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Desafios que esperam o País na assistência à saúde mental
Reportagem Seriada

Desafios que esperam o País na assistência à saúde mental

Os diferentes momentos da pandemia impactaram a saúde mental também de forma distinta. Especialistas apontam a necessidade de se ampliar o investimento na área para suprir a demanda decorrente da Covid-19. Na série de reportagens "Alerta para a saúde mental", O POVO aborda como as medidas adotadas para conter o avanço da Covid-19 refletem no aspecto psicológico
Episódio 2

Desafios que esperam o País na assistência à saúde mental

Os diferentes momentos da pandemia impactaram a saúde mental também de forma distinta. Especialistas apontam a necessidade de se ampliar o investimento na área para suprir a demanda decorrente da Covid-19. Na série de reportagens "Alerta para a saúde mental", O POVO aborda como as medidas adotadas para conter o avanço da Covid-19 refletem no aspecto psicológico
Episódio 2
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A pandemia de Covid-19 pode ser dividida em dois momentos: no primeiro, o distanciamento social foi estabelecido e grande parte da população ficou em casa. Nesse contexto, predominou o medo do desconhecido. Em seguida, conforme os conhecimentos em termos de tratamento avançaram e as atividades econômicas foram retomadas, a população voltou às ruas.

Casos de pessoas com sintomas de ansiedade e depressão estão em alta mesmo após a flexibilização do isolamento social (Foto: Aurelio Alves/ O POVO)
Foto: Aurelio Alves/ O POVO Casos de pessoas com sintomas de ansiedade e depressão estão em alta mesmo após a flexibilização do isolamento social

Reflexo desse momento inicial foi a queda no número de atendimentos de emergência no Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto (HSM), em Messejana. Em contrapartida, houve uma proporção maior de atendimento a pacientes com algum transtorno de humor mais graves. Pela falta de acesso aos serviços de saúde, pacientes que antes eram considerados estáveis passaram a ter crises. Espera-se, então, que no momento seguinte, os atendimentos a esses casos aumentem.

"E, de fato, em agosto voltou a aumentar o atendimento na emergência. Inclusive, vemos mais essa piora desses quadros que estavam estáveis do que o aparecimento de casos novos", afirma o psiquiatra Davi Queiroz, diretor técnico do HSM, coordenador de Políticas em Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da Secretaria de Saúde do Estado (Copom/Sesa) e membro da diretoria da Sociedade Cearense de Psiquiatria (Socep).

No início da pandemia no Ceará, a Prefeitura de Fortaleza construiu um plano de contingência em saúde mental, em que foi estabelecido o funcionamento da rede de atenção psicossocial no município, que conta com 23 serviços — entre eles, 15 Centros de Atenção Psicossocial (Caps), três residências terapêuticas, cinco unidades de acolhimento e os serviços de internação e desintoxicação. As atividades de grupo foram suspensas temporariamente. A rede ofertou atendimento individual, visitas domiciliares agendadas e visitas de urgência, além do atendimento online.

 "Tivemos um fortalecimento das ações de saúde mental no que se refere ao acolhimento do usuário e do familiar na rede, no acolhimento das crises psiquiátricas. Além dos nossos usuários que já são acompanhados no serviço, tivemos uma demanda externa considerável, (pessoas) que buscaram o serviço com fobias, crise de ansiedade, depressão refratária (resistente a tratamento)", afirma Harrismana Pinto, gerente da Célula de Atenção à Saúde Mental da Secretaria Municipal da Saúde (SMS).

Sintomas de depressão e ansiedade devem ser alertas para procurar ajuda médica e familiar(Foto: Aurelio Alves/ O POVO)
Foto: Aurelio Alves/ O POVO Sintomas de depressão e ansiedade devem ser alertas para procurar ajuda médica e familiar

Naquele período inicial, predominou o medo do desconhecido, da contaminação, da morte, de um "inimigo invisível que ameaça a vida das pessoas e nós não controlamos", aponta a psicóloga Karine Dutra, do Núcleo de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da Fundação Oswaldo Cruz Brasília (Fiocruz Brasília).

Se, principalmente para as pessoas que tiveram o privilégio de permanecerem em confinamento, essa etapa foi encarada como uma oportunidade de permanecer mais tempo em casa e fazer uma "pausa forçada" na rotina anterior, conflitos passaram a se acentuar. "O que parecia ser férias prolongadas passou a ser uma tormenta e um fator gerador de conflitos, aumento da irritabilidade e do estresse", aponta.

Governo Federal, Estado de Município ampliam atendimento às pessoas com distúrbios mentais causados pela pandemia(Foto: Aurélo Alves / O POVO)
Foto: Aurélo Alves / O POVO Governo Federal, Estado de Município ampliam atendimento às pessoas com distúrbios mentais causados pela pandemia

Porém, ela destaca que os grupos sociais foram impactados de formas distintas, por alguns serem mais vulneráveis — como profissionais de saúde, trabalhadores precários, população em situação de rua, moradores de áreas pobres das cidades e população idosa. "As mulheres, por exemplo, foram fortemente afetadas, pois dominam as funções de cuidados dentro e fora das famílias. É sabido ainda que a violência contra as mulheres tende a aumentar em situações de crise, sendo que uma boa parte dessa violência ocorre no espaço doméstico."

Mais de seis meses após o início da pandemia no Brasil — com o primeiro caso de Covid-19 confirmado pelo Ministério da Saúde no dia 26 de fevereiro —, os impactos psicossociais crescem. Questões culturais, como a importância de convívio social, toque e abraço, além dos efeitos da vida online na forma de cansaço, fadiga e desgaste mental são pontos citados pela psicóloga.

"A questão econômica tem óbvias consequências. A exclusão social fica muito mais evidente", afirma. O desemprego é citado pelo o psiquiatra Fábio Gomes de Matos, coordenador do Programa de Apoio à Vida da Universidade Federal do Ceará (Pravida/UFC), como um quadro "muito grave" pela associação dele com o aumento das taxas de suicídio. 

Como consequências da Covid-19 para a saúde mental, Karine Dutra aponta o luto de famílias pela perda de entes queridos, que podem afetar inclusive gerações posteriores e as crianças; desequilíbrios emocionais e dissociações psíquicas; descompensação de transtornos mentais pré-existentes; transtornos de ansiedade; crises de pânico; exacerbação de sintomas obsessivos e compulsivos, transtornos alimentares, afetivos e de estresse pós-traumático; casos de depressão; uso abusivo de álcool e outras drogas e aumento de comportamentos violentos.

Medidas para atender à demanda

Neste ano, a campanha do Dia Mundial da Saúde Mental, celebrado no dia 10 de outubro, faz um apelo por aumento nos investimentos em saúde mental. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), os países gastam, em média, 2% do orçamentos de saúde com essa área.

"Da incapacitação provocada por todas as doenças, 28% são por transtorno mental, mas é extremamente importante ressaltar que apenas de 2% a 3% do orçamento é para a saúde mental. Esse é um dos problemas graves que nós temos", corrobora o psiquiatra Fábio Gomes de Matos.

O uso da telemedicina e da terapia breve — que tem foco e tempo determinados — será importante, segundo o médico Jair Mari, professor titular do departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ele destaca, também, as pessoas que que necessitam de cuidado para a saúde mental que não precisam de atendimento em um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) — que, conforme explica o médico, foram criados para casos mais graves. "Tem um hiato muito grande que deve ser preenchido."

"Acho que nunca a sociedade precisou tanto dos profissionais de saúde mental como vai precisar nesse momento. Então, nós, como profissionais, nós temos que saber maximizar nossas potencialidades", afirma Jair Mari, que também aponta a importância de uma interação maior entre as políticas adotadas para saúde mental e a universidade.

De 2019 até agosto deste ano, o Ministério da Saúde afirma que foram incentivados 188 novos CAPS, 170 novas residências terapêuticas (SRT), 28 unidades de acolhimento (UA) e 337 novos leitos de saúde mental em Hospital Geral, com repasse de R$ 13.3 milhões, visando ampliação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

Atualmente, a Rede de Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde (SUS) conta com 691 residências terapêuticas; 66 unidades de acolhimento adulto e infantojuvenil; 1.641 leitos de saúde mental em hospitais gerais; 13.877 leitos em hospitais psiquiátricos e 50 equipes multiprofissionais de atenção especializada em saúde mental e 144 consultórios na rua.

Em nota, o Ministério elenca, ainda, que o SUS também dispõe de cerca de 42 mil Unidades Básica de Saúde (UBS), na Atenção Primária, que atendem 63% da população, e 2.657 Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que ofertam acolhimento e tratamento à pessoa em sofrimento e/ou com transtorno mental e seus familiares.

No Ceará, ainda não há definição sobre os projetos e investimentos a serem adotados para suprir as necessidades decorrentes da pandemia. Porém, há discussões sobre o assunto. "O Estado pensa em avaliar o cofinanciamento de algumas ações (junto aos municípios) em relação inclusive aos impactos advindos da pandemia", afirma o coordenador de Políticas em Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da Sesa, Davi Queiroz.

Ele destaca, ainda, que há programas que seguem sendo realizados. O gestor cita um programa de especialização em saúde mental junto à Escola de Saúde Pública do Estado (ESP) e uma parceria com nove unidades terapêuticas para acolhimento de pessoas com problemas por uso de substâncias. "(Também) estamos construindo um fluxo estadual de prevenção do suicídio. Então, a Copom tem uma série de ações que já estão acontecendo, mas ainda vamos ter que entender o que emergiu da pandemia", afirma.

Algumas mudanças também podem partir dos indivíduos e afetar a sociedade como um todo, segundo o psiquiatra Sérgio Perocco, gerente de neurociência da Janssen Brasil, grupo farmacêutico da Johnson & Johnson. Ao modificar a forma como lidam com quem sofre com transtorno mentais, as pessoas podem ajudar a melhorar a qualidade de vida não só do indivíduo, mas de quem convive com ele. Além disso, ao incentivar a busca por profissionais de saúde mental, mostra-se para o Governo e/ou para as operadoras de saúde privada o aumento na demanda por esses serviços.

Ações gratuitas voltadas para a saúde mental

Ainda existe preconceito quando se fala em transtornos mentais e em buscar ajuda com psiquiatras e/ou psicólogos. Porém, antes mesmo da pandemia, já se estimava que mais de 300 milhões de pessoas, de todas as idades, sofriam com depressão, segundo dados da OMS. Para incentivar o diálogo sobre a doença, a Janssen criou o movimento Falar Inspira Vida.

Entre outras ações, foi criado o guia "Depressão: quando saber falar e ouvir inspira a vida", que conta com informações sobre a doença e sugestões de como falar — e o que evitar — ao tratar desse assunto com pessoas que têm depressão. "Queremos ganhar aliados para diminuir o intervalo entre a pessoa começar a sofrer e buscar ajuda", afirma Sérgio Perocco.

Em Fortaleza, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) criou dois projetos voltados para o atendimento à saúde mental, o Sintonia e o ConVida. Lançado em maio, o projeto Sintonia foi criado para oferecer serviço de atendimento psicológico online para os profissionais municipais das unidades de saúde. Posteriormente, foi expandido para atender também os profissionais da educação.

A iniciativa já realizou 736 atendimentos, e a ansiedade foi o sintoma mais relatado. Interessados devem responder ao formulário eletrônico disponível no site do projeto, indicando dados pessoais e motivos que levaram a buscar atendimento.

Já a Rede de Acolhimento Emocional ConVida realiza acolhimentos gratuitos estendidos a todas as regiões do Brasil. Inicialmente, eram 16 por profissionais voluntários; hoje são 70. Ao todo, já foram realizados cerca de 1.500 atendimentos por meio de ligações telefônicas, de modo convencional ou via WhatsApp.

A ansiedade também foi o sintoma mais relatado pelos usuários. Os atendimentos são feitos em regime de plantão, de segunda a sexta-feira, ao longo dos três turnos. O usuário da Rede ConVida deve ser maior de 18 anos.

Em nota enviada ao O POVO, o Ministério da Saúde (MS) aponta, entre as ações para saúde mental realizadas no contexto da pandemia, uma campanha em parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) voltada a profissionais de saúde, familiares, idosos e cuidadores; uma série de ações com o objetivo de informar a população sobre questões envolvendo transtornos mentais; o projeto "Ações de Educação em Saúde em Defesa da Vida", com atividades itinerantes e virtuais para promoção e prevenção em saúde; o Projeto Telepsi, em parceria com o Hospital das Clínicas de Porto Alegre, que oferece teleconsulta psicológica e psiquiátrica para manejo de estresse, ansiedade, depressão e irritabilidade em profissionais dos SUS; e uma nota técnica com recomendações à Rede de Atenção Psicossocial sobre as estratégias de organização no contexto da infecção da Covid–19.

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