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Ontem e hoje: o estigma que rodeia as religiões afrobrasileiras
Reportagem Seriada

Ontem e hoje: o estigma que rodeia as religiões afrobrasileiras

Levantamento do O POVO mostra o noticiário de quando os terreiros nem sequer podiam funcionar, de quando o estigma lançado à umbanda e ao candomblé era ainda mais pesado que o atual
Episódio 5

Ontem e hoje: o estigma que rodeia as religiões afrobrasileiras

Levantamento do O POVO mostra o noticiário de quando os terreiros nem sequer podiam funcionar, de quando o estigma lançado à umbanda e ao candomblé era ainda mais pesado que o atual
Episódio 5
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No alto da página, o título anunciava: “A macumba no Arraial Moura Brasil”. A notícia era sobre 11 pessoas que haviam sido presas no bairro, área central da cidade, num “animado catimbó”. É um rito festivo de cura e iluminação para os umbandistas, mas algo muito mal visto entre os mais influentes na Fortaleza de 1934, de perfil “religioso”. O termo “religioso” restringia seu uso mais a quem fosse católico. A informação sobre a macumba desfeita estava em destaque no então vespertino O POVO, edição de 8 de junho daquele ano.

O vizinho que dera parte à Polícia. Denunciara aqueles “macumbeiros”. O encontro é descrito no texto como uma “macumba, com toda sua altivez pagã, filha da ignorância e do desespero”. Casa cercada, a dona e os presentes todos levados para a Delegacia Auxiliar, prédio da chefatura de polícia. Outro ponto narrado: “as autoridades policiais conseguiram apreender em poder dos catimboseiros dois bonecos do tamanho de um homem, um grande cachimbo no qual todos fumavam, um frasco com uma xaropada de hervas e outros pequenos objetos pecaminosos que os leigos do assunto não podem entender”. Um dos detidos foi descrito como um "fantasiado e representava o cão".

Este Episódio 5, da série “Credos de Fortaleza”, traz um levantamento inédito, feito pela Central de Jornalismo de Dados do O POVO - DATADOC, sobre casos de intolerância religiosa em Fortaleza a partir do noticiário local, em páginas de outras épocas. O que a imprensa contava e refletia da sociedade daquele tempo, contraditório e criticável aos padrões atuais. No caso, são as perseguições históricas aos povos de terreiro em Fortaleza tendo como base o acervo de 94 anos do O POVO.

 

 

 
Linha do tempo: assim nos contaram sobre os povos de terreiros 

 

São cinzas e brasas. A reportagem atualiza, pelo discurso do passado, a questão do preconceito religioso ainda vivido nos dias de hoje por praticantes das religiões de matriz africana ou outras inseridas em estigmas históricos, geopolíticos ou de cor. Joga luzes para a necessidade de política pública para o reconhecimento desses espaços religiosos, desses povos, para a valorização da cultura dos credos na cidade.

"Nos jornais antigos, reportagem sobre umbanda só aparecia nas páginas policiais”, descreve Jean dos Anjos, 48 anos, antropólogo, teólogo e fotógrafo. Suas pesquisas cruzam religião, arte e cultura. Uma delas é o Inventário da Festa de Iemanjá, orixá celebrada em Fortaleza no dia 15 de agosto. A Rainha das águas também é festejada em 2 de fevereiro.

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“Até os anos 1960, os terreiros não podiam funcionar de jeito nenhum. Se a polícia pegasse aberto, ela entrava, prendia as pessoas. Elas eram presas, torturadas. Destruíam o local”. Surge naquela década, segundo Jean, a representação institucionalizada dos terreiros, com a criação da Federação Cearense Espírita de Umbanda. “Passam a ser distribuídos alvarás, apesar disso a violência continua, não muda o cenário de uma hora para outra. Ainda hoje muitos terreiros não querem aparecer por medo da violência. Ainda jogam pedra (nos terreiros), isso acontece”.

"Nós ainda somos vistos não como povos de terreiros, mas sim como 'os macumbeiros'", realça o babalorixá Linconly Jesus, 42 anos, 23 como iniciado no candomblé, professor universitário com doutorado em Educação. No terreiro, ele é conhecido como Linconly de Xangô. Quando querem xingá-lo, tratá-lo pejorativamente, o chamam de macumbeiro.

Linconly era um dos presentes num episódio em que policiais militares chegaram numa viatura e interromperam um ritual de candomblé que acontecia à margem da Lagoa Jaçanaú, em Maracanaú. Os PMs já desceram do carro empunhando pistolas e apontando uma escopeta. Um caso acontecido três anos atrás, ainda fresco na memória do pai de santo. Ele até reclamou da abordagem da agressiva, foi ironizado sobre isso, mas o chefe da guarnição teria entendido a situação e acompanhou o ritual à distância. "O fato é que naquele momento meu título de doutor não valeu nada", admite o religioso, resignado.

 

Jean dos Anjos, antropólogo, teólogo e fotógrafo(Foto: Tavares CB)
Foto: Tavares CB Jean dos Anjos, antropólogo, teólogo e fotógrafo

"Historicamente no Brasil, a gente vai ter o racismo como marcador. O Brasil é estruturado socialmente com o racismo. Primeiro a gente tem a invasão dos europeus, com o genocídio do povo indígena, sua religiosidade, sua cultura. Tudo vai sendo dizimado. Quando os escravizados vêm do continente africano, acontece a mesma coisa. Índios e negros sofrem o apagamento de sua cultura e sua religião. São marcados como povos sem alma", descreve Jean dos Anjos.

A violência é traçada desde o passado, mas tem musculatura forte ainda no presente. “Continuamos sendo atacados, isso é difícil de ser dito. É uma coisa histórica e que estamos combatendo o tempo todo. As populações negra e indígena sofrem mais com isso”. Os gestos agressivos, segundo Jean, são físicos e também simbólicos. “É o racismo estrutural brasileiro”.

Ainda nos seus primórdios locais, os seguidores da doutrina espírita também vivenciaram seu capítulo próprio do preconceito, da intolerância. O presidente da Federação Espírita do Estado do Ceará (FEEC), Luciano Klein Filho, historiador de formação, 57 de idade e espírita há 36 anos, cita momentos do início do século passado: “Evidente que o movimento espírita em Fortaleza, pela própria situação da sociedade local, conservadora por excelência, sofreu muitas perseguições. Houve muitas reações, mas graças à obstinação de pioneiros, tivemos oportunidade de vê-la se expandir".

Presidente da Federação Espírita do Ceará, Luciano Klein Filho(Foto: Thais Mesquita)
Foto: Thais Mesquita Presidente da Federação Espírita do Ceará, Luciano Klein Filho

No ano 1895, o médico carioca Luís de França de Almeida e Sá veio morar em Fortaleza. Permaneceu pouco mais de dois anos. Numa discrição necessária, obrigatória, fundou no Centro da cidade o primeiro grupo espírita local. Chamava-se Fé e Caridade. A empreitada era corajosa. O Brasil daquela época tinha uma religião oficial, o catolicismo. Havia a pressão social, costumes, naquela Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, de sobrenome religioso.

 

 

Ceará não tem delegacia contra crimes de ódio, mas proposta existe desde 2014

O Ceará ainda não tem uma delegacia para combater os crimes de ódio e intolerância racial, religiosa ou identidade de gênero e orientação sexual. Porém, desde 2014, quando ainda era candidato ao governo do Estado, Camilo Santana (PT) sugeriu criar uma unidade especializada em seu plano de campanha - o documento “Os 7 Cearás”, que virou o programa de governo e definiu os sete eixos das atuais políticas públicas. Camilo foi eleito, reeleito, deixará o cargo antecipadamente neste primeiro semestre para concorrer ao Senado nas eleições deste ano e, quase oito anos depois, a Delegacia não entrou em funcionamento.

Ela deverá se chamar Delegacia de Repressão aos Crimes de Intolerância Racial, Religiosa, por Identidade de Gênero ou Orientação Sexual (Decrin). Alguns passos burocráticos até foram dados recentemente para sua criação, mas ainda não está definido quando comece a funcionar. Em nota enviada ao O POVO, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) diz que a delegacia consta no plano de reestruturação da Polícia Civil do Estado do Ceará (PC-CE).

Festa de Iemanjá na praia do Cumbuco, em Caucaia(Foto: JEAN DOS ANJOS)
Foto: JEAN DOS ANJOS Festa de Iemanjá na praia do Cumbuco, em Caucaia

“A reestruturação da PC-CE, que permitirá a construção da nova delegacia, é uma prioridade do Governo do Ceará. Entretanto, ao longo de 2021, não foi possível a criação de cargos e estruturas, em razão da lei federal complementar 173, que só permitia preenchimento de cargos em vacância”, explica a nota. A unidade deverá ter dois delegados, três escrivães e seis inspetores. A designação de efetivo para a unidade estaria dependendo da finalização do concurso que está em andamento.

Em setembro do ano passado, uma folha de despacho do Departamento de Polícia Judiciária de Proteção aos Grupos Vulneráveis (DPGV), informa que “a Polícia Civil do Estado do Ceará, em seu planejamento financeiro 2019-2022, já lançou no MAPP (Monitoramento de Ações e Projetos Prioritários), sob o número 200, a implantação da Decrin. Estamos aguardando que o governo do Estado viabilize sua criação”. O POVO teve acesso ao espelho desse MAPP.  Clique aqui para baixar o PDF. O governo estadual teria R$ 2,05 milhões para investir na nova delegacia. 

Para a mesma demanda, de criar uma delegacia para os crimes locais de intolerância religiosa, o projeto de indicação nº 96/2020 tramita há dois anos na Assembleia Legislativa. O autor é o deputado Renato Roseno (Psol). “Nós, da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia, temos recebido tanto denúncias de intolerância religiosa, de racismo e também várias denúncias de LGBTfobia. A necessidade de termos um equipamento especializado para o acolhimento de vítimas desses crimes é de suma importância para a garantia da dignidade humana”.

Registro da Festa de São Sebastião, em momento na cabana do Preto Velho da Mata Escura(Foto: JEAN DOS ANJOS)
Foto: JEAN DOS ANJOS Registro da Festa de São Sebastião, em momento na cabana do Preto Velho da Mata Escura

Segundo o parlamentar, seu projeto sofreu boicote e ataques da bancada evangélica, contrária à criação da delegacia. Por isso não teria avançado. “Lamentamos muito que em sete anos e meio essa delegacia, que estava no programa de 2014, não tenha saído do papel”, aponta Roseno. “É fundamental que promovamos a responsabilização daqueles que cometem esses crimes e que possamos promover uma cultura de respeito à dignidade humana, à pluralidade, à diversidade, de raça,religião, orientação sexual ou identidade de gênero”.

 

 

Intolerância religiosa: oito inquéritos em cinco anos  

Além de punir as ocorrências, a futura Delegacia de Repressão aos Crimes de Intolerância Racial, Religiosa, por Identidade de Gênero ou Orientação Sexual (Decrin) deverá ter ações e formar policiais entre seus quadros para acolher as vítimas. “Como missão institucional, caberá à unidade atuar na repressão dos casos, bem como dialogar com movimentos sociais e instituições que atuam no combate ao racismo, intolerância religiosa e LGBTfobia para aperfeiçoar os protocolos de atendimento humanizado”, informou em nota a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).

Nos últimos cinco anos completos no Ceará, entre janeiro de 2017 e dezembro de 2021, foram instaurados oito inquéritos policiais relacionados ao artigo 208 do Código Penal. O crime enquadra quem "escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso".

No mesmo período, cinco procedimentos foram finalizados e remetidos ao Poder Judiciário. Ao todo, foram registrados 30 procedimentos - entre inquéritos policiais e boletins de ocorrência. Dos crimes por homofobia, entre janeiro e dezembro de 2021 foram registrados 707 e 117 casos de ameaça e calúnia, respectivamente, contra vítimas identificadas como LGBTQIA+. Os dados foram extraídos pela Gerência de Estatística e Geoprocessamento (Geesp) da Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp).

 

 

Metodologia

Para as análises deste episódio, a central DATADOC utilizou dados da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado (SSPDS), do programa de Monitoramento de Ações e Projetos Prioritários (MAPP), portal da Assembleia Legislativa do Ceará (AL-CE) e pesquisa histórica ao acervo de 94 anos do O POVO.  

Como forma garantir a integridade e confiabilidade deste material, disponibilizamos aqui a metodologia detalhada do projeto, as fontes de dados utilizadas, nossas análises, dados agregados resultantes e o conjunto de códigos desenvolvidos. 

  • Edição DATADOC Thays Lavor
  • Edição O POVO+ Fátima Sudário e Regina Ribeiro
  • Identidade visual e Edição de arte Cristiane Frota e Isac Bernardo
  • Texto e Edição Cláudio Ribeiro
  • Análise e visualização de dados Alexandre Cajazeira
  • Pesquisa e classificação Miguel Pontes e Roberto Araújo
  • UX Design Maria Fernandes
  • Front-end Michele Medeiros e Anthony Anderson
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