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Abstenção alta precisa de uma boa explicação, que vá além da pandemia
Reportagem

Abstenção alta precisa de uma boa explicação, que vá além da pandemia

Percentual de eleitores que não foram às urnas em Fortaleza é o maior desde 1992. Resultado não gera alarme e a crise sanitária justifica apenas parte dos números
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FORTALEZA, CE, 15-11-2020: Eleições 2020. Local: Espaço Aberto da Dom Luis. (Fotos: Deisa Garcêz/Especial para O Povo) (Foto: Deisa Garcêz/Especial para O Povo)
Foto: Deisa Garcêz/Especial para O Povo FORTALEZA, CE, 15-11-2020: Eleições 2020. Local: Espaço Aberto da Dom Luis. (Fotos: Deisa Garcêz/Especial para O Povo)

Cresceu o número de pessoas que não compareceram às urnas para o primeiro turno da eleição municipal de 2020 em Fortaleza. Na comparação com 2016, um salto de 4,80%. Aparentemente insignificante, o percentual ganha mais relevância se analisado dentro de uma série histórica que, iniciada a partir de 1992, aponta crescimento do número de faltantes a cada quatro anos, sendo este ano o ápice.

Medo da contaminação pelo novo coronavírus, ideia de uma classe padecida de velhos vícios ou mesmo o entendimento de que o sistema político não consegue dar respostas concretas para os problemas que estão na ordem do dia fez com que 397,7 mil pessoas que poderiam votar não o fizessem. O número corresponde a 21,84% de ausências. Expressivo, o dado ainda fica abaixo da média nacional de 23,14%.

A pandemia afugentou parte do eleitorado por razões claras, é evidente. São reais as possibilidades de o Sars-Cov-2 estar à espreita no botão de uma urna ou de se aproveitar de uma distância mínima não respeitada entre pessoas.

Há, no entanto, outras razões que auxiliam na interpretação do número. Além da questão logística no dia do voto, a pandemia também evidenciou a fragilidade de governantes que, na condução da crise, colheram maus resultados, seja por incompetência, negacionismo, desvio de recursos ou pela conjunção de todos esses fatores.

O POVO ouviu pesquisadores do Laboratório de Política, Eleições e Mídia (Lepem-UFC) para analisar os significados que podem estar por detrás do número de faltantes.

Professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e membra do Lepem, Monalisa Torres analisa que a desconfiança na política como solucionadora das demandas da população já estava em crescimento e era responsável pela crescente das abstenções, quadro que se acentuou com a disseminação da peste.

"Esse cenário de pandemia impôs um desafio maior para os gestores e essa dificuldade de responder às questões fez com que o desgaste fosse maior", ela assinala. Esse cenário, segundo diz, é mais perceptível em cidades maiores que, pelo tamanho, naturalmente apresentam problemas complexos e exigem resultados mais robustos.

"Não é um índice alarmante, que comprometa o sistema. Como disse, é um crescimento lento, mas um crescimento constante. A toda eleição você consegue perceber a ampliação desse não voto", observa o pesquisador também vinculado ao Lepem, o sociólogo e professor universitário Cleyton Monte.

Para ele, ainda estamos todos sob a influência do caráter de negação da política das Jornadas de Junho (2013), da operação Lava Jato, que lançou os partidos à vala do descrédito e a subsequente ascensão de movimentos radicalizados, como o liderado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que não raro joga contra os limites do jogo democrático.

"Atribuo também, além do desgosto das pessoas, a um próprio desgaste, um enfado. Essa campanha não motivou o eleitor. Devido à pandemia, principalmente nessa última parte. É onde ele costuma fortalecer o voto, e na última semana a gente não teve campanha", adicionou o docente.

Na véspera do primeiro turno, mostrou O POVO/Datafolha, 31% das pessoas não souberam responder qual número iriam digitar na urna para confirmar o voto para o Executivo municipal. Outras, um percentual de 5%, responderam incorretamente.

O mesmo levantamento, executado em cima de 1.456 entrevistas, questionou o nível de convicção do voto. A um dia do comparecimento nas urnas, 23% disseram que ainda poderiam mudar a preferência.

A pesquisa mostrou ausência de convicção, oriunda de um presumível desinteresse com o processo eleitoral, dentre outros fatores. Curiosamente, o levantamento não registrou nenhum ponto percentual entre os que disseram que não votam, não votariam ou que iriam justificar.

Monte complementa, deslocando-se para outro ângulo do mesmo problema: "(O eleitor) Passou a ver as mesmas figuras. A gente não tem renovação de liderança, principalmente para o Executivo. Cria certo fastio e não se tem muito o interesse em se deslocar."

Por outro lado, considera Monalisa, o voto dos eleitores que foram às urnas revelou que a preferência foi pela segurança. Ou seja, a força dos outsiders registrou queda pois, segundo a docente, o voto se racionalizou, se revelou menos ousado. "Em um momento de uma conjuntura desfavorável em que tudo é incerto, é melhor apostar num certo do que num duvidoso."

"A gente viu em 2018 aposta na mudança, em política feita com mais fígado, sangue no olho, emoção, e acho que o que a pandemia mostrou que na hora do 'pega pra capar', a gente tem mais segurança com pessoas que têm mais experiência e sensibilidade com a gestão pública", diz Monte.


 

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