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Silvana Barros: A flor e o horror: a infância que o Brasil não protege
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Opinião

Silvana Barros: A flor e o horror: a infância que o Brasil não protege

A rosa do povo nasceu sob o peso da guerra e das ditaduras. A flor drummondiana resiste, mas sofre. Hoje, no Brasil, essa flor tem o rosto de uma criança. A infância foi lançada à cena da morte
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Silvana Barros (Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Silvana Barros

"Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto."
- Carlos Drummond de Andrade, A Flor e a Náusea, A rosa do povo (1945)

Preparava o encontro do grupo de literatura sobre o Dia D de Drummond, poeta que soube ver beleza em meio ao horror, quando as cenas do massacre no Rio me assaltaram. "Crianças e adolescentes, de luvas, em cima de picapes, ajudando a transportar corpos", descreveu Cecília Oliveira, do Instituto Fogo Cruzado. O contraste é brutal: a flor que rompe o asfalto, os corpos que caem.

Publicado em 1945, A rosa do povo nasceu sob o peso da guerra e das ditaduras. A flor drummondiana resiste, mas sofre. Hoje, no Brasil, essa flor tem o rosto de uma criança. A infância foi lançada à cena da morte. Crianças sustentam nos braços o peso de uma sociedade que falhou em protegê-las. O Estado se ausenta e transfere às vítimas a responsabilidade pela própria sobrevivência.

Winnicott nos ensinou que a sobrevivência emocional depende de um ambiente suficientemente bom. Quando o ambiente falha, instala-se o desamparo. O Estado, que deveria funcionar como continente, torna-se fonte de trauma. A violência atravessa o espaço físico e psíquico, e o que deveria conter passa a destruir. Em territórios marginalizados, decide-se quem pode viver e quem pode morrer. O abandono não é acidente: é método.

Winnicott dizia que o brincar é o espaço onde o mundo pode ser recriado. A flor de Drummond é metáfora das crianças que resistem nas bordas da cidade, que ainda brincam, improváveis e vivas.
Ver corpos, tocar a morte, sentir o cheiro do sangue. O excesso de realidade destrói a capacidade de brincar e de sonhar.

Quem consegue pensar em crianças brincando quando a sociedade permite que convivam com massacres e naturaliza a presença da morte como parte do cotidiano? Djamila Ribeiro lembra que a violência se prolonga no silenciamento: a infância é duplamente ferida - pelo trauma e pelo silêncio. Oferecer escuta é devolver existência simbólica a quem foi reduzido à violência. Quem possibilitará o direito ao sonho e à brincadeira a essas crianças?

Diante de tamanha desumanização, a psicanálise é chamada não a interpretar, mas a testemunhar e denunciar. Como Drummond, seguimos vendo flores nascerem no asfalto - sujas, feridas, mas vivas. É nelas que ainda podemos apostar- na delicadeza que resiste, na experiência coletiva dos que suportam a violência da história. Que a psicanálise possa acolher o indizível dessas experiências como um lugar de resistência ao desamparo social.

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