Logo O POVO+
Israel x Hamas: as consequências de uma guerra
Politica

Israel x Hamas: as consequências de uma guerra

Conflito aberto entre Israel e Hamas uma semana atrás mergulhou o Oriente Médio num caldeirão de tensões, que se aprofundam à medida que a violência na região escala para níveis muito altos
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
CONFLITO entre Hamas e Israel já deixou mais de 3 mil mortos (Foto:  MAHMUD HAMS / AFP)
Foto: MAHMUD HAMS / AFP CONFLITO entre Hamas e Israel já deixou mais de 3 mil mortos

Uma semana e mais de três mil mortos depois, a guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas deflagrou fluxos de violência no Oriente Médio que desafiam prognósticos de analistas ouvidos pelo O POVO ao longo dos últimos dias.

Entre os cenários desenhados, nenhum é remotamente otimista. Os quadros estimados vão desde a manutenção do conflito aos contendores atuais (o estado judeu e a facção extremista) até a explosão do enfrentamento, que, nessa hipótese mais devastadora, englobaria outros atores da região, com potencial de mergulhar a área num caldeirão de proporções inéditas.

Um deles, e talvez seu principal, é o Hezbollah, outro bloco radical cujo suporte bélico e de articulação é provido pelo Irã, um inimigo de peso das forças israelenses. Adversária dos Estados Unidos e do mundo ocidental de modo geral, a nação iraniana tem esboçado movimentos ainda hesitantes, sem indicação clara de que de fato pretenda entrar na disputa armada.

Enquanto isso, Israel avança seus batalhões sobre a Faixa de Gaza, asfixiando o território de pouco mais de 350 quilômetros quadrados onde vivem cerca de 2,3 milhões de habitantes, num espaço densamente povoado.

Na última sexta-feira, 13, em meio às tensões provocadas por iminente invasão da Palestina e das previsões de baixas civis ainda mais numerosas na esteira do ultimato de evacuação, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, declarou: “Nossos inimigos apenas começaram a pagar o preço. Não vou detalhar o que virá a seguir, mas estou dizendo a vocês, é apenas o começo”.

LEIA TAMBÉM"Hamas não é sinônimo de Palestina", afirma pesquisador

Doutor em Relações Internacionais pela USP e editor da newsletter “Tarkiz”, sobre a política do Oriente Médio, o pesquisador José Antônio Lima avalia os efeitos de um choque que parece apenas no seu começo.

Segundo ele, há três desdobramentos possíveis, entre outros menos prováveis, para o andamento da refrega ora em curso, dos quais “o menos pior, mas que é terrível por si só, é uma guerra apenas entre Hamas e Israel”.

“Esta seria a sexta guerra circunscrita a esses dois atores desde 2007. O que a gente provavelmente vai ver é uma quantidade de mortes na Faixa de Gaza extremamente alta. Digo isso porque conflitos anteriores mostraram que a lógica que funciona ali é o Hamas matando algumas dezenas de israelenses, enquanto as forças israelenses matam na casa de milhares de palestinos”, projeta Lima.

De acordo com ele, porém, há desfechos mais graves que esse. Um deles seria o espraiamento da batalha, com raio ampliado para “outros setores palestinos, em específico na cidade de Jerusalém e na Cisjordânia”, desencadeando uma “instabilidade urbana entre a Cisjordânia e as forças israelenses”.

E, finalmente, um último panorama ainda mais preocupante: uma luta em âmbito regional, arrastando Irã e Líbano, por exemplo, além de EUA e eventualmente outros países do mundo árabe.

Ainda conforme Lima, no entanto, Israel deve tentar assegurar que o embate se restrinja ao estado e ao Hamas, exatamente para evitar que outras frentes de combate se instaurem, como a fronteira mais ao norte, onde o Hezbollah é atuante e de onde já foram lançados foguetes desde o ato de ataque inaugural do Hamas no sábado, 7, que matou centenas de cidadãos judeus.

“Israel vai tentar manter a crise circunscrita a Gaza”, explica o estudioso, acrescentando que “o problema é que a violência que já está sendo perpetrada e que ainda vai ser, em especial quando tiver início a intervenção, tende a facilitar a chegada do segundo cenário” (aprofundamento e extensão do conflito).

Para Matheus Hernandez, professor de Relações Internacionais e do Mestrado em Fronteiras e Direitos Humanos da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), não há dúvida de que a disputa aberta desde a última semana se revelou “como uma fratura geopolítica”.

“Não é uma guerra inédita nem surpreende, é um dos conflitos mais renitentes que a gente tem na era moderna, no pós-Segunda Guerra”, examina o docente, para quem, apesar disso, o momento comporta novidades, tal como o grau de violência de parte a parte.

Um dos fatores que operam como combustível no Oriente Médio, enfatiza, é a falha na execução da solução dos dois estados (um de Israel e outro da Palestina, proposta encampada pela ONU, mas até hoje não levada a cabo).

“Acabou sendo um projeto incompleto, porque a solução dos dois estados, da qual não apenas o Brasil é entusiasta, nunca se realizou. Então esse é um dos motivos pelos quais o Hamas surge”, responde Hernandez.

Também professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Rodrigo Barros de Albuquerque ressalta que, embora seja verdade que a queda de braço entre Israel e o Hamas remonte a décadas, há variáveis distintas que podem resultar em efeitos igualmente diferentes.

Questionado sobre quais sãos os corolários imediatos da guerra, Albuquerque cita dois mais palpáveis: “A alta no preço do barril de petróleo, que começou a subir já nas primeiras horas do conflito, e a mudança de foco da mídia: se a guerra continuar escalando, a falta de atenção à Ucrânia, que já está ocorrendo, tenderá a piorar, dificultando o acesso do país a recursos para continuar resistindo aos ataques russos”.

DISPUTA TERRITORIAL É A RAIZ DA GUERRA
DISPUTA TERRITORIAL É A RAIZ DA GUERRA Crédito: Luciana Pimenta

Michel Gherman, professor da UFRJ
Michel Gherman, professor da UFRJ

"Não tenho ilusão de a resposta de Israel não ser violenta", diz Michel Gherman

Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Michel Gherman avalia que o conflito entre Israel e o grupo terrorista Hamas deve se concentrar nesses dois atores, sem se estender para outras nações ou organizações que atuam na região.

Para o pesquisador, “a possibilidade de que essa guerra seja mais local do que regional ou de grandes proporções tem a ver com dois grupos que estão muito deslegitimados e que se enfrentam agora”.

O primeiro, aponta, é “o atual governo de Israel, que tem pouca legitimidade internacional”, à frente do qual está o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. O segundo “é o próprio Hamas”, cujo ataque massivo no sábado, 7, matou civis e militares judeus, além de estrangeiros – entre os quais pelo menos três brasileiros.

“Acho que essa guerra pode ser, por conta da falta de legitimidade dos agentes, mais local do que regional, mas isso a gente vai ver com o tempo”, projeta o especialista.

Também membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos da UFRJ e coordenador acadêmico do Instituto Brasil-Israel, Gherman trata, na entrevista ao O POVO, de episódio que o envolveu diretamente na última semana.

Ao participar de uma discussão na PUC-Rio com o tema “Hamas x Israel: impressões iniciais e algumas projeções”, na terça-feira, 10, o docente foi confrontado por alguns estudantes presentes. Sob gritos de que ele não os representava, o professor chegou a deixar a sala, mas logo retornou.

À reportagem, Gherman, que é judeu e se referiu ao Hamas como terrorista desde o início do debate acadêmico, assegura que a conduta dessa parcela minoritária de alunos “não tem nada a ver com polarização política”.

“Tem a ver com tentativa de controle, de sequestro, de silenciamento a partir da intervenção violenta de um grupo”, classifica.

O POVO - Já é possível antecipar consequências dessa nova guerra tanto no Oriente Médio quanto fora da região?

Michel Gherman - A gente ainda não sabe. Alguns analistas acreditam que essa é uma guerra que tende a ficar restrita entre o Hamas e Israel, porque é uma guerra que não interessa às grandes potências, e mesmo para as potências regionais, que ela se expanda. Há outros analistas que acreditam que essa guerra pode se expandir, sim, porque foge um pouco a dinâmicas que são controláveis, como, por exemplo, a entrada do Hezbollah. Ela pode depender de interesses ou pode ser arrebatada por conta de um avanço da violência com bombardeios no norte. A entrada do Hezbollah pode desencadear uma guerra regional, com a entrada do Irã. Até agora ninguém quer a guerra de Israel com Irã, seria uma guerra de porte mundial e que afetaria relações muito profundas. Mas acho que a gente precisa ainda esperar um pouco para entender o que vai acontecer. A possibilidade de que essa guerra seja mais local do que regional ou de grandes proporções tem a ver com dois grupos que estão muito deslegitimados e que se enfrentam agora, que é o atual governo de Israel (veja bem, essa guerra não é dele, é da sociedade israelense, e o massacre que o Hamas produziu contra a população israelense tem a ver com a guerra que se segue), que tem pouca legitimidade internacional, e o próprio Hamas. Então acho que essa guerra pode ser, por conta da falta de legitimidade dos agentes, mais local do que regional, mas isso a gente vai ver com o tempo.

OP - Para Israel, quais os efeitos imediatos de uma resposta ao Hamas que acabe provocando também grande número de mortes de civis?

Michel Gherman - A gente vai ter um número de civis mortos nessa fase muito triste e dolorosa na resposta de Israel, mas é uma resposta que a gente já espera por conta da bárbara violência que o Hamas promoveu dentro da sociedade israelense, com alvos civis, crianças e mulheres. É terrível. A gente não tem nenhum tipo de ilusão de que a resposta não vai ser violenta. Israel tem uma janela de tempo para produzir o que eles chamam de derrubada da infraestrutura de terror do Hamas, só que tem dois elementos que são importantes que sejam ditos. O primeiro elemento é o da violência do Hamas, que foge à nossa compreensão e que acaba produzindo uma demanda de resposta social muito grande. O segundo é a presença dos reféns. Israel tem uma tradição de respeitar a vida dos reféns, a tal ponto que é capaz de trocar milhares de prisioneiros por um refém. A gente tem talvez centenas de reféns. De qualquer maneira, apesar da violência do Hamas, que dá uma janela de tempo maior, não acho que Israel não vai também perder legitimidade com as violências que vão surgindo nos próximos tempos.

OP - Como avalia a repercussão política da guerra no Brasil?

Michel Gherman - Tem a repercussão social e pública. Temos aí, galvanizado pelas redes sociais, o debate entre os "a favor" e os "contra", sabe-se lá deus a quê, mas tem sempre isso, esquerda e direita, nós e eles. E tem uma repercussão mais política no sentido estrito da palavra, que é o posicionamento do Brasil, que tem uma relação boa tanto com palestinos quanto com israelenses, principalmente no governo Lula, e que agora se estabelece a partir de um lugar, que é o lugar do cuidado. O Brasil, a partir da definição do Conselho de Segurança da ONU, não chama o Hamas de grupo terrorista, mas tem feito notas que colocam o Hamas como grupo que promoveu o terror, na minha opinião muita acertadas. E acho que isso tem a ver com o interesse do Brasil em se cacifar, principalmente no governo Lula, como um futuro e possível negociador da paz entre os novos israelenses depois da guerra e os novos palestinos.

OP - A que atribui o episódio na PUC do Rio de Janeiro na última terça-feira, 10? Vê ali alguma relação com a polarização do país?

Michel Gherman - É interessante porque eu estava lá, tinha 100 alunos na sala, era uma sala relativamente grande e tinha bastante gente, gente no chão etc. E o que houve foi uma tentativa de silenciamento de um grupo de alunos em relação à mesa. A mesa era híbrida, formada por um professor que estava falando desde o Marrocos (Nizar Messari, da Al Akhawayn University) e mais três professores. Tinha eu (IFCS/UFRJ), a Mônica Herz (IRI/-PUC-Rio) e o Márcio Scalercio (IRI/PUC-Rio). Na mesa, o único que não era judeu era o Márcio, que começou sua declaração falando basicamente que o “inferno vai gelar antes de eu considerar legítima a violência que o Hamas fez em Israel”. Ou seja, ele condenou a violência do Hamas na sua primeira intervenção. Eu chamei o Hamas de terrorista algumas vezes, falei de barbárie, e a Mônica também. Ela era mediadora, mas também deixou isso claro. Então acho que não tem nada a ver com polarização, não. Acho que tem a ver com tentativa de controle, de sequestro, de silenciamento a partir da intervenção violenta de um grupo. É interessante porque não sei nem qual é a questão, porque todo mundo ali falou que o Hamas é violento, só que esse grupo que foi lá com uma postura e posicionamento que, ao que tudo indica, é de agenda anterior. Até porque tem alguns elementos e sinais importantes. Tem um documento logo depois que fala simplesmente que o “Michel Gherman, judeu sionista, professor e pesquisador de universidades em Israel”... Isso é antissemita, é uma loucura. E tem uma lista de professores que “apoiam” o Hamas que está circulando por aí para as pessoas preencherem. Isso é um projeto que tem a ver com a extrema-direita, tem a ver com o suco de bolsonarismo, resquício de bolsonarismo, não tem a ver com polarização. Das 100 pessoas, talvez 95% ali eram pessoas de esquerda, progressistas, eleitoras do Lula. E elas não polarizaram com esse grupo. Esse grupo foi lá para intervir e silenciar. E também não é um grupo de direita, é um grupo de extrema-direita. A gente não estava numa mesa pró-Palestina e pró-Hamas. Estávamos em uma mesa que considerava o Hamas francamente um grupo terrorista. Todo mundo falou sobre isso, expressou isso de maneira clara. Mas acho que um dos elementos fundamentais da extrema-direita é a não-escuta. Quando reage, faz isso a partir da estrutura de categorias que acha que você vai dizer. Ele sai de casa com opinião formada, vai à rua e, se percebe que a pessoa está falando o contrário, continua com a opinião formada anterior. Essa extrema-direita tem como perspectiva a ideia de que o que acha é verdade, não importa a realidade, além da ideia da formação de inimigos. Inimigos que têm que ser destruídos. Naquele momento, o inimigo era eu. Tinha que ser destruído por causa de alguma agenda escondida, secreta. É a mesma categoria do antissemitismo, a ideia de que o judeu é perigoso porque tem uma agenda. Isso é característico dos grupos da extrema-direita. E ainda tem a comunicação nas redes sociais, em que se está acostumado a falar consigo mesmo, com bolhas, falar com pessoas que pensam igual a você. Quando você vai para uma realidade em que a bolha não é o que existe, você fica irritado porque as pessoas estão falando o contrário ou, pelo menos, estão falando coisas diferentes. Nesse caso da PUC, o mais interessante, pra gente entender a extrema-direita, é entender que você não está falando o contrário do que esperavam que você dissesse. Está falando quase o que ele acredita, mas é diferente. E justamente por ser diferente, isso irrita muito.

O que você achou desse conteúdo?