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Ceará ultrapassa os 6 mil óbitos por coronavírus
Reportagem

Ceará ultrapassa os 6 mil óbitos por coronavírus

Presidente da Atrac e ativista LGBTQIA , a travesti Thina Rodrigues morreu ontem, aos 57 anos, de Covid-19. Ela compõe os mais de 6 mil óbitos registrados no Ceará
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O CENTRO homenageia a travesti Thina Rodrigues, ativista pelos direitos dos LGBTs no Ceará que morreu por complicações da Covid-19 em 2020 (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA O CENTRO homenageia a travesti Thina Rodrigues, ativista pelos direitos dos LGBTs no Ceará que morreu por complicações da Covid-19 em 2020

Preta, travesti, sertaneja, ativista, Thina Rodrigues viveu e lutou por mais de 35 anos pela causa LGBTQIA , em Fortaleza e no Ceará. A vida de enfrentamento de preconceitos a levou a fundar, junto com Janaína Dutra, a Associação das Travestis do Ceará (Atrac), e a compor o grupo de articuladoras da Coordenadoria Especial pela Diversidade Sexual de Fortaleza. A trajetória de muitas batalhas foi interrompida nesta segunda-feira, 29, pela Covid-19. Aos 57 anos, Thina faleceu por complicações da doença que, ontem, alcançou o número de 6.087 óbitos no Ceará.

Titular da coordenadoria e amiga de Thina, Dediane Souza conta que a articuladora diante da pandemia, seguia cuidando das travestis, em especial, das que permanecem realizando trabalhos sexuais. Thina estava, até precisar ser internada, à frente da distribuição de cestas básicas a essa população mais vulnerável. "Mas sempre com muito cuidado, ela era muito cuidadosa. Tinha uma coleção de máscaras, vivia passando álcool gel, chegava na sala já passando água sanitária", relembra.

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Thina começou a apresentar os sintomas cerca de uma semana antes de buscar atendimento na UPA da Praia de Iracema, dia 18 de maio, e durante o tempo que ficou internada, se preocupava constantemente com os gatos e cachorros, bichinhos de estimação adotados a quem devotava parte da vida. Com o quadro agravado, Thina precisou ser transferida para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Geral de Fortaleza (HGF), onde faleceu.

Enquanto organizava os últimos detalhes para o sepultamento, que também foi realizado ontem, Dediane relembrava a força e a alegria com que Thina sempre pontuou suas causas. Natural de Brejo Santo, Thina deixou a Cidade natal, após ser rejeitada pela família por conta da própria sexualidade. Em Fortaleza, começou a ser transformista aos 22 anos e, aos 25, iniciou as mudanças no corpo. Na década de 1980, em plena Ditadura Militar, foi presa por ser travesti.

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"Ela representava uma maternidade pra gente. Foi uma travesti que viveu a ditadura, foi presa, que teve muitos confrontos por conta da própria identidade de gênero, mas que também teve e ocupou muitos espaços onde nunca se imaginou ter uma travesti. Foi homenageada em Assembleia Legislativa, foi pauta de debate na Câmara Municipal, figura importante do ativismo nacional. Ela é um misto de muita coragem e ousadia, mas também de muita alegria, doçura e irreverência", define a coordenadora.

A ativista foi uma das 14 pessoas que faleceram no dia de ontem, no Estado, e compõe as 3.273 pessoas que perderam a vida, em Fortaleza, pela Covid-19. A Capital, ainda que a pandemia viva uma interiorização dos casos e óbitos, ainda concentra 53,7% dos óbitos e tem 35.157 casos dos 109.403 registros confirmados da doença no Estado, de acordo com a plataforma IntegraSUS, da Secretaria da Saúde do Estado (Sesa).

Apontando que os mais de 6 mil óbitos do Ceará já representam mais de 10% das mortes do País, o médico infectologista do Hospital São José e professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e da Universidade de Fortaleza (Unifor) Érico Arruda indica que, mesmo com a tendência de interiorização da doença, há o temor de que Fortaleza viva uma nova onda de contaminações. "É a preocupação de todos nós, que vivemos o sufoco de três semanas atrás, é se não vamos ter um recrudescimento desse cenário, de voltar a ter esse problema outra vez. Se a pesquisa aponta que tem cerca de 14% da população que teve, se a gente olha por outro lado, tem 85% da população que ainda pode ter", salienta.

 

Cidades com mais óbitos por Covid-19 no Ceará

Fortaleza: 3.273 óbitos
Caucaia: 275 óbitos
Sobral: 225 óbitos
Maracanaú: 212 óbitos
Maranguape: 91 óbitos
Juazeiro do Norte: 88 óbitos
Itapipoca: 79 óbitos
Cascavel: 72 óbitos
Pacatuba: 68 óbitos
Camocim: 59 óbitos

Fonte: IntegraSUS, na segunda-feira, 29 de junho

O poeta José Estelito junto à esposa Marinete, a neta Narjara e a bisneta Mariana
O poeta José Estelito junto à esposa Marinete, a neta Narjara e a bisneta Mariana

Maioria entre os mortos por Covid-19 no Ceará, idosos deixam histórias e famílias

Quando se fala das pessoas que a Covid-19 mata, costumeiramente, salienta-se as comorbidades e a idade dos pacientes que tiveram as vidas ceifadas. É como se, aos 80 anos, faixa etária em que estão concentrados 31,4% dos 6.087 óbitos no Ceará, a morte pudesse doer menos. Mas longe disso. Foi ao longo da vida longeva de seu José Estelito Assunção Pires, 83, que uma família inteira se criou. Tanto que a partida dele, devido às complicações do patógeno, dia 4 de maio, foi sentida pelos cinco filhos que o comerciante e poeta teve com a esposa Marinete, 79 - com quem completaria dia 3 de julho 60 anos de casado -, pelos oito netos, pela bisneta, e por uma legião de amigos que cultivava, regada à poesia, no botequim, no bairro Messejana.

"É muito cruel essa hierarquização da vida. Quando falavam 'Ah! Mas essa doença só mata idoso, acima de 80 anos'. Eu pensava: '80 anos tem o meu avô que é o amor da minha vida, a inspiração e a fonte de afeto de toda minha família’. Quem fala isso não leva em conta o tanto de amor, afeto e história que a vida dele carregou", frisa Narjara Pires, 33, servidora pública e neta mais velha de Estelito.

A doença acometeu oito pessoas da família, que mora em casas muito próximas em Messejana. Estelito, que tinha diagnóstico de Alzheimer, convivia com sinais moderados da síndrome e precisava de cuidados das filhas que não moravam com ele. As febres constantes, primeiro sinal da Covid-19 no poeta, o abateram no meio de abril e foram o motivo para levá-lo para o atendimento médico, quando teve o diagnóstico de Covid-19. Foram 12 dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Leonardo da Vinci, em Fortaleza.

Narjara relembra que a rotina, para além da preocupação natural de ver o avô internado, era de "sofrimentos sobrepostos", por conta da natureza da doença. “É muito duro ficar longe, não poder ter contato, não poder cuidar. Saber só de informações clínicas, mas não como ele se sentia, se sabia onde estava", conta. O luto - sem uma cerimônia, sem poder juntar os familiares, a dor solitária - foi arrebatador.

Prestes a completar dois meses dessa saudade, a neta tem escrito as memórias que guarda do avô, os diálogos filosóficos que travavam, o carinho imenso que nutriam, a afeição e a retidão de caráter que lhe eram muito próprias, os versos de repentista que ele distribuía a quem ia na bodega e que eram muito cheios de referências da terra natal, o distrito de Telha, em Aquiraz. "Escrevo pras pessoas terem a dimensão de quem ele era e o que ele representa na minha vida. Ele é minha pessoa preferida no mundo. Naquele dia, eu perdi a raiz mais profunda da minha alma", lamenta.

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