Era final de abril de 2020, meados de maio, quando Karla Pinheiro, 25, percebeu o sono desregulado. Chegou um momento em que, mesmo sem ter feito uso de cafeína ou de qualquer outra substância estimulante, ela ficou 40 horas ininterruptas sem dormir. Quando o primeiro caso de Covid-19 no Brasil ainda nem tinha sido confirmado, a estudante do último semestre de Medicina já sabia que este ano seria mais difícil do que os anteriores — afinal, a seleção para a residência médica aproximava-se, e as responsabilidades no internato seriam cada vez maiores. A pandemia, porém, complicou esse cenário.
A mudança no dia a dia na faculdade, a maior frequência das brigas com o irmão, o envolvimento emocional ao entrar em contato com familiares de pacientes com Covid-19 e a angústia por não saber quando poderá ver e abraçar novamente os parentes que moram no interior do Estado marcaram os últimos meses. A cada apresentação virtual de trabalho, o nervosismo vinha acompanhado de sintomas como taquicardia, tremor e formigamento nas mãos. Outro sinal da ansiedade foi a fome nervosa.
"Eu comia não porque tinha fome, mas porque tinha a sensação constante de que faltava algo, de que tinha que fazer alguma coisa. E, quando não estava fazendo nada, ia comer. Acabei ganhando peso nesse período", conta.
O relato de Karla não é incomum. Resultados preliminares de uma pesquisa desenvolvida pelo Ministério da Saúde (MS) durante a pandemia de Covid-19 apontam uma proporção de ansiedade em 86,5% das 17.500 pessoas que responderam ao questionário do estudo. Em nota ao O POVO, o órgão afirmou, ainda, que a pesquisa aponta moderada presença de transtorno de estresse pós-traumático (45,5%) e baixa proporção de depressão em sua forma mais grave (16%). A pesquisa está em sua segunda etapa, em que foi incluído o uso de álcool.
No Ceará, segundo dados da Secretaria da Saúde do Estado (Sesa), ansiedade (30,1%), choro fácil (14,2%) e tristeza (14,2%) foram os sintomas mais relatados nos 3.375 atendimentos realizados pelo projeto CoVida entre os dias 22 de abril e 31 de julho. A iniciativa cearense foi criada para oferecer orientação em saúde mental à população e para dar suporte a profissionais da saúde.
Sintomas de ansiedade e depressão têm aumentado em diversos países, e em maio a Organização Mundial da Saúde (OMS) já havia alertado sobre a necessidade de se aumentar os investimentos em serviços de saúde mental durante a pandemia. Nesse contexto, em pesquisa da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) realizada entre os dias 6 e 9 de maio com associados, 89,2% dos entrevistados apontaram agravamento dos sintomas psiquiátricos nos pacientes em tratamento.
A quebra de rotina, a incerteza sobre o futuro, o isolamento forçado, a solidão, o número de mortes em decorrência da Covid-19, o luto sem os devidos rituais de despedida, o aumento de ingestão de álcool e outras drogas, o receio de se infectar e, uma vez com a doença, o medo relacionado à evolução dela são alguns fatores ligados à pandemia que podem tornar as pessoas mais suscetíveis a transtornos mentais.
A depressão, segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas/OMS), é a principal causa de incapacidade em todo o mundo. Ela — assim como outros transtornos mentais — é decorrente da interação entre genes e o ambiente. Pessoas sem vulnerabilidade biológica podem desenvolver a doença por conta de um trauma muito forte; já para pessoas com mais predisposição eventos menos traumáticos podem ser suficientes para desencadeá-la.
A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) alertou, no dia 10 de setembro, que a pandemia de Covid-19 aumenta os fatores de risco para suicídio.
Estudos apontam que angústia, ansiedade e depressão têm aumentado, especialmente entre os profissionais de saúde.Quando esses fatores somam-se a questões como violência, transtornos por consumo de álcool, abuso de substâncias e sentimento de perda, podem aumentar o risco de uma pessoa decidir tirar a própria vida.
Nas Américas, cerca de 100 mil pessoas cometem suicídio todo ano, conforme dados de 2016, os mais recentes disponíveis.
Na região, a maioria ocorre em pessoas entre 25 e 44 anos (36%) e entre 45 e 59 anos (26%), e as maiores taxas estão na Guiana e Suriname. Os casos são mais comuns entre os homens, chegando a cerca de 78%. A Organização destaca a importância de as pessoas estarem conectadas umas às outras e atentas aos sinais de alerta.
Fonte:Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)
"Fatores negativos de adversidade na vida vão estar em um jogo com a vulnerabilidade genética", afirma o psiquiatra Jair Mari, professor titular do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e professor honorário do Instituto de Psiquiatria do King's College, de Londres. E no Brasil, segundo aponta o médico, "os eventos estressantes são muito frequentes". Violência urbana, mortes em acidentes de trânsito e violência contra meninas e mulheres são alguns desses eventos citados por ele.
Em meio à pandemia, alguns grupos são mais afetados diretamente: quem perdeu parentes e amigos, profissionais de saúde na linha de frente de tratamento dos doentes e quem perde fontes de renda. "É importante destacar que adoecer em momentos assim não é sinal de fraqueza, já que os mecanismos de defesa que possuímos podem não conseguir lidar com os efeitos de uma situação de pandemia. Mudanças bruscas exigem processos adaptativos", afirma a psicóloga Karine Dutra, do Núcleo de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da Fundação Oswaldo Cruz Brasília (Fiocruz Brasília).
A depressão é caracterizada por uma tristeza constante e persistente e/ou uma perda de interesse por atividades que antes se gostava de praticar. Associados, estão outros sintomas, como: alteração — para mais ou para menos — no apetite e no sono, agitação psicomotora ou retardo psicomotor, fadiga, pensamentos negativos, baixa autoestima, culpa, hipocondria e angústia.
"A pessoa tem um sofrimento muito grande, e, associado a ele, vem um sintoma que é muito importante, que é o medo do futuro. Elas acham que não vão recuperar o estado de normalidade, e é nesse momento que elas podem pensar que não vale a pena viver. Então, a intenção de acabar com a vida pode ser decorrente de um sofrimento muito profundo que a pessoa julga ser eterno", afirma o psiquiatra Jair Mari.
Fonte: Guia do movimento Falar Inspira Vida sobre depressão
Um dos subtipos da doença é a depressão resistente a tratamento (DRT), em que há baixa resposta aos medicamentos. Um estudo observacional multicêntrico realizado na América Latina aponta que, no continente, cerca de 30% dos pacientes com depressão têm esse subtipo. A pesquisa analisou 1.475 participantes de 33 serviços de atendimento clínico da Argentina, do Brasil, da Colômbia e do México. Observando-se os dados brasileiros, a taxa cresce para 40,4% dos pacientes.
A ansiedade, por si só, não é uma doença e é experimentada por todos em algum nível. O problema é quando ela começa a interferir na funcionalidade. "O critério para diagnóstico de transtorno de ansiedade generalizada é que a preocupação excessiva, a apreensão e a tensão sobre eventos e problemas estejam atuando por um período de pelo menos seis meses", afirma a psicóloga Karine Dutra.
Junto a isso, há sintomas associados, que podem ser palpitações fortes e taquicardia, sudorese, boca seca, tremores, dificuldade de respirar, dor ou desconforto torácico, náusea e desconforto estomacal. "(Também pode haver) sentimento de desrealização — sentir que coisas e ambientes são irreais —, despersonalização — sentir-se distante, não estar presente —, medo de perder o controle, desmaiar, ficar louco ou morrer. Dores musculares, inquietação, 'nervoso', 'nó na garganta', irritabilidade, dificuldade de concentração e insônia devido à preocupação."
As duas doenças podem manifestar-se isoladamente ou em conjunto. "As pessoas reagem de forma muito diferente às situações, com sintomas que estariam sendo relacionados com depressão ou com ansiedade. Tudo isso vai depender, possivelmente, dos circuitos neuroquímicos que estão subjacentes aos sintomas que ela apresenta: tem áreas de ativação cerebral que vão originar mais sintomas de ansiedade e tem áreas que, quando estimulados, originam sintomas de depressão. Ou as duas áreas dos circuitos neuroquímicos estão sendo ativadas", aponta o médico.
É normal sentir tristeza ou ansiedade no contexto da pandemia. Mas fique atento ao notar falta de concentração, irritabilidade, falta de vontade de fazer atividades das quais antes gostava e dificuldade na realização de tarefas profissionais e educacionais e nas relações interpessoais. A perda de funcionalidade é o sinal de que é necessário buscar ajuda.
É natural que você não esteja tão bem. Mas (a situação) passa a preocupar quando você percebe que já não consegue ler um artigo, fica irritado quando ouve uma música e não quer conversar com ninguém. Mas essa é a hora que você mais está precisando de ajuda.
Jair Mari, psiquiatra, professor titular do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).Uma reclamação da estudante de Medicina Karla Pinheiro foi o impacto da ansiedade na rotina de estudo. Em um período em que ela tem que se dedicar para as próximas etapas da vida profissional, a falta de concentração estava atrapalhando o rendimento. "Eu sentava, lia e, quando acabava, não me lembrava mais do que tinha lido, porque estava com a cabeça em outras responsabilidades", relata.
Neste mês de setembro, ela resolveu buscar uma psiquiatra e dar início a um tratamento medicamentoso. Além disso, retomou a atividade física e adotou novas formas de estudar. Apesar do pouco tempo, ela já sente os efeitos das mudanças, com mais disposição e sono mais regulado. "O que mais me ajudou, primeiramente, foi o apoio e o carinho das minhas amigas e da minha família. Conversar foi fundamental para todo esse processo", acrescenta.
O tratamento devem levar em conta as singularidades e as subjetividades dos pacientes. Para a psicóloga, o importante para um bom tratamento é que sejam considerados aspectos biológicos, psicológicos, psicodinâmicos, familiares, sociais e culturais. "É preciso um olhar mais integral e sistêmico por parte dos profissionais e um reconhecimento de que somos seres multideterminados, multifacetados."
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A Opas/OMS também alertou, no último dia 10 de setembro, que a pandemia da Covid-19 pode aumentar os fatores de risco para suicídio. Um estudo publicado no World Psychiatry Journal em 2002 fez uma revisão de 31 artigos científicos com publicação entre 1959 e 2001, abordando 15.629 suicídios na população geral, e apontou que em 96,8% deles caberia um diagnóstico de transtorno mental quando o ato foi cometido — e o que está mais comumente associado é a depressão. Porém, também têm relação o transtorno bipolar, o abuso de álcool e outras substâncias, o transtorno de personalidade borderline e a esquizofrenia.
A identificação precoce dos fatores de risco e o devido tratamento diminuem a probabilidade de morte por suicídio. Os sinais de alerta clássicos, segundo o psiquiatra Fábio Gomes de Matos, coordenador do Programa de Apoio à Vida da Universidade Federal do Ceará (Pravida/UFC), são discursos como "não aguento mais", "a vida não tem mais sentido para mim" ou "minha vida não tem valor". "A pessoa tem que estar muito atenta, porque pode estar sinalizando o risco de suicídio mais alto. E esse é o momento de procurar ajuda", afirma.
> Leia na próxima reportagem quais hospitais e centros especializados recebem pacientes com sintomas de ansiedade e depressão.
Conteúdo produzido em parceria com:
Série de reportagens investiga o impacto da pandemia de Covi-19 na saúde mental de jovens, adultos e idosos..