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Biden 100 dias: a guinada de volta à normalidade
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Biden 100 dias: a guinada de volta à normalidade

Presidente dos EUA completa 100 dias na Casa Branca. Tradicional marca temporal para medição de feitos administrativos começou com Franklin Roosevelt, presidente que usou o período para balanço de suas ações em meio à Grande Depressão. É com quem, também, Biden guarda alguma semelhança
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BIDEN voltou ao Capitólio na última quarta-feira, quando discursou ao lado da vice, Kamala Harris, e a presidente da Câmara Nancy Pelosi  (Foto: JIM WATSON / POOL / AFP)
Foto: JIM WATSON / POOL / AFP BIDEN voltou ao Capitólio na última quarta-feira, quando discursou ao lado da vice, Kamala Harris, e a presidente da Câmara Nancy Pelosi

Dentre as principais guinadas pelas quais o governo de Joe Biden é responsável, a mais destacada delas é a que deu rumo à normalidade. Ele completa 100 dias como presidente dos Estados Unidos nesta sexta-feira, 30, estágio inicial de administração na qual já confirma ser real a opção dos eleitores pela prudência em detrimento ao modo tempestuoso com que Donald Trump marcou sua estadia na Casa Branca.

O democrata assumiu a Presidência em um dos momentos mais difíceis da história mundial em anos. A pandemia da Covid-19 impôs a Biden a missão de acelerar a vacinação da população e, paralelamente, dar injeção de ânimo à economia americana. A primeira promessa, de aplicar 100 milhões de doses na primeira centena de dias, foi superada de longe. (ver infográfico)

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O novo governo americano viabilizou um auxílio de US$ 1.400 (cerca de R$ 7.600) para grande parte da população estadunidense. Foram mobilizados três pacotes econômicos. Os eixos foram a retomada após o coronavírus (US$ 1,9 trilhão) - que contém o auxílio -, a infraestrutura (US$ 2,2 trilhões) e a educação (US$ 1,8 trilhão).

O que se refere à Covid-19 foi inicialmente recebido com resistências, mas terminou aprovado com modificações. Os outros dois ainda têm de percorrer o caminho do Legislativo. As iniciativas têm em comum o grande investimento do Estado na economia. Este é, em si, outro aspecto que carrega consigo elementos de ruptura.

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O modelo mais fielmente interpretado pelo republicano Ronald Reagan (1981-1989), cuja participação estatal nos rumos da economia foi reduzida ao mínimo, tende a ser confrontado pelo presidente de centro. Em maior ou menor escala, a lógica predominou até aqui.

No discurso da última quarta-feira, 28, no Congresso, Biden fez forte aceno à classe média ao afirmar que os EUA são resultado da construção da classe trabalhadora, não de especuladores de Wall Street (Nova York), coração financeiro do país.

Oswaldo Dehon, doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e professor do Ibmec de Belo Horizonte, analisa que o modelo de Biden é alguma coisa que faz lembrar o de Franklin D. Roosevelt (1933-1945). “Há ali uma visão bem diferente no período (Barack) Obama, mas não um confronto (em relação a Reagan). Com Biden, há. Visão completamente diferente”, assinala.

 

“Confronto com o princípio da austeridade, confronto com o princípio da ausência de emissões de recursos, de títulos da dívida pública americana - apesar de que os Estados Unidos têm déficit público razoável ao longo do tempo -, que financia com os recursos que tem, da mesma forma também que investimentos mais claros na área de infraestrutura”, cita Dehon como exemplos práticos das diferenças entre os modelos.

Questionado sobre o nível da presença estatal no EUA, Felipe Loureiro, coordenador da graduação do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), responde que “sem dúvida, talvez a mais pujante em décadas.”

“Caso os pacotes sejam aprovados”, diz Felipe, “estamos falando de algo tão grandioso quanto o New Deal (1933-1937) de Franklin Roosevelt e a Grande Sociedade (1964-1965) de Lyndon Johnson.” O primeiro exemplo citado por ele foi um conjunto de ações para amainar os efeitos da Depressão de 1929. O segundo para excluir a pobreza e a desigualdade social.

No horizonte de Biden está também a tarefa de retirar os EUA de um lugar para o qual Trump o levou, de isolamento perante a comunidade internacional, recolocando-o como protagonista em agendas palpitantes para o mundo, como a do desenvolvimento sustentável. Plataforma eleitoral de Trump, a questão migratória é encarada pelo atual mandatário a partir de outra perspectiva.

O presidente dos EUA, Joe Biden, saiu após falar sobre as vacinas da Covid-19 no campus da Casa Branca em 21 de abril de 2021, em Washington, DC. - O presidente Biden anunciou na quarta-feira que os Estados Unidos vão atingir mais de 200 milhões de tiros esta semana. (Foto de Brendan Smialowski / AFP)
O presidente dos EUA, Joe Biden, saiu após falar sobre as vacinas da Covid-19 no campus da Casa Branca em 21 de abril de 2021, em Washington, DC. - O presidente Biden anunciou na quarta-feira que os Estados Unidos vão atingir mais de 200 milhões de tiros esta semana. (Foto de Brendan Smialowski / AFP)

Uma política externa conciliadora tanto quanto possível

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, se põe conciliador, numa conduta pacata, sendo comum até mesmo que o noticiário o reconheça como entediante. Em artigo no New York Times sobre os 100 dias do mandatário, Michele Cottle, membro do conselho editorial da publicação, escreveu sobre Biden, mas indiretamente sobre Trump, que “ele está tornando a presidência entediante novamente. Zombe se quiser, mas esta é uma grande conquista - bem-vinda por muitos americanos exaustos”.

A conduta mais "low profile", associada ao pragmatismo, deve dar o tom do político nas relações com os outros países. Contudo, Biden soube sair da linha quando necessitou falar de Vladimir Putin, a quem considerou um "assassino", ao ser questionado sobre o presidente russo.

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Para Felipe Loureiro, coordenador do curso de Relações Exteriores da Universidade de São Paulo (USP), ele deve fazer uma “política externa pragmática e que visa recolocar os EUA como liderança global em várias temáticas, notadamente na temática ambiental; uma política externa que mantém a China como uma centralidade estratégica, mas que o faz de forma não-espetacularizada; uma política externa que revaloriza o multilateralismo, organizações e acordos internacionais.”

Bosco Monte, docente na mesma área, afirma que reconduzir os EUA para os trilhos da normalidade passa por conversar com todos e trazer o país de volta ao Acordo de Paris - para redução de emissão de fases -, algo feito assim que Biden chegou à Casa Branca.

“Mas ele não esqueceu alguns pressupostos que já existem, como a hegemonia. Seja democrata ou republicano, tem que ter um lado de oposição no cenário internacional. Isso acontece com a China, com a Rússia, com alguns países da América do Sul”, afirma o professor.

E segue na interpretando-o: “Ele mostrou que já não é totalmente diferente do que existiu nos governos anteriores a ele. Tem agendas comuns, independente de quem ocupa o Salão Oval, mas tem movimentos peculiares. Tem essas duas identidades: aquela conservadora, que se mantém na narrativa de todos os presidentes.”

Biden vai bater na China, segundo Monte, que continua avançando na sua política de mercado, perigosa para as empresas americanas. Enquanto Putin, por conta do seu histórico de intervenção em assuntos internos americanos, também será um alvo, para o professor.

“Então, o Biden vai brigar com esses dois, especificamente. Por outro lado, ele é aberto. Na semana passada, chamou os líderes mundiais para conversar, inclusive os dois inimigos, como China e Rússia, estavam na Cúpula do Clima que ele promoveu. Tem, portanto, o lado conservador e o liberal, com agendas diferentes, mas ainda é cedo para termos resultados”, pontua Monte.

Ao recompor laços com nações europeias, segundo Oswaldo Dehon, doutor em Relações Internacionais, consequentemente os EUA fazem aumentar tensões com a Rússia.

(Brasília - DF, 22/04/2021) Cúpula de Líderes sobre o Clima (videoconferência)..Foto: Marcos Correa/Presidência da República
(Brasília - DF, 22/04/2021) Cúpula de Líderes sobre o Clima (videoconferência)..Foto: Marcos Correa/Presidência da República

Deve haver um período de pragmatismo, diz especialista sobre relação EUA-Brasil

Oswaldo Dehon, doutor em Relações Institucionais e professor do Ibmec Belo Horizonte, projeta um "período de pragmatismo" na relação entre Estados Unidos e Brasil. Para ele, isso está mais claro do ponto de vista dos norte-americanos.

"Há uma tentativa, no caso do governo brasileiro, com a substituição do (ex-ministro das Relações Exteriores) Ernesto Araújo de poder tentar mudar os rumos no que diz respeito à política externa desastrosa", diz Dehon.

Mas ele ressalva que o "próprio presidente e o ministro da Economia (Paulo Guedes) têm dado demonstrações de que a visão que reinava no período Ernesto não passou."

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O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) se envolveu no processo eleitoral americano, tomando partido para o lado do candidato que viria a perder. O tipo de intromissão é, além de precipitado, contraindicado na prática diplomática.

"Para que possa haver retorno as relações normais, é preciso que haja aprofundamento da colaboração entre dois países. Ao mesmo tempo há uma demanda de que o Brasil possa se aproximar das instituições multilaterais, fazer bom trabalho no meio ambiente, estabelecer relação com os vizinhos da região", afirma o docente.

E adiciona: "É preciso que o Brasil possa enxergar nos EUA um parceiro estratégico, não só do ponto de vista ideológico."  

De volta às eleições americanas, o presidente brasileiro foi o último chefe de Estado a oferecer os cumprimentos pela vitória do democrata diante de Trump. 

Como o ex-presidente estadunidense, Bolsonaro costuma levantar suposições segundo as quais as urnas eletrônicas brasileiras são fraudadas. As dos EUA, via cédulas, foram criticadas por Trump com o já histórico "stop the count"

Mais adiante, durante a campanha nos EUA, Bolsonaro lançou uma indireta a Biden. Em reposta a um aviso do democrata, que prometeu levantar barreiras comercias contra o Brasil no caso de as queimadas na Amazônia não serem controladas, o presidente brasileiro disse que "apenas na diplomacia não dá", concluindo "que quando acaba a saliva, tem que ter pólvora." 

Biden não respondeu aos ataques mais enérgicos. Entre analistas, é estratégico para os EUA não isolar o Brasil, pois o colocaria naturalmente mais próximo à China. 

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