"Nos anos 1960 era até pior. As pessoas não podiam falar em umbanda, em candomblé, porque eram presas. Não podiam expor manifestação nenhuma (dessas crenças) pelas ruas porque certamente seriam presas. Tudo era feito escondido. Eu era pequena, lembro que acompanhava minha mãe dentro de uma mata fechada, na beira de um lago, onde as pessoas não podiam nos ouvir".
Tecla Sá de Oliveira, a mãe Tecla de Oxóssi, relembra dos tempos de criança e também do que aprendeu e ainda vê como gestora da União Espírita Cearense de Umbanda (Uecum). É vice-presidente. A presidente da entidade in memoriam é sua mãe (biológica e de santo), Susana Sá de Oliveira, que morreu em setembro do ano passado aos 87 anos. A entidade foi uma das primeiras criadas no Estado com a ideia de proteger o direito de culto para os umbandistas.
Perseguição, denuncismo vazio, estigma. Para se mapear as religiões é preciso falar de racismo. É a intolerância ao credo alheio apenas pela cor da pele da outra pessoa. Aconteceu por muitos anos, ainda tem sido assim no Brasil.
No Ceará, de 2017 a 2021, foram registrados 30 procedimentos - entre inquéritos policiais e boletins de ocorrência - que tinham como pano de fundo a intolerância religiosa. Apenas oito inquéritos foram instaurados com base no artigo 208 do Código Penal Brasileiro (CPB) - que tipifica os crimes contra o sentimento religioso. Somente cinco processos foram remetidos à Justiça pela Polícia.
Uma pessoa foi condenada em 2019, depois de invadir uma igreja evangélica um ano antes. Mas os ataques miram, em sua maioria, as religiões de matriz africana. Além de Fortaleza, foram registrados casos em cidades de oito Áreas Integradas de Segurança do estado. Os dados são da Gerência de Estatísticas e Geoprocessamento (GEESP) da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).
Os registros acima são apenas a ponta do iceberg de um problema secular. Há racismo também no cenário da fé. Em casos rotineiros, que nem entram em estatísticas oficiais, religiões de matriz africana sofrem o preconceito histórico.
O medo de denunciar é reflexo da impunidade, de possíveis retaliações e gera invisibilização tanto dos casos deste tipo de violência quanto dos terreiros existentes na cidade, que preferem se esconder a terem seus endereços públicos.
Ao longo desta reportagem foram levantados relatos de situações reais de intolerância religiosa ocorridas em Fortaleza, iremos dispô-los em um formato interativo para que você leitor saiba quais violações ocorreram e as medidas cabíveis a serem tomadas em cada caso.
Dos registros, somente um foi denunciado em Boletim de Ocorrência e, pelo mesmo caso, virou dois processos judiciais. Mas isso é raro. As demais, subnotificadas, são o mais comum. Acumulam-se sem punidos.
Os responsáveis apontados por quem contou cada história foram alguns seguidores de igrejas evangélicas fundamentalistas, considerados mais radicais. “Não é todo evangélico que tem essa postura racista”, exime o antropólogo Jean dos Anjos, que há duas décadas pesquisa e fotografa exu, pombagira, iemanjá, encruzilhadas e os feitos e crenças a encantadas e encantados.
Uma das situações relatadas ao O POVO foi durante uma celebração onde dezenas de praticantes da religião de matriz africana estavam reunidos e foram surpreendidos logo que a música começou a ser tocada.
Explicação:
Práticas de violência física são frequentemente relatadas entre praticantes de religiões de matriz africana. Historicamente os praticantes de religiões como Candomblé ou Umbanda sofrem não apenas violências verbais, mas também ataques físicos ostensivos que buscam impedir a sua prática religiosa.
Explicação:
Práticas de violência física são frequentemente relatadas entre praticantes de religiões de matriz africana. Historicamente os praticantes de religiões como Candomblé ou Umbanda sofrem não apenas violências verbais, mas também ataques físicos ostensivos que buscam impedir a sua prática religiosa.
O traço do racismo é presente em cada relato. O preconceito se espalha sobre os credos. Os casos descritos são recentes, de poucos anos ou apenas alguns meses atrás. Como este do motorista de aplicativo que se recusou a fazer a corrida, assim que viu a roupa que a jovem usava.
Ele não chegou a verbalizar, até disse que seria pela máscara - que ela estava inclusive tirando do bolso - mas o motivo ficou claro diante da reação dele. A roupa da jovem era branca, ela estava com um turbante cobrindo seus cabelos crespos e usava suas guias (colares de contas) no pescoço. Ela é filha de santo e é uma mulher negra.
Explicação:
Em diferentes aplicativos, regras de cancelamento distintas podem ser aplicadas em cada modelo de negócio. Entretanto, a prática de intolerância religiosa e/ou racismo são crimes previstos em lei, aplicados em quaisquer circunstâncias da vida em sociedade. Ou seja, a prática ou tradição religiosa não pode ser obstáculo à prestação de qualquer serviço.
Explicação:
Em diferentes aplicativos, regras de cancelamento distintas podem ser aplicadas em cada modelo de negócio. Entretanto, a prática de intolerância religiosa e/ou racismo são crimes previstos em lei, aplicados em quaisquer circunstâncias da vida em sociedade. Ou seja, a prática ou tradição religiosa não pode ser obstáculo à prestação de qualquer serviço.
O Painel da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), traz informações sobre este tipo de violação, mas também são escassas. O Ceará somou, de 2020 a janeiro deste ano, 28 denúncias dessa natureza, descritas como "violência contra a liberdade religiosa de crença e culto".
Porém, a plataforma do governo federal apresenta um dado importante, as vítimas informaram que sofrem violações diárias por conta de sua crença ou culto. Os casos ocorrem, em sua maioria, dentro da própria residência das vítimas e em segundo, no ambiente virtual (internet, redes sociais e aplicativos), a via pública também aparece, mas com apenas um registro.
O cenário de redes sociais tem sido arena para violações diversas, quem sente na pele não esquece, como é o caso da ialorixá, Kelma de Iemanjá , também mestra em educação e coordenadora da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde do Ceará.
A líder religiosa foi bombardeada por ataques nas redes sociais, logo depois de presentear o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2021, com uma guia de Xangô e uma imagem de Zé Pilintra - uma das entidades mais cultuadas por seguidores da umbanda. Os comentários atacavam a religião, ela e até menos o político.
"Eu só soube dos ataques no dia seguinte à noite pela minha filha biológica. Foi uma enxurrada, parecia coisa orquestrada. O rapaz fez uma pequena live, julgando mesmo. Eu particularmente nunca tinha sofrido na pele essa questão do racismo religioso dessa maneira, muito afrontosa", contou. A tarde festiva daquele sábado virou assombrosa.
Explicação:
Toda e qualquer forma de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza, são considerados crimes pela Lei Nº 9.459/97. Ainda segundo o Painel da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH),do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH),das 829 denúncias de violações contra "Liberdade de religião ou crença", recebidas entre Julho/2020 e Dez/2021, 69 (ou 8%) tiveram como cenário o “Ambiente Virtual (âmbito da Internet)”.
Explicação:
Toda e qualquer forma de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza, são considerados crimes pela Lei Nº 9.459/97. Ainda segundo o Painel da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH),do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH),das 829 denúncias de violações contra "Liberdade de religião ou crença", recebidas entre Julho/2020 e Dez/2021, 69 (ou 8%) tiveram como cenário o “Ambiente Virtual (âmbito da Internet)”.
Hoje há dois processos judiciais, um no Ceará, movido por ela através de seus advogados, e outro na Justiça do Maranhão, acionado pela Coalizão Negra por Direitos, aliança que reúne 250 organizações do movimento negro brasileiro, para responsabilizar os agressores. Além do crime de racismo, ela cobra danos morais e uso indevido da imagem.
Duas das pessoas identificadas com os comentários racistas foram um vereador de Belo Horizonte, evangélico, e uma representante da ala feminina de um partido político do Maranhão. Os processos são pelo menos contra eles dois, mas vários influenciadores digitais também a atacaram na transmissão do dia 21 de agosto de 2021.
"As pessoas julgam sem saber o que estão dizendo. É religião de negro, de preto, é ruim, é magia negra. Isso cria um universo conceitual de achar que trabalhamos com o demônio. É terrível”, lamenta a ialorixá.
São poucos os casos que vão a julgamento, e de acordo com os dados enviados pelo Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), de 2018 a 2020, nove crimes dessa natureza foram ao tribunal, mas apenas uma pessoa foi condenada: um homem, à época com 23 anos, que embriagado invadiu um templo da igreja Assembleia de Deus, no bairro São Luiz, em Ipaumirim.
Em um dos casos, que tramitou em Fortaleza, de 2020, a Igreja Pentecostal do Evangelho Pleno chegou a acionar o próprio governador do Estado, Camilo Santana, por intolerância religiosa. Porém, desistiu do processo. A igreja tentava manter o templo aberto durante a pandemia.
O antropólogo Jean dos Anjos confirma: “Até a década de 1960, os terreiros não podiam funcionar de jeito nenhum. Se a polícia pegasse aberto, entrava, prendia as pessoas. Eram presas, torturadas. Destruíam o que estava lá dentro”. Segundo o pesquisador, os terreiros só vão ser visibilizados com a federalização dos terreiros.
Com entidades dando suporte e orientação, os alvarás passam a ser distribuídos para os terreiros, a partir do trabalho da mãe Júlia Condante, “mas apesar disso a violência continua. O cenário não muda de uma hora pra outra”.
Jean dos Anjos usa essa linha do tempo do preconceito para reforçar o receio dos espaços em buscarem a formalização. “Então, hoje, ainda muitos terreiros não querem aparecer por medo da violência. Jogam pedra. Ouvem os sons de tambores e denunciam para a polícia. Isso acontece muito”.
Segundo Mãe Tecla de Oxóssi, mapear os terreiros sempre será um trabalho difícil. Registrar um terreiro como pessoa jurídica já será complicado por questões financeiras. Além disso, ela aponta que os umbandistas temem perseguições ao serem localizados.
“Têm medo de dar nomes, endereços, não aceitam. É uma proteção. É medo ancestral”, explicou a Mãe Tecla de Oxóssi. Dentro de casa, desde a infância, Tecla viu as barreiras históricas para consolidar a existência do movimento umbandista.
Quantos terreiros existem no Estado? Não há dados confiáveis, são subnotificados. Os espaços não são formalizados. Por questões financeiras, desconhecimento a respeito e a invisibilização até como estratégia de segurança - o que não elimina ataques, agressões.
Está previsto, ainda para fevereiro, o governo estadual divulgar o relatório final do Inventário de Terreiros de Matriz Africana do Ceará. A pesquisa foi contratada por edital em 2019 e concluída em novembro de 2021.
O POVO apurou que pelo menos 500 terreiros teriam aparecido só na amostragem colhida em Fortaleza. O que seria ainda muito abaixo do dado real. Mais de 50 cidades teriam sido visitadas no Interior cearense.
O questionário teria reunido mais de 100 perguntas em cada espaço, incluindo dados sobre babalorixás e ialorixás, ancestralidades, localização, estrutura e documentações, dados sociais e histórico de lutas e conquistas particulares.
A reportagem tentou mais informações do trabalho, mas há um contrato de confidencialidade que impede divulgações antecipadas. Um livro e um site deverão ser disponibilizados na sequência.
Na próxima terça-feira, dia 15, o O POVO encerra o especial Credos de Fortaleza com a publicação do último episódio, que trará um levantamento exclusivo, com base no acervo de 94 anos do jornal, sobre as perseguições aos povos de terreiro em Fortaleza.
Para as análises deste episódio, a central DATADOC utilizou dados da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Estado (SSPDS), Tribunal de Justiça do Ceará (TJ-CE) e Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH).
Como forma garantir a integridade e confiabilidade deste material, disponibilizamos aqui a metodologia detalhada do projeto, as fontes de dados utilizadas, nossas análises, dados agregados resultantes e o conjunto de códigos desenvolvidos.