entre eles a Petrobras e a Shell. O volume atende a demanda existente e o crescimento projetado para até 2028", diz a empresa.
A empresa trabalha com planos de ampliação nos próximos quatro anos que incluem a expansão da oferta de gás e interiorização. Os números projetos, no entanto, não foram revelados.
Conforme O POVO apurou, o montante de gás natural que chega atualmente ao Estado via tubulação terrestre não chega a 1 milhão de metros cúbicos (m³).
Isso limita essa expansão, que seria facilitada caso a regaseificação da Shell se concretizasse. Estava previsto que a operação da Shell no Pecém ofertasse 9,5 milhões de m³.
Adão Linhares, secretário executivo de Energia e Telecomunicações da Secretaria de Infraestrutura do Ceará (Seinfra-CE), destaca que o principal o Ceará possui, que é a infraestrutura, com possibilidade de receber regaseificação "amanhã", pois os espaços já são estruturados e licenciados.
Sobre as termelétricas que ainda operam a carvão, Adão destaca que a legislação ainda pode permitir que elas participem de leilão de energia, apesar de considerar esse processo transitório irreversível, primeiro para o gás natural, depois para hidrogênio.
Ainda segundo Adão, a instalação da Portocém tinha o potencial de ampliar em dez vezes a receita da Cegás.
A expectativa agora, fica por conta da realização do próximo leilão de energia para instalação de uma termelétrica. O executivo destaca que o licenciamento de uma planta com projeto similar já está liberado, o que torna o Pecém candidato forte a ganhar novo investimento do tipo no próximo ano.
"Vivemos uma transição no mercado do gás natural, que está volátil em termos de preços, não oferecendo tanta segurança por conta da situação global, que prejudicou o Ceará com a Shell. Mas não desistimos de ampliar o mercado de gás no Ceará".
O que caminhava para ser uma evolução do complexo termelétrico do Pecém para modelo ambientalmente mais sustentável, com o encerramento de contratos de termelétricas a diesel e carvão mineral e o início de operação de uma grande planta movida a gás natural, se frustrou.
Em dezembro passado, foi confirmado que o Ceará perdeu investimento de R$ 4,2 bilhões da Portocém e o incremento de capacidade de geração de energia de 1.572 megawatts (MW), o que representa quase a soma de todas as térmicas instaladas até então (1.632 MW).
O consórcio Portocém, formado pela Ceiba Energy e o fundo de investimentos Denra, ambos dos Estados Unidos, venceram o leilão de energia para instalação de uma nova usina térmica, em agosto de 2021.
O fornecedor do gás natural seria a Shell e em maio de 2023, no lançamento da pedra fundamental, a cúpula do Governo do Estado celebrava a futura operação como mais uma jóia dos investimentos com foco em descarbonização.
O cenário, no entanto, mudou drasticamente desde aquele momento. A Shell anunciou que não forneceria mais o gás natural para a usina e, apesar do esforço da Ceiba Energy em arrumar outro fornecedor, os ativos do contrato de fornecimento de energia para o sistema nacional foram repassados para New Fortress Energy.
Em entrevista à Rádio O POVO CBN na última semana, Adão deu detalhes dos bastidores. Segundo disse, há uma “sensação de perda muito ruim", lembrando que além da frustração pela não concretização do projeto da Portocém, outra termelétrica do Complexo, a TermoFortaleza foi "hibernada" pela Eneva.
No seu entendimento, não se pode descartar que houve falta de tato da equipe do Governo do Ceará ao analisar o mercado e dialogar com os players do mercado do gás.
Reconhece ainda que, apesar da posição geográfica privilegiada do Porto do Pecém, ainda há um desconforto em relação ao abastecimento de gás. Apesar dos esforços, desde a época do governo Tasso Jereissati, de atrair uma operação de regaseificação terrestre da BP e da Repsol, nunca se chegou a um acordo.
Ao O POVO, uma fonte de mercado próxima ao Governo, destaca que houve um descompasso importante e que a gestão estadual foi "negacionista" em relação ao risco (depois confirmado) de saída da Shell do negócio. Quando quis reagir, foi tarde demais, pois teriam depositado toda a expectativa nessa empresa, sem prospectar um plano B.
"Infelizmente, pisaram na bola", diz o interlocutor, que teme ainda por outros grandes projetos que assinaram acordo para se instalar no Ceará nos próximos anos, citando o caso da refinaria da Noxis Energy.
"Se o Ceará não tomar cuidado, é o próximo a perder assim como foi com essa termelétrica. Projetos da envergadura de hidrogênio verde, Portocém, Noxis, não basta só monitorar, é preciso se articular muito", acrescenta.
CENÁRIO DO COMPLEXO TERMELÉTRICO DO CEARÁ
HIBERNAÇÃO DA UTE FORTALEZA (Eneva): Adquirida pela Eneva por R$ 489,8 milhões, a TermoFortaleza (UTE Fortaleza) possuía contrato de comercialização de energia com a distribuidora Enel Ceará.
A vigência do contrato iria 2033, mas a empresa solicitou à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) a antecipação do fim da outorga para 2023.
Dentre as justificativas está a indisponibilidade de novos contratos de fornecimento de gás natural.
FORNECIMENTO DE GÁS PELA PETROBRAS: Após 20 anos de vigência, o contrato de fornecimento de gás natural para a UTE Fortaleza pela Petrobras foi encerrado em 2023.
Desde o fim de 2022 já havia a perspectiva de que esse contrato não seria renovado pela decisão da gestão do Complexo do Pecém de reaver a estrutura do Terminal de GNL do Pecém, que era cedido para uso exclusivo do navio regaseificador da Petrobras.
A intenção é que a área passe por obras e seja usada na operação de hidrogênio e amônia verdes num prazo de 5 anos.
TERMOCEARÁ (Petrobras): Com capacidade de 220 MW, a usina foi adquirida pela Petrobras em 2005, por US$ 137 milhões. Em 2008, passou a operar com óleo diesel
e gás natural.
O projeto previa uso de gás natural das instalações da Petrobras no Rio Grande do Norte, que chegaria via tubulação da Cegás, mas a operação do terminal de regaseificação no Pecém facilitou o processo.
No entanto, em 2021, após problemas no fornecimento de gás natural via Pecém, a Aneel autorizou a TermoCeará a operar com óleo diesel até o fim de seu contrato, marcado para dezembro de 2024.
TERMELÉTRICAS A CARVÃO (Eneva e EDP): Os dois contratos de fornecimento de energia dessas plantas vencem em 2027. A usina Eneva Pecém II possui 365 MW de capacidade instalada. Já a usina EDP Pecém possui capacidade instalada de 720 MW.
Em setembro passado, a EDP vendeu 80% dos ativos para a Mercurio Asset.
PORTOCÉM (Ceiba Energy e Denra Shell): Em agosto de 2021, o consórcio Portocem, formado pela Ceiba Energy e o fundo de investimentos Denra, venceu o leilão para instalação de termelétrica a gás natural no Ceará.
O projeto teria fornecimento da Shell e investimento da ordem de R$ 4,2 bilhões, o segundo maior da história do Pecém. A capacidade de geração da usina seria de 1.572 MW, quase a soma de todas as térmicas do Cipp.
Em maio de 2023, foi lançada a pedra fundamental. Mas os planos foram frustrados após a saída da Shell e a Ceiba Energy não conseguiu outro fornecedor de gás natural.
Sem parceiro, a empresa negociou os ativos, que serão implementados no Pará e em Santa Catarina pela New Fortress Energy.