A pandemia de Covid-19 pode ser dividida em dois momentos: no primeiro, o distanciamento social foi estabelecido e grande parte da população ficou em casa. Nesse contexto, predominou o medo do desconhecido. Em seguida, conforme os conhecimentos em termos de tratamento avançaram e as atividades econômicas foram retomadas, a população voltou às ruas.
Reflexo desse momento inicial foi a queda no número de atendimentos de emergência no Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto (HSM), em Messejana. Em contrapartida, houve uma proporção maior de atendimento a pacientes com algum transtorno de humor mais graves. Pela falta de acesso aos serviços de saúde, pacientes que antes eram considerados estáveis passaram a ter crises. Espera-se, então, que no momento seguinte, os atendimentos a esses casos aumentem.
"E, de fato, em agosto voltou a aumentar o atendimento na emergência. Inclusive, vemos mais essa piora desses quadros que estavam estáveis do que o aparecimento de casos novos", afirma o psiquiatra Davi Queiroz, diretor técnico do HSM, coordenador de Políticas em Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da Secretaria de Saúde do Estado (Copom/Sesa) e membro da diretoria da Sociedade Cearense de Psiquiatria (Socep).
No início da pandemia no Ceará, a Prefeitura de Fortaleza construiu um plano de contingência em saúde mental, em que foi estabelecido o funcionamento da rede de atenção psicossocial no município, que conta com 23 serviços — entre eles, 15 Centros de Atenção Psicossocial (Caps), três residências terapêuticas, cinco unidades de acolhimento e os serviços de internação e desintoxicação. As atividades de grupo foram suspensas temporariamente. A rede ofertou atendimento individual, visitas domiciliares agendadas e visitas de urgência, além do atendimento online.
"Tivemos um fortalecimento das ações de saúde mental no que se refere ao acolhimento do usuário e do familiar na rede, no acolhimento das crises psiquiátricas. Além dos nossos usuários que já são acompanhados no serviço, tivemos uma demanda externa considerável, (pessoas) que buscaram o serviço com fobias, crise de ansiedade, depressão refratária (resistente a tratamento)", afirma Harrismana Pinto, gerente da Célula de Atenção à Saúde Mental da Secretaria Municipal da Saúde (SMS).
Naquele período inicial, predominou o medo do desconhecido, da contaminação, da morte, de um "inimigo invisível que ameaça a vida das pessoas e nós não controlamos", aponta a psicóloga Karine Dutra, do Núcleo de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da Fundação Oswaldo Cruz Brasília (Fiocruz Brasília).
Se, principalmente para as pessoas que tiveram o privilégio de permanecerem em confinamento, essa etapa foi encarada como uma oportunidade de permanecer mais tempo em casa e fazer uma "pausa forçada" na rotina anterior, conflitos passaram a se acentuar. "O que parecia ser férias prolongadas passou a ser uma tormenta e um fator gerador de conflitos, aumento da irritabilidade e do estresse", aponta.
Porém, ela destaca que os grupos sociais foram impactados de formas distintas, por alguns serem mais vulneráveis — como profissionais de saúde, trabalhadores precários, população em situação de rua, moradores de áreas pobres das cidades e população idosa. "As mulheres, por exemplo, foram fortemente afetadas, pois dominam as funções de cuidados dentro e fora das famílias. É sabido ainda que a violência contra as mulheres tende a aumentar em situações de crise, sendo que uma boa parte dessa violência ocorre no espaço doméstico."
Mais de seis meses após o início da pandemia no Brasil — com o primeiro caso de Covid-19 confirmado pelo Ministério da Saúde no dia 26 de fevereiro —, os impactos psicossociais crescem. Questões culturais, como a importância de convívio social, toque e abraço, além dos efeitos da vida online na forma de cansaço, fadiga e desgaste mental são pontos citados pela psicóloga.
"A questão econômica tem óbvias consequências. A exclusão social fica muito mais evidente", afirma. O desemprego é citado pelo o psiquiatra Fábio Gomes de Matos, coordenador do Programa de Apoio à Vida da Universidade Federal do Ceará (Pravida/UFC), como um quadro "muito grave" pela associação dele com o aumento das taxas de suicídio.
Como consequências da Covid-19 para a saúde mental, Karine Dutra aponta o luto de famílias pela perda de entes queridos, que podem afetar inclusive gerações posteriores e as crianças; desequilíbrios emocionais e dissociações psíquicas; descompensação de transtornos mentais pré-existentes; transtornos de ansiedade; crises de pânico; exacerbação de sintomas obsessivos e compulsivos, transtornos alimentares, afetivos e de estresse pós-traumático; casos de depressão; uso abusivo de álcool e outras drogas e aumento de comportamentos violentos.
Neste ano, a campanha do Dia Mundial da Saúde Mental, celebrado no dia 10 de outubro, faz um apelo por aumento nos investimentos em saúde mental. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), os países gastam, em média, 2% do orçamentos de saúde com essa área.
"Da incapacitação provocada por todas as doenças, 28% são por transtorno mental, mas é extremamente importante ressaltar que apenas de 2% a 3% do orçamento é para a saúde mental. Esse é um dos problemas graves que nós temos", corrobora o psiquiatra Fábio Gomes de Matos.
O uso da telemedicina e da terapia breve — que tem foco e tempo determinados — será importante, segundo o médico Jair Mari, professor titular do departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ele destaca, também, as pessoas que que necessitam de cuidado para a saúde mental que não precisam de atendimento em um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) — que, conforme explica o médico, foram criados para casos mais graves. "Tem um hiato muito grande que deve ser preenchido."
"Acho que nunca a sociedade precisou tanto dos profissionais de saúde mental como vai precisar nesse momento. Então, nós, como profissionais, nós temos que saber maximizar nossas potencialidades", afirma Jair Mari, que também aponta a importância de uma interação maior entre as políticas adotadas para saúde mental e a universidade.
De 2019 até agosto deste ano, o Ministério da Saúde afirma que foram incentivados 188 novos CAPS, 170 novas residências terapêuticas (SRT), 28 unidades de acolhimento (UA) e 337 novos leitos de saúde mental em Hospital Geral, com repasse de R$ 13.3 milhões, visando ampliação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
Atualmente, a Rede de Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde (SUS) conta com 691 residências terapêuticas; 66 unidades de acolhimento adulto e infantojuvenil; 1.641 leitos de saúde mental em hospitais gerais; 13.877 leitos em hospitais psiquiátricos e 50 equipes multiprofissionais de atenção especializada em saúde mental e 144 consultórios na rua.
Em nota, o Ministério elenca, ainda, que o SUS também dispõe de cerca de 42 mil Unidades Básica de Saúde (UBS), na Atenção Primária, que atendem 63% da população, e 2.657 Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que ofertam acolhimento e tratamento à pessoa em sofrimento e/ou com transtorno mental e seus familiares.
No Ceará, ainda não há definição sobre os projetos e investimentos a serem adotados para suprir as necessidades decorrentes da pandemia. Porém, há discussões sobre o assunto. "O Estado pensa em avaliar o cofinanciamento de algumas ações (junto aos municípios) em relação inclusive aos impactos advindos da pandemia", afirma o coordenador de Políticas em Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da Sesa, Davi Queiroz.
Ele destaca, ainda, que há programas que seguem sendo realizados. O gestor cita um programa de especialização em saúde mental junto à Escola de Saúde Pública do Estado (ESP) e uma parceria com nove unidades terapêuticas para acolhimento de pessoas com problemas por uso de substâncias. "(Também) estamos construindo um fluxo estadual de prevenção do suicídio. Então, a Copom tem uma série de ações que já estão acontecendo, mas ainda vamos ter que entender o que emergiu da pandemia", afirma.
Algumas mudanças também podem partir dos indivíduos e afetar a sociedade como um todo, segundo o psiquiatra Sérgio Perocco, gerente de neurociência da Janssen Brasil, grupo farmacêutico da Johnson & Johnson. Ao modificar a forma como lidam com quem sofre com transtorno mentais, as pessoas podem ajudar a melhorar a qualidade de vida não só do indivíduo, mas de quem convive com ele. Além disso, ao incentivar a busca por profissionais de saúde mental, mostra-se para o Governo e/ou para as operadoras de saúde privada o aumento na demanda por esses serviços.
Ainda existe preconceito quando se fala em transtornos mentais e em buscar ajuda com psiquiatras e/ou psicólogos. Porém, antes mesmo da pandemia, já se estimava que mais de 300 milhões de pessoas, de todas as idades, sofriam com depressão, segundo dados da OMS. Para incentivar o diálogo sobre a doença, a Janssen criou o movimento Falar Inspira Vida.
Entre outras ações, foi criado o guia "Depressão: quando saber falar e ouvir inspira a vida", que conta com informações sobre a doença e sugestões de como falar — e o que evitar — ao tratar desse assunto com pessoas que têm depressão. "Queremos ganhar aliados para diminuir o intervalo entre a pessoa começar a sofrer e buscar ajuda", afirma Sérgio Perocco.
Em Fortaleza, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) criou dois projetos voltados para o atendimento à saúde mental, o Sintonia e o ConVida. Lançado em maio, o projeto Sintonia foi criado para oferecer serviço de atendimento psicológico online para os profissionais municipais das unidades de saúde. Posteriormente, foi expandido para atender também os profissionais da educação.
A iniciativa já realizou 736 atendimentos, e a ansiedade foi o sintoma mais relatado. Interessados devem responder ao formulário eletrônico disponível no site do projeto, indicando dados pessoais e motivos que levaram a buscar atendimento.
Já a Rede de Acolhimento Emocional ConVida realiza acolhimentos gratuitos estendidos a todas as regiões do Brasil. Inicialmente, eram 16 por profissionais voluntários; hoje são 70. Ao todo, já foram realizados cerca de 1.500 atendimentos por meio de ligações telefônicas, de modo convencional ou via WhatsApp.
A ansiedade também foi o sintoma mais relatado pelos usuários. Os atendimentos são feitos em regime de plantão, de segunda a sexta-feira, ao longo dos três turnos. O usuário da Rede ConVida deve ser maior de 18 anos.
Em nota enviada ao O POVO, o Ministério da Saúde (MS) aponta, entre as ações para saúde mental realizadas no contexto da pandemia, uma campanha em parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) voltada a profissionais de saúde, familiares, idosos e cuidadores; uma série de ações com o objetivo de informar a população sobre questões envolvendo transtornos mentais; o projeto "Ações de Educação em Saúde em Defesa da Vida", com atividades itinerantes e virtuais para promoção e prevenção em saúde; o Projeto Telepsi, em parceria com o Hospital das Clínicas de Porto Alegre, que oferece teleconsulta psicológica e psiquiátrica para manejo de estresse, ansiedade, depressão e irritabilidade em profissionais dos SUS; e uma nota técnica com recomendações à Rede de Atenção Psicossocial sobre as estratégias de organização no contexto da infecção da Covid–19.
Conteúdo produzido em parceria com:
Série de reportagens investiga o impacto da pandemia de Covi-19 na saúde mental de jovens, adultos e idosos..