Quando completou 60 anos, ainda em 2009, Rosa da Fonsêca preparou uma festa aberta ao público, numa mistura de celebração e ato político. Mais de uma década depois, Rosa se despede, após falecer em decorrência de câncer no ovário.
O velório na Funerária Ethernus, das 8h às 15h, será liberado a quem queira participar da cerimônia, como talvez Rosa desejasse. O sepultamento está previsto para as 16 horas, no cemitério Parque da Paz.
Aos 73 anos, a militante, ex-vereadora e professora da rede municipal de Fortaleza enfrentava a doença havia alguns anos. Internada no Hospital São Carlos, mantinha-se firme na esperança de dobrar a enfermidade, como tinha feito com outros obstáculos que lhe atravessaram a vida. E não foram poucos.
Fundadora do grupo Crítica Radical, Rosa foi presa pela ditadura militar brasileira em 1971, aos 22 anos. Então estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC) e ligada à organização Ação Popular, dava ali os primeiros passos numa trajetória de resistência contra o arbítrio, exercendo papel central na luta pela anistia e pela organização de movimentos de mulheres e de categorias no Ceará.
De lá para cá, foi vereadora e exerceu cargos de direção em entidades sindicais, mas se notabilizou mesmo como uma ativista incansável e ferrenha adepta de uma concepção emancipatória da vida e do exercício da política.
Fora da vida institucional, e ao lado dos amigos Jorge Paiva, Célia Zanetti e Maria Luiza Fontenele, companheiros de todas as horas, criou uma comunidade rural a partir da qual pretendia lançar as bases de uma nova sociabilidade, avessa ao regime do capital e em cujo horizonte fosse possível uma alternativa ao modelo hegemônico, que, de acordo com ela, levaria o planeta ao colapso.
Nessa trincheira, abdicou de si em favor da causa, como no aniversário de 60 anos, quando dispensou presentes e pediu àqueles que tinham a intenção de homenageá-la para, se possível, contribuir de alguma maneira a fim de que o Crítica Radical pudesse ter sustentabilidade financeira.
Assim foi Rosa Maria Ferreira da Fonsêca, nascida em 24 de abril de 1949, em Quixadá, filha do português Manoel Rodrigues Fonsêca com a cearense Maria Rocilda, irmã de oito - seis mulheres e dois homens -, amiga de tantos e sempre disposta a se perfilar ao lado dos mais vulneráveis.
Autor do perfil biográfico de Rosa, publicado em 2017 pelas Edições Demócrito Rocha, o jornalista e editor do O POVO Érico Firmo escreve que, "mesmo os maiores desafetos hão de reconhecer nela alguém que sempre se moveu por profunda convicção no que acredita, sem jamais colocar ambições pessoais à frente".
"Esse desapego e a falta de ambições pessoais de Rosa", acrescentou, "aliados à entrega às causas e convicções, não têm paralelo na política do Ceará".
Durante essa quarta-feira, 1º de junho, esse reconhecimento se expressou em palavras manifestadas por políticos dos mais variados campos do espectro ideológico.
Governadora do Estado, Izolda Cela (PDT) lamentou a perda. "Mulher de luta, foi representante de movimentos sindicais e sempre guiou sua atuação pela igualdade dos direitos aos mais necessitados. Além disso, desafiou a Ditadura Militar com muita bravura", escreveu.
Recebi com muito pesar a notícia da morte da professora e ex-vereadora Rosa da Fonseca. Mulher de luta, foi representante de movimentos sindicais e sempre guiou sua atuação pela igualdade dos direitos aos mais necessitados. (cont) pic.twitter.com/TkzrGVIGOV
— Izolda Cela (@IzoldaCelaCe) June 1, 2022
Ex-titular do Abolição, Camilo Santana (PT) registrou "imenso pesar com a notícia da morte de Rosa da Fonseca", enfatizando que a ativista e professora "foi exemplo de luta e resistência, tendo enfrentado, com sua coragem, a Ditadura Militar, período mais difícil do nosso Brasil".
Recebi com imenso pesar a notícia da morte de Rosa da Fonseca. Professora e ex-vereadora de Fortaleza, Rosa foi exemplo de luta e resistência, tendo enfrentado, com sua coragem, a Ditadura Militar, período mais difícil do nosso Brasil. Meus sinceros sentimentos à família e amigos pic.twitter.com/64asTiPP7p
— Camilo Santana (@CamiloSantanaCE) June 1, 2022
Deputado federal pelo PT, José Guimarães afirmou que o "falecimento de Rosa enche meu coração de tristeza" e que "a ex-vereadora foi uma guerreira" que dedicou a vida "à luta por justiça social e esteve na linha de frente contra a ditadura", deixando um legado "inscrito nos anais da história revolucionária do Ceará".
O falecimento de Rosa da Fonseca enche o meu coração de tristeza. A ex-vereadora foi uma guerreira. Dedicou a vida à luta por justiça social e esteve na linha de frente contra a ditadura. (+) pic.twitter.com/ue2OI11eDU
— José Guimarães (@guimaraes13PT) June 1, 2022
Já o ex-prefeito de Fortaleza, Roberto Cláudio (PDT), reconheceu que "a história de vida de Rosa da Fonsêca tem como sinônimo um permanente compromisso com a defesa do seu povo" e que a militante foi "uma mulher de fibra que desafiou regimes ditatoriais e que soube, como poucos, fazer da luta política um sacerdócio de muita fé".
Também deputado federal, Capitão Wagner (União Brasil) lembrou de haver tido "a honra e bela experiência de conviver com Rosa da Fonseca", com quem, "independente de posições políticas", sempre teve boa relação, "a ponto de eu ganhar um apartamento em rifa promovida por ela". Em seguida, desejou conforto espiritual aos familiares de Rosa.
Tive a honra e bela experiência de conviver com Rosa da Fonseca e independente de posições políticas, sempre convivemos muito bem(a ponto de eu ganhar um apartamento em rifa promovida por ela). Lamento seu falecimento! Desejo que Deus conforte os corações dos amigos e familiares pic.twitter.com/fGxwMDZTXz
— Capitão Wagner (@capitao_wagner) June 1, 2022
Rosa da Fonsêca nunca coube em cargos ou instituições
No ensaio biográfico que assino sobre Rosa da Fonsêca para a coleção Terra Bárbara, pelas Edições Demócrito Rocha, escrevi que dificilmente alguém na história política do Ceará fez tanto barulho com tão pouca atuação institucional. Quando falamos de Rosa, mencionamos "a ex-vereadora". Só ex-vereadora?
Sim, é comum colegas jornalistas perguntarem sobre outros cargos. Não foi deputada? Não. Foi presidente da CUT Ceará, mas definitivamente o tamanho de Rosa não cabe nos cargos que ela ocupou. Ela não gostava de instituições — é emancipadora. O papel que ela tem não é por causa desse ou daquele cargo.
Tanto que, nesse solitário mandato, ela não está na foto oficial da posse. Porque, durante a solenidade, soube que uma comunidade estava sendo expulsa das moradias e abandonou a sessão para ir até o local.
Sem mandato, em 10 de janeiro de 1988 O POVO a descrevia: "A mulher mais polêmica do Ceará". Foi das mais incômodas opositoras de Juraci Magalhães, de Ciro Gomes.
Sobre Tasso Jereissati, O POVO também citava naquele mesmo 10 de janeiro: "A simples alusão a seu nome é capaz de desconcertar o governador Tasso Jereissati".
Rompeu com o PCdoB e foi expulsa do PT. Atuou contra a ditadura militar e queria fazer parte da luta armada. Como não tinha aptidão para pegar em armas, decidiu cursar enfermagem — desistiu ao chegar às aulas práticas, da anatomia, e ver que aquilo não era para ela.
Estava na organização da luta pela anistia, até a ocupação do Cocó, em 2013, quando deu dores de cabeça a Cid Gomes. Ela coordenou o primeiro protesto do "Fora, Collor", em Juazeiro do Norte, que fez o ex-presidente dizer que tinha "aquilo roxo". Rosa fez isso e muito mais.
Mesmo os maiores desafetos hão de reconhecer nela alguém que sempre se moveu por profunda convicção no que acredita, sem jamais colocar ambições pessoais à frente. Mostra foi dada quando ela pediu demissão do cargo de auditora fiscal concursada da Secretaria da Fazenda do Estado (Sefaz) para ser professora da rede pública de Fortaleza. Era assim, como professora, que Rosa era identificada, mais que como ex-vereadora.
Esse desapego e a falta de ambições pessoais de Rosa, aliados à entrega às causa e convicções, não têm paralelo na política do Ceará. (Érico Firmo)
Melhor história da militante radical foi ter continuado ser sempre a Rosa
Pois Rosa, fica agradecido o exemplo deixado por aqui. E não é porque você se foi que, de uma hora para outra, virou a melhor pessoa do mundo. Não. Somos dores e delícias. Ainda bem, escrevemos muito sobre seus sonhos e coletivos e protestos. Podíamos até resistir, porque nunca chegamos perto de sua radicalidade generosa para mudar o mundo, mas reportamos. Eu, Regina Ribeiro, Érico Firmo, Guálter George, Erivaldo Carvalho, Felipe Araújo e outros jornalistas do O POVO.
Por derradeiro, esperei encontrar você no dia dos 73 anos de vossa existência necessária, há umas três semanas. Não rolou, claro, porque você estava meio passarinho por causa da saúde mexida.
Pena que não nos encontraremos mais por aqui nem nesse tal "paraíso", deixei de acreditar em homens e mulheres que só perpetuam a história dos "vencedores" e ainda apoiam políticos bárbaros.
Mas olhe, tenho uma satisfação desmedida de ter tido a chance de tentar aprender com a senhora. Discurso e prática. Você foi coerente na doçura e na porrada.
Lembro da ocupação do Cocó e você diante de Cid Gomes (PDT), governador da época. Foi dialógica até onde o proselitismo rompeu o aceitável. Era apenas o corte de castanholeiras, espécies exóticas e invasoras. Porém, o fundamento radical era conseguir legalizar o Parque e expandir a consciência sobre a necessidade de uma árvore, também, ter direito à Cidade.
Há outras histórias sobre você, muitas. A melhor delas, foi a senhora ter continuado a ser a Rosa. (Demitri Túlio)
Biografia traçou perfil de Rosa da Fonsêca
Em maio de 2017, Rosa da Fonsêca teve sua biografia lançada pela editora Demócrito Rocha, dentro da Coleção Terra Bárbara.
A obra foi escrita pelo jornalista Érico Firmo, editor-executivo do núcleo de Política do O POVO.
"O livro é, na essência, uma reportagem. A partir da Rosa, mas que acaba indo além dela. Impossível falar da Rosa sem falar da ditadura, da anistia, da reorganização dos partidos, dos sindicatos, da CUT. Dos primórdios das organizações de mulheres no Ceará. Dos governos aos quais se opôs, de Tasso Jereissati, Ciro Gomes e tantos outros. E impossível não falar de seu grupo, não falar de Maria Luiza, de Jorge Paiva, do Crítica Radical", explicou Firmo à época.
A Coleção Terra Bárbara, publicação das Edições Demócrito Rocha, coloca nas prateleiras os perfis biográficos de personalidades locais.
Já foram biografadas figuras como Moacir Lopes, Fausto Nilo, Chico Anysio, Dona Mocinha, Mário Gomes e Ednardo.
O intuito é destrinchar aspectos menos conhecidos da vida de personagens que nasceram ou escolheram o Estado como casa. A coleção surgiu no início dos anos 2000 e, a cada ano, tem novos títulos lançados.
Érico Firmo diz ter empregado esforços para fazer um livro "honesto e verdadeiro sobre quem é a Rosa".
Além disso, a publicação expressa as polêmicas que marcam a existência da biografada.
"Os confrontos são a tônica de sua trajetória e entendo que não seria verdadeiro abordar a história dela sem trazer esses embates e as contradições nas quais se envolveu e se envolve", aponta Firmo. (Carlos Holanda e Demitri Túlio)