Resultados preliminares de uma pesquisa desenvolvida pelo Ministério da Saúde (MS) durante a pandemia de Covid-19 apontam uma proporção de ansiedade em 86,5% das 17.500 pessoas que responderam ao questionário do estudo. Em nota ao O POVO, o órgão afirmou, ainda, que a pesquisa aponta moderada presença de transtorno de estresse pós-traumático (45,5%) e baixa proporção de depressão em sua forma mais grave (16%).
No Ceará, segundo dados da Secretaria da Saúde do Estado (Sesa), ansiedade (30,1%), choro fácil (14,2%) e tristeza (14,2%) foram os sintomas mais relatados nos 3.375 atendimentos realizados pelo projeto CoVida entre os dias 22 de abril e 31 de julho. A iniciativa cearense foi criada para oferecer orientação em saúde mental à população e para dar suporte a profissionais da saúde.
Sintomas de ansiedade e depressão têm aumentado em diversos países e, em maio, a Organização Mundial da Saúde (OMS) já havia alertado sobre a necessidade de se aumentar os investimentos em serviços de saúde mental durante a pandemia. Nesse contexto, em pesquisa da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), realizada entre os dias 6 e 9 de maio com associados, 89,2% dos entrevistados apontaram agravamento dos sintomas psiquiátricos nos pacientes em tratamento.
A quebra de rotina, a incerteza sobre o futuro, o isolamento forçado, a solidão, o número de mortes em decorrência da Covid-19, o luto sem os devidos rituais de despedida, o aumento de ingestão de álcool e outras drogas, o receio de se infectar e, uma vez com a doença, o medo relacionado à evolução dela são alguns fatores ligados à pandemia que podem tornar as pessoas mais suscetíveis a transtornos mentais.
A depressão, segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas/OMS), é a principal causa de incapacidade em todo o mundo. Ela — assim como outros transtornos mentais — é decorrente da interação entre genes e o ambiente. Pessoas sem vulnerabilidade biológica podem desenvolver a doença por conta de um trauma muito forte; já para pessoas com mais predisposição, eventos menos traumáticos podem ser suficientes para desencadeá-la.
"Fatores negativos de adversidade na vida vão estar em um jogo com a vulnerabilidade genética", afirma o psiquiatra Jair Mari, professor titular do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e professor honorário do Instituto de Psiquiatria do King's College, de Londres. E no Brasil, segundo aponta o médico, "os eventos estressantes são muito frequentes". Violência urbana, mortes em acidentes de trânsito e violência contra meninas e mulheres são alguns dos eventos citados por ele.
Aprendizado em lidar com a ansiedade
Desde criança, a professora de português Kathleen Barros, 25, apresentava sinais de ansiedade, mas foi só na vida adulta que ela começou a entender que alguns comportamentos eram sintomas do transtorno. Mesmo assim, conta que demorou um pouco para decidir buscar ajuda. Precisou de um tempo para desconstruir estigmas que ela mesma tinha em relação à psicoterapia.
Em um momento complicado pelo qual passou, Kathleen sentiu o preconceito. "As pessoas não queriam me chamar porque eu estava em crise, então eu podia 'sugar' a energia", conta.
Na família, por sua vez, ela recebe grande apoio emocional e conversa com todos sobre o que está sentindo. Entre os amigos também há suporte. "Minha mãe e meus parentes também conseguem respeitar mais. Quando vamos falando abertamente sobre isso, quando vamos conversando e explicando nossos sentimentos e nossas sensações para eles, eles vão conseguindo mudar essas percepções que foram criadas ao longo do tempo."
A pandemia trouxe dias "muito difíceis" para a professora, com incerteza e medo em relação ao futuro. Às vezes, por exemplo, pensa que vai adoecer se sair de casa para receber uma encomenda. "Tenho buscado coisas para fazer, ver o que pode ser feito para diminuir (a ansiedade), e tentado dar uma reduzida em tudo isso que está acontecendo na minha cabeça. Mas, em grande parte, é uma luta."
Desafios da assistência à saúde mental
A pandemia de Covid-19 pode ser dividida em dois momentos: no primeiro, o distanciamento social foi estabelecido e grande parte da população ficou em casa. Nesse contexto, predominou o medo do desconhecido. Em seguida, conforme os conhecimentos em termos de tratamento avançaram e as atividades econômicas foram retomadas, a população voltou às ruas.
Reflexo desse momento inicial foi a queda no número de atendimentos de emergência no Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto (HSM), em Messejana. Em contrapartida, houve uma proporção maior de atendimento a pacientes com algum transtorno de humor mais graves. Pela falta de acesso aos serviços de saúde, pacientes que antes eram considerados estáveis passaram a ter crises. Espera-se, então, que no momento seguinte, os atendimentos a esses casos aumentem.
"E, de fato, em agosto voltou a aumentar o atendimento na emergência. Inclusive, vemos mais essa piora desses quadros que estavam estáveis do que o aparecimento de casos novos", afirma o psiquiatra Davi Queiroz, diretor técnico do HSM, coordenador de Políticas em Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da Secretaria da Saúde do Estado (Copom/Sesa) e membro da diretoria da Sociedade Cearense de Psiquiatria (Socep).
No início da pandemia no Ceará, a Prefeitura de Fortaleza construiu um plano de contingência em saúde mental, em que foi estabelecido o funcionamento da rede de atenção psicossocial no município, que conta com 23 serviços — entre eles, 15 Centros de Atenção Psicossocial (Caps), três residências terapêuticas, cinco unidades de acolhimento e os serviços de internação e desintoxicação. As atividades de grupo foram suspensas temporariamente. A rede ofertou atendimento individual, visitas domiciliares agendadas e visitas de urgência, além do atendimento online.
"Tivemos um fortalecimento das ações de saúde mental no que se refere ao acolhimento do usuário e do familiar na rede, no acolhimento das crises psiquiátricas. Além dos nossos usuários que já são acompanhados no serviço, tivemos uma demanda externa considerável, (pessoas) que buscaram o serviço com fobias, crise de ansiedade, depressão refratária (resistente a tratamento)", afirma Harrismana Pinto, gerente da Célula de Atenção à Saúde Mental da Secretaria Municipal da Saúde (SMS).
No Ceará, ainda não há definição sobre os projetos e investimentos a serem adotados para suprir as necessidades decorrentes da pandemia. Porém, há discussões sobre o assunto. "O Estado pensa em avaliar o cofinanciamento de algumas ações (junto aos municípios) em relação inclusive aos impactos advindos da pandemia", afirma Davi Queiroz.
Ele destaca, ainda, que há programas que seguem sendo realizados. O gestor cita um programa de especialização em saúde mental junto à Escola de Saúde Pública do Estado (ESP) e uma parceria com nove unidades terapêuticas para acolhimento de pessoas com problemas por uso de substâncias. "(Também) estamos construindo um fluxo estadual de prevenção do suicídio. Então, a Copom tem uma série de ações que já estão acontecendo, mas ainda vamos ter que entender o que emergiu da pandemia", afirma.
Em nota, o Ministério da Saúde elenca que o SUS dispõe de cerca de 42 mil Unidades Básica de Saúde (UBS), na Atenção Primária, que atendem 63% da população, e 2.657 Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que ofertam acolhimento e tratamento à pessoa em sofrimento e/ou com transtorno mental e seus familiares. (Gabriela Custódio)