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Vivendo para além dos estereótipos
Reportagem

Vivendo para além dos estereótipos

Em entrevistas ao O POVO, autistas contam como percebem o chamado Transtorno do Espectro Autista (TEA) e as diferentes possibilidades de existir
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Ana Karynne e a filha, Mariana. O artesanato em crochê é, além de fonte de renda, uma forma de desenvolvimento de habilidades e de interação entre mãe e filha (Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Ana Karynne e a filha, Mariana. O artesanato em crochê é, além de fonte de renda, uma forma de desenvolvimento de habilidades e de interação entre mãe e filha

“É um aquário que tem pontos em que a água é muito densa e muito escura e pontos em que a água fica transparente. Ao longo da nossa vida, é como se a gente estivesse nesse aquário.” Assim a artesã Ana Karynne Magalhães descreve o que é ser autista. Após passar uma boa parte da vida sendo rotulada de antissocial, chata ou grosseira, ela se descobriu dentro do espectro do autismo. O diagnóstico veio enquanto procurava uma explicação para as dificuldades com a filha, Mariana, hoje com oito anos.

Ana Karynne conta que percebia as características da filha desde recém-nascida e associava a características familiares. “Eu tenho parentes com características autísticas, mas só descobri que eram características autísticas depois. Quando ela fez quatro anos e meio a gente finalmente conseguiu um diagnóstico”, lembra. “Ela não teve atrasos significativos nos marcos de desenvolvimento, então a gente só conseguiu um diagnóstico quando a demanda social dela exigiu coisas que ela não conseguia fazer.” Meses depois, quando tinha 34 anos, a mãe também recebeu seu laudo.

O papel veio como um alívio e uma ferramenta para buscar os apoios e terapias necessárias. “Aprendi a me aceitar e a ser mais gentil comigo mesma. Eu sei que meu cérebro funciona muito mais rápido que a maioria das pessoas e ele registra todos os estímulos ao mesmo tempo”, expõe. Durante a entrevista por telefone, a artesã conta que estava passando as unhas na palma da mão para regular sensorialmente a quebra na rotina e a interação com uma pessoa nova. “Me relacionar é muito difícil, me deixa completamente exausta. Ambientes de luzes, gente e barulho, como shopping, me dão crises de enxaqueca.”

“As pessoas ainda acham que o autismo só é aquele de grau mais severo e que os autistas severos não têm qualquer potencial”, lamenta Ana Karynne. “Além de ser uma questão do neurodesenvolvimento, ele também é uma forma diferente de ver, de sentir e de estar no mundo. O autismo faz parte da gente, mas não é tudo que a gente é”

Ao contrário do que muitos pensam, o autismo não é uma doença. São características provenientes do desenvolvimento neurológico que trazem, por exemplo, sensibilidades sensoriais, comportamentos repetitivos, dificuldades em manter relações interpessoais e hiperfoco. “Ser autista é ser realista de forma plena. Ser autista é desafiador, poucas pessoas vão entender a lógica da sua cabeça, pensamos diferente sobre muitos temas da sociedade. Ser autista pra mim também é ter foco no que gosta”, afirma o estudante de Medicina Valter Izidio Martiniano, indicando que suas áreas de hiperfoco são medicina, ajudar as pessoas e futebol.

Ele conta que, na infância, teve atraso evidente na fala, atraso escolar no quesito de interpretação e de compressão de textos e muitas dificuldades na adaptação para o Ensino Médio. “Todos autistas têm suas peculiaridades. Eu, particularmente, tenho alguns problemas de desmodulação sensorial, não posso pegar em toalhas de banho de algodão porque me traz irritação.”

Apesar das características desde a infância, o processo de diagnóstico começou há quatro anos, quando Valter tinha 22 anos de idade, e o laudo veio em 2019. “Precisei tomar remédio, ter acompanhamento médico e passei por muitos psiquiatras; até chegar a um ponto específico do autismo é difícil.” Valter conta ainda que o diagnóstico foi uma “vitória pessoal” por poder ter amparo para os direitos de inclusão. “Mas ao mesmo tempo é difícil, porque a gente vive em uma sociedade preconceituosa. Autista não fica isolado. Pode malhar, ir a festas… Mesmo diante de paradigmas sociais impostos, autistas são pessoas comuns também”, enfatiza.

Neurodiversidade

Cada vez mais, as pessoas autistas buscam protagonismo na definição do que é o autismo e dos caminhos possíveis de vida. O ponto central é que o autismo e outras divergências neurais são parte natural da diversidade humana. Nesse processo, propõem o símbolo do infinito nas cores do arco-íris como sinal de reconhecimento e respeito às diferenças neurológicas.

O autismo em dados

Pelo menos uma a cada 100 pessoas é autista

Há três classificações de autismo: leve (antes conhecido como Síndrome de Asperger), moderado e severo.

As gradações são definidas a partir do nível de suporte que a pessoa precisa

Tem diferentes manifestações, indo de pessoas não-verbais a pessoas poliglotas; de pessoas com deficiência intelectual severa àquelas com altas habilidades 

Geralmente é diagnosticado entre os 3 e os 6 anos de idade

Acredita-se que o autismo é quatro vezes mais comum entre meninos do que entre meninas; entretanto, pesquisas recentes apontam que meninas são subdiagnosticadas

O ponto central no acompanhamento é reconhecer, nomear e enfrentar as barreiras que impactam negativamente no cotidiano

Cada vez mais, se reconhece e respeita que há um processo de descoberta de si paralelo (ou anterior) ao processo formal de diagnóstico

Fontes: Fátima Dourado, psiquiatra, diretora clínica da Casa da Esperança e mãe de autistas; e Ricardo Lugon Arantes, psiquiatra da infância e adolescência

Onde procurar acompanhamento em Fortaleza

Associação Fortaleza Azul


Associação sem fins lucrativos formada por familiares de indivíduos com autismo
Contatos: (85) 98186 4552 e @fortalezaazul no Instagram

Fundação Casa da Esperança

Atendimento clínico e social
Contatos: (85) 99421 7918 e @casadaesperança1993 no Instagram

Fundação Projeto Diferente

Associação de autistas e familiares
Contatos: (85) 3224 8831 e @fprojetodiferente no Instagram

Recanto Psicopedagógico

Atendimento clínico e social
Contatos: (85) 3262 1818 e @recantopsicopedagogico no Instagram

 

Mês de visibilidade

Desde 2008, o mês de abril é marcado pela conscientização do autismo. A data, criada pela Organização das Nações Unidas (ONU), tem o intuito de alertar a sociedade e os governantes sobre este transtorno do neurodesenvolvimento, ajudando a derrubar preconceitos.

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