Socorro Oliveira, de 45 anos, atua na área de alfabetização na Escola Dom Bosco, no município de Choró, a 169 km de Fortaleza. A professora fez parte do time de docentes que elaboraram novo material didático para as escolas públicas do Ceará, em 2022. Ela conta que o objetivo, durante a produção dos livros, era fazer com que os alunos se sentissem como protagonistas do próprio aprendizado. O material ainda foi adaptado para a realidade dos alunos cearenses, respeitando a linguagem e abordando referências regionais.
Os componentes curriculares abordados nos materiais englobam as áreas de língua portuguesa, matemática, ciências, história e geografia. Foram mais de 250 mil livros destinados a estudantes do ensino fundamental e mais 15 mil para professores. O material foi elaborado em parceria entre a Secretaria de Educação do Ceará (Seduc) e a ONG Nova Escola.
A professora conta que, atualmente, a Educação no Ceará enfrenta desafios. Passados dois anos sem que os alunos tivessem acesso às salas de aula, em decorrência da pandemia da Covid-19, os educadores cearenses agora se empenham para modificar as formas de lecionar, alinhados ao novo material didático. Também atuando na formação de docentes, Socorro Oliveira atende professores dos municípios que compõem a Coordenadoria Regional de Desenvolvimento da Educação 12 (Crede 12): Choró, ibicuitinga, Ibaretama, Boa Viagem, Quixadá, Quixeramobim, Madalena e de Banabuiú.
O POVO - Você teve alguma outra experiência de publicação de livros? Como você foi selecionada para ser uma das autoras dos novos livros didáticos adotados pelo Estado?
Socorro Oliveira - Eu já tinha tido uma experiência anterior com essa questão de produção de material didático. Em 2017, a Seduc trabalhava com um material intitulado "Pé de Imaginação". Esse material foi elaborado por uma equipe, que era coordenada pela Anália Simonetti e pela Silvia Queiroz. Foi a primeira proposta de material estruturado do Estado. Passaram-se alguns anos, eles perceberam que era importante fazer uma revisita ao material, porque os alunos estavam mudando, nós estávamos avançando nos índices, os alunos já estavam em um nível mais elevado, a gente já podia pedir outras coisas aos alunos.
Em 2017, o material "Pé de Imaginação" recebeu uma repaginada. Eu recebi o convite da Seduc para fazer parte da revisão desse material. Nós éramos quatro pessoas. Cada uma ficou com um bimestre, porque era um material estruturado em quatro períodos, tanto o material para o aluno, quanto o material para o professor. (Em 2020) Veio o processo seletivo da Nova Escola. Na época, você enviava uma carta de intenções dizendo o porquê que você gostaria de participar da produção desse material e, em seguida, você era selecionada pela produção. Foi assim que eu fui selecionada para a área de língua portuguesa. (Essa área) Recebeu 182 inscrições e foram selecionadas quatro autoras: eu, Socorro, aqui do Choró; Jocyara Albuquerque, de Coreaú; Aurinete Nogueira, de Fortaleza; e Gerviz Fernandes, de Tianguá. Nós participamos na produção dos materiais para as séries do ciclo de alfabetização e do terceiro ano. No Ceará, é considerado como parte do ciclo os primeiros e segundos anos do fundamental, já o terceiro entra no processo para dar continuidade.
OP - O que você propôs para os novos livros didáticos? Pode contar exatamente no que consiste seu trabalho?
Socorro - Nós recebíamos as demandas de trabalho, que era assim: eu recebia uma série de sequências de atividades para o terceiro ano. Na semana seguinte, a Nova Escola me mandava outra demanda de trabalho, dessa vez para o segundo ano. E, assim, nós íamos produzindo esse material. Sempre era a Nova Escola que determinava o que nós íamos produzir. Essa produção foi totalmente inédita? Nem tudo. A revista Nova Escola tinha alguns planos de aula, alinhados com a BNCC (Base Nacional Comum Curricular). Só que eram apenas planos para serem executados, com atividades práticas. (Os planos abordavam) O aluno como protagonista, e a gente utilizou muito essa questão de metodologias ativas. A ideia era trazer isso para um material físico. Nós fomos pioneiros nesse sentido de trazer essas ideias de atividades práticas e consolidar isso dentro de um material escrito.
Quando eu falo que nem tudo era inédito, eu me refiro apenas a uma questão inicial. Então, o que competia aos autores cearenses? Era analisar esses planos e adequar ao nosso documento. O Estado do Ceará tem o DCRC (Documento Curricular Referencial do Ceará), que foi elaborado à luz da BNCC. Ele é o nosso currículo, ele é a nossa identidade. Esse documento é o que precisa ser valorizado aqui no Estado do Ceará.
Alguns dos planos de aulas (fornecidos pela Nova Escola) eram com base em uma proposta nacional. A gente tinha que transformar isso para nossa realidade. Fazer as propostas com base nas habilidades do documento do Estado e deixar com a nossa cara. Regionalizar, compreender, entender e deixar ele de modo que fosse uma Educação em Contexto. O que é isso? É aquela educação em que, um aluno que mora no litoral, estuda o que é referente a ele. O que está no campo, recebe a educação do campo. O nosso desafio foi justamente esse: transformar algo que era dado como comum, em algo que servisse para todos, que servisse para nossa realidade.
Nós, autoras, atuamos na produção dessas atividades partindo somente das habilidades e íamos criando todo o roteiro. O que foi importante: quem participou disso era professor. Eu era professora, estava atuando. A ideia da Nova Escola de selecionar professores de sala de aula foi justamente garantir que a voz que estava dentro da escola, de fato, estivesse na produção de um material que retornaria ao profissional. Foi uma produção realmente inédita, por que geralmente (na elaboração de livros didáticos) são chamados especialistas, professores doutores. Mas têm coisas que nós, (professores de escolas) gostaríamos que chegassem até nós.
OP - Tem algum exemplo prático dessa readequação?
Socorro - Nós fizemos uma adequação em relação à linguagem nacional para a linguagem do Ceará. Nós priorizamos textos e autores cearenses, os nossos dialetos e aquilo que é próprio do Ceará. A adequação a que nós nos referimos, a questão da regionalidade, é do Ceará como um todo, e não algo específico de cada região do Estado. A título de ilustração, quando estávamos trabalhando em uma lista de frutas, nós queríamos incluir as frutas do nosso Estado e incluímos a siriguela. “Mas o que é siriguela?”, perguntaram os nossos consultores [da Revista Escola], que eram de São Paulo. Então é muito voltado para o nosso vocabulário.
OP - O diferencial dessas novas produções são as referências regionais. Por que é importante que o material didático tenha isso?
Socorro - Na verdade, apesar de sermos um Estado, nós temos múltiplas realidades. É importante zelar pela aprendizagem significativa. Essa aprendizagem vem justamente quando ela parte da minha realidade. Foi uma questão mesmo de prática docente, voltada para um novo paradigma. Eu considero que a gente tem um novo divisor. Nós procuramos levar essa questão, de uma situação significativa de aprendizagem, levando em consideração as diferentes realidades do Ceará.
OP - Os livros têm a proposta de fazer com que os alunos sejam "protagonistas na construção do próprio conhecimento". O que isso significa? Como tem sido a receptividade dos alunos a essa nova abordagem do material?
Socorro - Essa questão das metodologias ativas, que a gente zelou para que acontecessem, é um processo bem amplo e que possui a característica de que o aluno é o principal ator do seu conhecimento. Eu, professora, atuo como mediadora. É por isso que nós temos o material do aluno, que é aquele que o aluno vai desenvolvendo as atividades propostas. Mas nós temos um outro (o material complementar de Atividades de Sistematização [ATS]), cujo processo criativo também foi realizado por nós professores. Cada atividade que o professor vai realizar, ele tem toda uma orientação didática. Ele tem toda uma teoria que ampara essa prática que ele vai executar.
A gente zelou por isso, para fazer com que o aluno se comprometa com sua aprendizagem. Eu, como professora, vou fazendo propostas, e os alunos vão participando, executando e vão, de fato, construindo esse conhecimento. O que que a gente busca com isso? Estimular a autonomia dos nossos alunos, mesmo em processo de alfabetização. É isso que a gente zela hoje: a questão da autonomia e o engajamento dos alunos na produção de seu conhecimento.
O que eu posso te dizer desse momento pós pandêmico: nós estamos enfrentando muitos desafios. Nós não podemos negar que esses alunos ficaram dois anos sem receber nenhuma orientação direta. Eles recebiam as atividades em casa, os pais orientavam, e eles respondiam. O material foi proposto em um momento em que nós estávamos no auge do nosso desempenho. A gente tinha alunos excelentes, um desempenho excelente e, de repente, isso parou. Passamos dois anos sem eles terem acesso à escola. O único viés de possibilidade de aprendizagem que a educação de classes populares tem: a escola.
(Agora) É um público diferente de dois anos atrás. Hoje a Seduc trabalha com a formação de professores para poder trabalhar o material voltado para a recomposição das aprendizagens. Em um curso normal, em uma situação normal, o material estaria aí a todo vapor. Agora, nós temos algumas dificuldades dentro do ciclo de alfabetização. Isso leva a Seduc a estar fazendo essa proposta de formação para professores por áreas, para poder fazer essa recomposição.
OP - Ensinar outras pessoas é a base da sua profissão. Durante o período de produção e agora que o material já está sendo utilizado, a senhora aprendeu algo que vai levar para a vida?
Socorro - Não tem como você passar por um processo como esse e você, de fato, não aprender. No pessoal, sempre, mas profissionalmente é muito grandioso você participar de uma coisa como essa. De repente você participa de uma engrenagem imensa. Quando você pensa no currículo, na aprendizagem, as habilidades que você tem que desenvolver, e você se vê como professor ali. O sentimento que eu tenho é esse, de uma pessoa que percebeu toda essa engrenagem, que vivenciou tudo isso na teoria ao longo de muitos anos de experiência como professoras e no final você está ali também, operando, ensinando, fazendo, redimensionando, fazendo de outro jeito. É uma situação extremamente gratificante participar como professora de tudo isso.
Na nossa vida de professor a gente estuda muito, muito mesmo. A Silvia Gasparian Colello, professora da Universidade de São Paulo (USP), disse uma vez que a vida do professor é: de tudo que você estuda, 30% vai para a prática. Quando você tem uma oportunidade como essa, de tudo que você estuda se materializar, você percebe o impacto que isso tem na sua prática e na prática de seus colegas. Eu me sinto extremamente grata e feliz por esse processo criativo e pelo processo de receber isso dentro da minha sala e de ter colaborado com meus colegas professores, dentro da minha escola, dentro da minha Crede, dentro da formação do Estado.