Era fim de tarde de terça-feira, 18 de fevereiro de 2020, quando um grupo de mulheres se postou em frente à entrada do 18º Batalhão da Polícia Militar, no bairro Antônio Bezerra. Não mais que uma dúzia, rapidamente deram-se as mãos e bloquearam o portãozinho de ferro, único acesso à unidade escolhida como estopim da maior paralisação de PMs do Ceará.
Horas antes, representantes da corporação haviam estado nas dependências da Assembleia Legislativa (AL-CE). Negociavam uma proposta de reajuste salarial que, depois de muito vaivém, tinha agradado a gregos e troianos. Faltava, porém, combinar com os “russos”.
Mobilizados do lado de fora do Legislativo, os policiais ouviram de seus líderes, entre eles os deputados Soldado Noélio (Pros) e Capitão Wagner (Pros), os termos do trato que tinha parecido vantajoso aos parlamentares. E o rejeitaram. Ali começava o motim da PM.
Um ano depois, os atores daquele processo ainda tentam curar as feridas de um movimento que se arrastou por 13 dias, após os quais os amotinados voltaram ao trabalho, já no início de março, sem qualquer ganho adicional em relação à proposta de melhoria dos soldos formulada pelo Governo do Estado e acolhida pelas lideranças.
Nesse período, a paralisação da PM jamais deixou de estar presente na pauta política local e nacional e nos embates entre situação e oposição no Ceará. Pelo contrário: foi determinante em alguns momentos cruciais.
Chefe do Abolição, Camilo Santana (PT) chamou-a de “partidarizada”, atribuindo a interesses políticos e eleitorais a desorganização das polícias, na esteira da qual o número de homicídios explodiria no território cearense. Foram 4.039 Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs) no ano passado, um aumento de 78,9% sobre 2019. Apenas em fevereiro, mês do motim, somaram-se 459 mortes.
O assunto voltaria com força nas eleições municipais de 2020 em Fortaleza, cujo segundo turno foi disputado entre dois personagens implicados diretamente no episódio: José Sarto (PDT), então presidente da AL-CE e aliado de Camilo, e Capitão Wagner, que fez as vezes de negociador entre Estado e policiais numa mesa composta também por Élcio Batista (PSB), ex-titular da Casa Civil e hoje vice-prefeito da Capital.
Do lado da corporação, um dos líderes era o militar Flávio Alves Sabino, o Cabo Sabino, 50 anos, ex-deputado federal que tentaria uma vaga na Câmara de Vereadores da capital cearense, mas sem sucesso.
Depositário de aproximadamente 2,5 mil votos, foi rechaçado nas urnas, assim como outros nomes que tentaram alçar voo a partir do motim da PM – a exceção é Sargento Reginauro (Pros), reeleito para mais um mandato de vereador.
Naquela tarde de terça-feira de 2020, Sabino foi um dos primeiros a chegar ao 18º Batalhão da PM. Encontrou um cenário de tensão já armado. De lá não sairia pelos próximos dias. Em conversa com O POVO por telefone, ele nega que tenha insuflado os soldados a cruzarem os braços. “Estava lá para ajudar a resolver o problema”, diz.
Além do revés eleitoral, Sabino é alvo de ações movidas pelo Ministério Público do Estado (MPCE). O cabo da reserva pode ser expulso da polícia.
“Para mim só sobrou perseguição. O MP pede 42 anos de prisão e a Controladoria está tocando os processos. Possivelmente pode ser pedida demissão. O MPF entrou com um PIC (Processo de Investigação Criminal) para investigar se infringimos a Lei de Segurança Nacional. Pago o preço de um crime que não cometi. Hoje sou o grande bode expiatório”, desabafa.
Sobre os estragos políticos que a paralisação causou a seu grupo nas eleições municipais, das quais Sarto e Élcio saíram vitoriosos, Sabino desconversa: “O Governo, na realidade, usou esse argumento de uso político (do motim), mas a campanha capitalizou contra Wagner. Quem mais capitalizou foi o próprio Governo. Tanto para fugir do combate à criminalidade quando para eleger um aliado”.
Hoje vice-prefeito, Élcio Batista discorda do adversário. “O Estado fez uma negociação, ela foi acordada com lideranças e depois houve ruptura. Conseguimos fechar acordo dentro dos limites do governo, voltamos a sentar na mesa, eles pediram para negociar alguns aspectos, renegociamos, fizemos concessões e mesmo assim foi deflagrado (o motim)”, declara.
Para Batista, “havia, já naquele momento, dúvidas sobre os interesses que estavam movendo aqueles líderes”, que depois acabariam se encontrando com o grupo do governador na corrida eleitoral pela Prefeitura.
“Mas parte da sociedade percebeu o risco de ter uma instituição militar partidarizada”, continua o vice-prefeito. “Isso tem ganho cada vez mais força na sociedade e tem mobilizado as pessoas no sentido de perceber os riscos que a sociedade corre.”
O POVO tentou contato com o deputado federal Capitão Wagner e com o deputado estadual Soldado Noélio, ambos do Pros, mas não houve retorno. O vereador Sargento Reginauro (Pros) não deu resposta sobre as tentativas de entrevista.