Ela fala como se os fatos fossem lembrança fresca, da vida de agora. Lucinha Araújo, 83, vai narrando, assim generosa em detalhes e em coração, quase que para guardar, proteger, parar o tempo e manter vivos as palavras e os instantes com o filho único, Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza. Num dia 7 de um mês também 7, como será amanhã, há 30 anos atrás, o rebento morria de Aids aos 32 anos, no auge da carreira. Na entrevista a seguir, Lucinha conta que, mesmo apegada às recordações, tratou de esquecer-se deste dia. Prefere orgulhar-se do quão emblemático foi Cazuza mostrar a cara e falar abertamente sobre um vírus que era (e ainda é) envolto em preconceito. Por isso, reconta as histórias, rememora as peripécias, remonta diálogos inteiros com seu menino - que depois, na Sociedade Viva Cazuza, viraram muitos. Crianças com HIV são acolhidas com a dedicação de Lucinha e o recurso dos direitos autorais das canções de Cazuza. Assim, a mãe faz valer e segue guardiã da coragem de seu exagerado que partiu (cedo!) num trem pras estrelas.
O POVO - Li em algumas entrevistas que a senhora disse ter sido rígida na criação do Cazuza, ao longo da infância e início da adolescência. Como era essa rigidez?
Lucinha Araújo - Pois é, é temperamento. Eu só tive um filho, coitado. Então, joguei todas as minhas expectativas em cima dele. E, às vezes, eu fui rígida demais. E fui mãe muito jovem, com 21 anos. Então, eu tinha casado um ano atrás, e o João (Araújo, esposo, falecido aos 78 anos, em 2013) estava em luta pra vida, pro começo das nossas vidas. Então, eu cuidava mais dele, do que o pai, que trabalhava o dia inteiro. Eu queria que ele fosse o mais bonito, o mais bem vestido, o primeiro aluno da escola. Tudo o primeiro. Claro que, hoje, eu vejo que isso foi uma babaquice. Mas eu queria tudo isso pro meu filho. E ele excedeu a minha expectativa ao contrário, porque ele foi uma pessoa tão importante, tão genial, que isso, hoje em dia, é que eu vejo que não importa se tirou 10 no colégio ou não tirou. O que importa foi o legado que ele deixou pro Brasil.
OP - Em que momento a senhora viu que não dava para segurar o Cazuza?
Lucinha - Foi mais ou menos aos 15 anos que ele começou a dar defeito (risos). Ele me levou à loucura. Eu não fiquei maluca porque eu tenho a cabeça muito boa. E o pai dele, como não estava em casa, estava trabalhando, ficava tudo em cima de mim. Dos 15 aos 18 ele botou pra quebrar. Mas, fazer o quê? Filho único, todo mimado. E ele era muito inteligente, que não cabia dentro da cabeça dele tantas perguntas, tantas indagações. Hoje em dia, eu entendo mais o que ele fez. Mas na época, eu ficava apavorada. Porque eu fui criada num colégio de freiras, o Sacré-Coeur de Marie (em Copacabana, Rio de Janeiro), e era filha do meio (de três irmãs), era ótima aluna, tudo dava certo, casei com o meu primeiro namorado. Aí, você imagina cair uma Cazuza em nossa vida? Foi uma coisa de louco, mas, graças a Deus, eu tive o discernimento de aceitar. Ele era muito meu amigo, a gente era super amigo. Ele tinha um outro tipo de amizade com o pai. Comigo era meio bagunça a nossa amizade, ele me mandava à merda com a maior desfaçatez. E o pai, não, era uma coisa de respeito. Com o pai ele não brincava, os dois se amavam profundamente, mas dentro do maior respeito. Cada um fazia do seu jeito, mas o amor era o mesmo.
OP - Era o plano ter filho único, Lucinha?
Lucinha - Não consegui ter mais, eu tive problema no parto. E aí depois eu queria ter… A minha conta era de cinco filhos. Agora, também, se eu tivesse tido cinco filhos como o Cazuza, eu iria acabar numa cadeira de rodas (risos). E aí foi isso. Ele não gostava de ser filho único, não, mas brincava: “Eu nasci, fechei o caminho pra todo mundo, não quero dividir nada com ninguém”. Eu ainda fiz tratamento pra ver se tinha mais filhos, mas não consegui, infelizmente.
OP - A senhora também cantava, chegou até a gravar discos...
Lucinha - Foi. O Cazuza me dava a maior força. Ele achava que eu era a maior cantora do Brasil. Aí eu retrucava: “Deixa de ser, mentiroso, você sempre disse que era Dalva de Oliveira”. Aí ele: “Não, eu estou dizendo cantora viva. Dalva de Oliveira já morreu” (risos). Mas foi uma carreira muito rápida. Eu sei que eu canto bem, mas é uma carreira difícil. Imagina eu, com marido, com filho, ia viajar o Brasil inteiro, largar tudo.
OP - Como foi ver esse despertar do Cazuza artista?
Lucinha - Ele foi criado em berço esplêndido da música popular brasileira. O pai nunca teve outro emprego desde os 16 anos que não fosse em gravadora, no meio artístico (João Araújo fundou a Som Livre, em 1969), com artistas. Então, o Cazuza não tinha mitos, ídolos. Foi criado com Caetano Veloso pegando ele no colo, os Novos Baianos, Jair Rodrigues. E pra ele foi uma coisa natural. Ele foi trabalhar com o João, pra fazer release dos artistas. E, pra mim, eu sabia que ele cantava, mas nunca pensei. A primeira vez que eu vi ele cantando num palco eu tive um surto. Fiquei louca. E meu marido tava viajando, quando ele chegou que eu contei, o João falou pra mim: “Ah! Agora, é filho seu, pra você vai ser o maior cantor do Brasil, o maior isso, o mais bonito…”. Eu digo: “Mas é, João, eu quero que você veja. Ele é maravilhoso”.
OP - E a senhora achava que ele ia ser o quê?
Lucinha - Eu achava que ele ia ser arquiteto. Ele adorava desenhar, e fazia cidades imaginárias. Você sabe que ele desenhava todos os países do mundo à mão livre, sem olhar o mapa? Ele adorava geografia. Ele fazia cidades fantasmas, aí botava quantos habitantes tinha, renda per capita. Eu sempre pensei isso. Agora, cantar ele não cantava na minha frente. Os amigos foi que vieram me falar. O Léo Jaime foi o primeiro que falou: “Lucinha, seu filho é maravilhoso”. Foi logo assim que o Léo Jaime chegou no Rio de Janeiro, e foi o Léo que descobriu. E aí, foi uma grata surpresa. É muito melhor do que você fazer sucesso, é ver seu filho fazer sucesso. Foi maravilhoso pra mim.
OP - Tem alguma música dele, entre tantas que marcaram gerações, que a senhora tem um apreço maior?
Lucinha - Dependendo do meu estado de espírito, eu gosto de uma. Claro que eu tenho as minhas prediletas. Eu gosto muito de “Um Trem pras Estrelas” (álbum “Ideologia”, 1987), que ele fez com o Gilberto Gil, e eu acho uma coisa linda. E porque o Cazuza dizia sempre uma coisa que, antes de ele ficar doente, ele cantava os amores desvairados, e que, depois que ele ficou doente, ele parou de olhar pro próprio umbigo e passou a cantar o Brasil. Dá pra notar direitinho esse corte na carreira dele, nas letras dele. As primeiras músicas eram sobre amores, sobre decepções. Quando ele soube que estava doente ele passou a cantar o Brasil e fez “Um trem pras estrelas”. As músicas todas tinham um cunho social: “Milagres” (álbum “Maior Abandonado”, Barão Vermelho, 1984) que é uma música que acho linda que ele gravou com a Elza Soares. E “Brasil” (álbum “Ideologia”, 1987), e “O Tempo Não Para”, e muitas.
OP - A obra do Cazuza ainda é muito atual, principalmente nessa parte que fala do Brasil. Como a senhora vê a obra do seu filho 30 anos depois da morte dele?
Lucinha - Eu vejo que o Brasil ainda não tomou vergonha. Porque aquela frase “Brasil, mostra a tua cara”, o Brasil não mostra a cara dele, a música permanece atual 30 anos depois.
OP - Tem uma cena antológica de um show em que o Cazuza cospe na bandeira do Brasil. Como a senhora vê esse episódio hoje?
Lucinha - No dia, eu tive uma coisa né. Eu quase tive um troço quando eu vi ele fazer aquilo. No dia seguinte, a imprensa toda me telefonou. João não tava em casa e eu que atendi. Aí eu: “Não, são pétalas de rosas que jogaram nele”. Jogavam muitas rosas no palco, eu disse que eram pétalas de rosas que ele jogou na bandeira. Eu não ia dizer que sim, que ele ia ser preso. Mas aí ligaram pra casa dele, e ele: “Eu cuspi sim, e cuspiria outras mil vezes, enquanto o Brasil não tomar vergonha na cara”. Olhe! Foi uma coisa, eu quase tive um... Eu falei: “Você vai ser preso. É isso que você quer?”. Mas depois ele escreveu um texto ma-ra-vi-lho-so que O Globo (jornal carioca) publicou, e foi lindo. Eu tenho até na minha casa no Rio (durante a entrevista, Lucinha estava em Angra) a transcrição desse texto na parede. E o texto continua super atual.
Lucinha - Eu lancei três livros, o primeiro chamava-se “Cazuza, Só as Mães São Felizes” (escrito por Regina Echeverria, 1997), que deu origem ao filme (“Cazuza - O Tempo não Para”, 2004). O Filme é muito bom, vale a pena. Depois, fiz um chamado “Cazuza -Preciso dizer que te amo” (escrito por Regina Echeverria, 2001), que eram todas as letras dele inclusive as (78) inéditas, e entrevistas com parceiros. É um livro muito interessante, até está esgotado. E o terceiro é sobre o meu trabalho, chama-se “O Tempo não Para” (2011). Eu encerrei o ciclo com esses três, que eu expliquei tudo. Mas tem algumas letras que estão sendo musicadas, e que eu pretendo lançar o CD. Mas agora com essa pandemia, eu fiquei meio assim, inclusive pra fazer a homenagem do aniversário de morte. A gente tinha mil projetos, e nada a gente pode fazer, inclusive lançar o CD. O Rogério Flausino (vocalista da banda mineira Jota Quest) fez música, tem um monte de música já pronta. Se deus quiser vai ficar pra janeiro (de 2021), que aí eu vou começar tudo de novo.
OP - A senhora se casou muito jovem, teve só um namorado. E aí seu filho dizia abertamente que era bissexual. Como foi para senhora aceitar isso?
Lucinha - Eu tive. Você faz tudo por amor. Não era o que eu queria pra ele. No dia que eu fui falar com ele, conversar sobre isso, eu disse: “Não é isso que eu quero pra você, mas se você quer, que você seja feliz. Eu aceito qualquer coisa vinda de você. Só acho que é um caminho muito duro, as pessoas vão criticar você”. Aí ele: “Mas eu não importo a mínima. A vida é minha, eu faço dela o que quiser, você que fica aí se importando”. Eu respondi: “Ai de quem abrir a boca pra criticar isso, que eu tô aqui pra contestar”. Ele disse: "Eu não acho que é um caminho de flores, mas que a gente tem é de ser feliz na vida". E cada vez eu penso mais nisso. Quanto mais velha eu fico, mas eu penso que ele tinha razão.
OP - Como era aquela década em relação a Aids, que se falava ou o que se velava? A senhora tinha medo pelo Cazuza, antes mesmo de um diagnóstico?
Lucinha - Eu sempre tive medo. Fiquei preocupadíssima com os primeiros casos que eu soube. E aí, falei pra ele. E ele, daquele jeito dele, disse: “Mãe, deixa de ser ridícula. Isso é coisa de gente promíscua. Eu não sou promíscuo. Esquece. Tira isso da sua cabeça, deixa de ser boba”. Era o que se pensava na época e eu tirei da minha cabeça. Um ano depois, foi que a gente descobriu tudo, infelizmente. Foi uma coisa muito triste, tenho muita pena, porque tenho conhecidos que estão com a doença a 30 anos e estão vivos até hoje. E vejo minhas crianças como estão bem, na Sociedade Viva Cazuza. Todas nasceram no HIV, todas herdaram de suas mães o HIV e tomam os remédios, são bem tratadas e estão bem.
OP - E quando veio o diagnóstico, como foi?
Lucinha - O médico nos chamou primeiro. Ele começou a ter umas febres e ele foi ao clínico. E aí mandou fazer um exame. Me lembro que era um sexta-feira, ele ligou pro João e falou que queria conversar com a gente. E aí fomos só nós dois lá. Ele falou: “Olha, o filho de vocês foi tocado pela Aids”, lembro que ele falou essa frase. Nós saímos de lá os dois desesperados, sem saber o que fazer. O João disse que o médico que tinha que falar isso pra ele. “Ele é um homem feito, tem 28 anos, se ele souber por nós, ele vai perder a confiança em você que é o médico”. Aí, no dia seguinte, ele foi ao médico sozinho, não quis que ninguém fosse. E o Ezequiel Neves (amigo da família) foi buscar ele na porta do médico, lá no Leblon. Ele falou pro Zeca (Ezequiel): “Zeca, eu vou morrer, eu tô com Aids”. O Zeca falou: “Que isso, imagina, vai morrer nada. Vamo pro estúdio para acabar de mixar teu disco”. Ele tava gravando um disco, acho que era o “Exagerado” (1985 - na verdade, pela data do diagnóstico, o disco era “Só se for a dois”, de 1987). Ele falou: “Não, eu vou pra casa dos meus pais, onde tudo começou, onde começou a minha vida. porque nesse momento eu quero os dois”. Ele foi andando a pé do Leblon a Ipanema, e nós já estávamos em casa esperando. A gente só fez chorar os três. O João dizia pra ele: “Você não vai morrer, porque eu não vou deixar, eu vou morrer céus e terra, mas você não morre, porque eu não quero que você morra. Eu vou ficar pobre, eu vendo tudo, eu vendo minha alma ao diabo, mas você não morre”. Até o último momento, acreditei que fosse acontecer um milagre.
OP - Numa época em que muitas famílias ou por preconceito ou por vulnerabilidade abandonaram quem recebia o diagnóstico, vocês acolheram o Cazuza. A senhora acha que a família ter acolhido serviu de exemplo, ajudou de alguma forma a diminuir o preconceito
Lucinha - Eu acho que é fundamental a família. Eu espero que tenha, sim, servido. Eu sempre aconselhei a todas as mães que me procuram até hoje pra falar sobre isso: “Olha, amor é melhor do que remédio”. Não tem nada melhor que amor, e não faltou pro meu filho isso. Tenho minha consciência tranquila. Tenho muita pena, se eu pudesse trocar de lugar com ele, eu tinha trocado. Eu falei isso pra ele. Falei pra ele: “Quando você ficar com raiva da vida, você me xinga, pode fazer qualquer coisa, não tem importância”.
OP - Vi que a senhora era contra que ele falasse abertamente sobre o diagnóstico, ainda que houvesse muita especulação. Por que a senhora era contra?
Lucinha - Ele estava no auge da fama, e fiquei achando que os fãs iam se afastar dele, as pessoas iam falar. Era uma doença com muito preconceito. Eu pedi pra ele pensar bem antes de fazer aquilo. Ele me disse: “Não, mamãe, eu vou dizer uma coisa a você: uma pessoa que canta ‘Brasil, mostra a sua cara’ não pode esconder a sua num momento desses. E eu vou e vou falar”.
OP - À luz da história, de tudo que veio depois da entrevista pro Zeca Camargo (fevereiro de 1989), o que a senhora acha que representou ele ter falado que era soropositivo?
Lucinha - Hoje em dia, acho que ele fez bem, porque ele nunca foi tão amado na vida. Ele disse que ficava até incomodado. Ele passava de carro na rua, e as pessoas gritavam: “Dá-lhe, Cazuza! Força”. Foi justo o oposto do que eu pensei. Falei isso (de ser contra) pra protegê-lo, mas ele era muito corajoso, e enfrentou tudo. Acho que o maior legado que o Cazuza deixou não foram só as canções, o maior legado que ele deixou foi de coragem, de se declarar soropositivo no auge da beleza, da juventude, do sucesso. E as pessoas admiravam mais ele ainda por causa dessa coragem. Ele auxiliou a muitos soropositivos a mostrarem as suas caras. Na época, os soropositivos tinham de se esconder, senão a família expulsava de casa. Ele serviu de exemplo. Porque ele era soropositivo, mas ele continuava sendo o artista, bonito, ganhando o dinheiro dele, fazendo sucesso, enchendo o Canecão (casa de show carioca) todo fim de semana. Ele foi muito corajoso e honesto.
OP - Como foi para senhora e pro Cazuza ver aquela capa da revista Veja (em abril de 1989, com os dizeres “Uma vítima da Aids agoniza em praça pública”)?
Lucinha - Ele estava louco pra sair na revista. A Veja ligou, disse que queria falar com ele e num sei o quê. Nós tínhamos uma casa em Petrópolis e a gente estava em Petrópolis, ele estava doente - doente que eu digo é aparecendo a doença. E aí o motorista chegou com a revista, que saía aos domingos, e ele louco pra ver a capa da Veja. Estávamos nós três, me lembro como se fosse agora, que vimos a capa e o conteúdo da entrevista, você não sabe o que foi… Nós descemos pro Rio, o Cazuza quase morreu nesse dia. Foi direto pro hospital, ele teve um troço. Ele recebeu o pessoal da Veja na casa dele com todo carinho. E eu me lembro que ele tava na época do soro da verdade - falava tudo que passava na cabeça dele. E o João ainda falou: “Vai lá pra casa do Cazuza, fica no quarto, o pessoal da Veja vai lá, pra ver que tipo de perguntas que vão fazer, o que ele vai responder”. E assim eu fiz. Mas eu não achei que tivesse sido tão grave. Eles torceram tudo o que ele falou. E, no final, eles diziam uma frase que o Cazuza não perdoava: “Afinal de contas, a obra de Cazuza não vai ser eterna, vai morrer com ele” (o trecho em questão dizia o seguinte: “É até discutível se sua obra irá perdurar, de tão colada que está no momento presente. Não vale, igualmente, o argumento de que sua obra tende a ser pequena devido à força do destino: quando morreu de tuberculose em 1937, Noel Rosa tinha 26 anos, cinco a menos que Cazuza, e deixou compostas nada menos que 213 músicas, dezenas delas obras-primas que entraram pela eternidade afora. Cazuza não é Noel, não é um gênio.”). Gente, ele chorava mais por causa disso. Não foi porque a capa mostrava ele esquálido, não foi pelo título. Foi por esse trecho final. Meu marido ficou com ódio do cara (o repórter), a gente conhecia ele. Ele era da Veja do Rio. O João ficou tão desesperado que foi pra porta do cara e ficou lá 24 horas, com o revólver no carro, para matar o homem. Acabou indo embora. Esse cara, seis meses depois, morreu de infarto. A obra do Cazuza mostrou que se sobrepôs a morte dele. Até hoje, ele é cantado, gravado, citado. De vez em quando me ligam da revista, pra eu dar entrevista. E eu atendo e digo: “Eu não dou entrevista para imprensa marrom”. O repórter, coitado, fica sem graça porque nem se lembra disso.
OP - Mas, a despeito do que a revista publicou, depois disso, ele gravou um disco, 20 músicas, continuou vendendo álbum, ganhando prêmio, como o da Sharp, produzindo. A senhora acha que era um recado também que ele queria passar?
Lucinha - Pode ser. Eu acho que sim. Olhando sob esse aspecto eu acho que sim. Acho que ele marcou a música popular brasileira. Tem cantor melhor que ele e pior que ele. Ninguém marcou tão bem a música popular brasileira como ele. Em todos os aspectos, nas letras, no comportamento muito corajoso. Ele é unânime, não tem ninguém que diz que o Cazuza é mais ou menos, a não ser a Veja. Encontro adolescentes de 14 e 15 anos que sabem as letras, conhecem a obra, são fãs. A imortalidade é isso. E ele se tornou imortal depois que morreu.
OP - Da onde ele tirava forças para continuar?
Lucinha - Ele tinha forças porque ele nunca pensou que ia morrer. E nós também incentivávamos. A gente dizia que ia aparecer um remédio, uma cura. E que ele tinha de lutar pela vida para poder alcançar o remédio da cura. E ele era tão forte que a gente tinha de ser forte também. Quando me diziam que eu fui forte, eu digo: “Não, ele é que foi forte”. Eu ia perder o bem maior da minha vida, mas não era eu quem estava com a vida em risco. Ele estava. Foi muito triste. Eu sou católica, mas até hoje eu espero uma resposta: por que o meu filho? Todos os amigos dele fizeram todas as loucuras que ele fez, e só ele que pagou com a vida. Não é que eu deseje que os amigos dele tivessem morrido, eu só queria ele vivo, e penso porque ele foi escolhido. Se é que Deus existe, eu espero essa resposta.
OP - Ele partiu dia 7 de julho. Como foi aquele dia para senhora?
Lucinha - Não tem nada pior no mundo, não existe dor maior. Só quem tem filho que entende. Eu não gosto de lembrar. Eu não lembro. Só lembro dele bonito, saudável, cantando, as pessoas aplaudindo. Raramente, eu me lembro dele doente, passando mal, no dia do enterro. Graças a Deus, eu esqueci. E não quero lembrar.
OP - Então, como é lembrar do Cazuza 30 anos depois?
Lucinha - Lembrar dele é ótimo. Ele era muito doce, aparte aquela maluquice toda, ele tinha um lado doce, carinhoso, generoso. Ele tinha todas as qualidades. Eu acho que eu até já descobri (a resposta): acho que ele não era deste mundo, então veio aqui, mostrou o que ele veio fazer e deu “PT saudações” (despedida usada em telegramas).
OP - A senhora depois fundou a Sociedade Viva Cazuza. Como a senhora vê essa trajetória
Lucinha - Quando o Cazuza morreu, você ver, meu único filho, a minha vontade era deitar numa cama e chorar até morrer junto com ele. Isso não traria meu filho de volta, não me faria viver com ele de novo, morrer não ia resolver nada. Só ia deixar meu marido sozinho. Eu pensei, eu vou trabalhar por aquelas pessoas que não tiver como a gente dinheiro pra sustentar uma doença tão cara. O Cazuza, nós levamos pros EUA, fizemos de um tudo. Tinha um hospital no Rio que tinha uma ala só de pacientes HIV, e aí eu fui pra lá pra me oferecer pra trabalhar. Foi a melhor coisa que eu fiz. As histórias de vida deles eram assim: os pais descobriam, botavam eles no hospital e davam endereço errado pra não devolverem eles pras casas deles. Era uma coisa triste. E eu vi que tinha feito a coisa certa. Dois anos depois, eu fiz essa casa que eu tenho até hoje, há 28 anos, pra pacientes HIV positivo. Isso virou minha vida, minha tábua de salvação, eu saber que estou podendo ajudar as pessoas. Eu uso os direitos autorais dele pra isso. A Viva Cazuza é sustentada com o dinheiro do Cazuza. Isso me dá muito satisfação de poder viver. Eu vou fazer 84 anos, e eu vou lá todo dia, passaram mais de 300 crianças por lá, desde a abertura da casa, e isso me conforta.
OP - Como está a casa com a pandemia?
Lucinha - As crianças continuam lá, é regime de internato. Fiz um esquema de mandar buscar e levar as funcionárias num carro todo dia, pras elas não pegarem condução, e as crianças ficam em casa, não vão à aula, estudam lá. Até passar isso tudo. Elas estão desesperadas (risos). Semana passada, eu falei pra botar todo mundo na van, e dar uma volta. O funcionário foi, levou lanche, só não deixaram sair da van. Aí eles montam a piscina, fazem festa junina quase que semanalmente, tudo pra passar o tempo.
OP - Como a senhora vê o cenário do HIV e da Aids depois de três décadas?
Lucinha - Claro que melhorou, a partir de 1996 quando o (José) Serra foi ministro da Saúde (governo Fernando Henrique Cardoso - PSDB) que quebrou as patentes dos remédios importados… Antigamente, no tempo do Cazuza, só tinha um remédio que era o AZT, hoje em dia, têm mais de 25 tipos de antirretrovirais diferentes. A doença, agora, se você se tratar e tiver sorte, você pode viver muito tempo. Eu conheço gente que vive há 30 anos, que estava doente no tempo em que o Cazuza esteve. Mas acho que a cura está muito longe.
OP - O que o Cazuza deixou de lições e o que a senhora aprendeu com ele?
Lucinha - Ele foi muito corajoso. Ele foi a pessoa mais corajosa que jamais conheci na minha vida. Quando se fala dele, além de falar das canções, do sucesso, fala da coragem. A pessoa no auge e saber que estava com uma doença mortal, não era qualquer um que aguentaria. Tanto que artistas morreram sem dizer o que tinham. Ele deixou este legado de coragem.
(Colaborou Marcos Sampaio, editor de Cultura e Arte)