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Texto aprovado pela Câmara impõe golpe ao desenvolvimento das energias renováveis
Reportagem

Texto aprovado pela Câmara impõe golpe ao desenvolvimento das energias renováveis

A privatização da estatal tramitava abaixo do radar até que o texto do relator foi apresentado com medidas que beneficiam a produção de energia por termelétricas, inclusive no Nordeste, região com maior potencial para gerar energia limpa
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Para pesquisador, hidrogênio pode ser inserido tanto na produção quanto no aquecimento quanto na redução e deve substituir o uso do carvão mineral  (Foto: CSP / DIVULGAÇÃO)
Foto: CSP / DIVULGAÇÃO Para pesquisador, hidrogênio pode ser inserido tanto na produção quanto no aquecimento quanto na redução e deve substituir o uso do carvão mineral

Cercado de muita pressa, a discussão da Medida Provisória (MP) de privatização da Eletrobras que avança no Congresso pode significar não só o aumento da participação privada na companhia, mas mudanças no setor energético brasileiro. Outro ponto notório é a falta de compromisso com a revitalização da matriz energética brasileira para opções mais sustentáveis e baratas. Segundo analistas ouvidos pelo O POVO, há, sim, risco de que a redação em tramitação possa encarecer a tarifa de energia. O texto da MP foi aprovado na semana passada pela Câmara dos Deputados e ontem, 24, teve definido o seu relator para discussão no Senado, o governista Marcus Rogério (DEM). A expectativa do Governo é que a proposta, uma das promessas da equipe econômica de Paulo Guedes na numerosa lista de privatizações, seja aprovada sem mais modificações e inclusão de novos "jabutis".

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O jargão da política se refere aos adentos que vão sendo acrescentados no projeto, segundo o entendimento dos políticos. E nesta MP - para desgosto do Governo e preocupação dos técnicos do setor de energia - existem exemplos que podem gerar impactos grandes e por longo período de tempo. O principal deles é a obrigação de adoção de contratos que garantam a obtenção de energia proveniente de termelétricas a gás.

Mesmo sendo membro da Frente Parlamentar em Defesa das Energias Renováveis, o relator do projeto, deputado Elmar Nascimento (DEM-BA), primou por incluir a priorização de termelétricas nas regiões Centro Oeste, Norte e Nordeste. Justo a Região, que possui o maior potencial de impulsionar o desenvolvimento de uma matriz sustentável para o Brasil.

Alexei Macorin Vivan é advogado e sócio do escritório Catão & Tocantins Advogados, que atua fortemente na área de energia. Ele entende como os "jabutis" da MP a exigência de contratação de 6 Megawatts (MW) de energia das usinas térmicas; a obrigatoriedade de contratação de energia elétrica proveniente de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) nos leilões de energia, limitada a 2 MW; além prorrogação do Proinfa por mais 20 anos; e a exigência de destinação obrigatória do saldo de caixa de Itaipu para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) e para programas sociais até 2032.

"Após tanta discussão, a aprovação deve ser comemorada, em vista da necessidade de a Eletrobras ser privatizada para ter recursos e condições de investir e manter sua importância no cenário nacional. Contudo, há pontos da MP que não têm relação com o tema da privatização da Eletrobras e que não fazem sentido estarem na MP", observa o advogado.

"Em resumo, ainda que a aprovação seja extremamente positiva, nenhum processo legislativo é perfeito e há arestas que se espera sejam aparadas pelo Senado, por fugirem ao objetivo da MP", completa.

A doutora em Engenharia Mecânica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) no Campus Russas, Silvia Teles Viana, destaca que a visão política se sobrepôs à técnica e a pressa na discussão da proposta é prejudicial ao Brasil. "A segurança energética do País é muito importante para a soberania nacional. E no texto aprovado na Câmara, questões técnicas foram colocadas com ideais políticos. O uso de termelétricas é um exemplo."

"As termelétricas são usinas que queimam combustíveis fósseis e também utilizam água nas torres de resfriamento, o que não é interessante pela poluição e longos períodos de seca que passamos. Outra questão é o grande potencial da nossa Região em energia solar e eólica, que merece ser valorizada por ser renovável", destaca.

De acordo com o boletim macroeconômico do Banco Original sobre o avanço do projeto, apesar da preocupação do setor elétrico com a manutenção dos leilões locacionais e da cota de 50% de contratação de PCHs nos leilões deste ano, o mercado parece animado com a retirada do texto dos principais pontos que afetavam a capitalização da estatal, fazendo referência a outros "jabutis" retirados do texto pelo relator pouco antes da votação.

Mas, segundo a Abrace, associação de grandes consumidores de energia, o texto pode adicionar até R$ 24 bilhões na conta de luz com a obrigação da contratação das térmicas, PCHs e prorrogação do Proinfa. Já o carimbo dos recursos da descotização através da CDE para o mercado regulado pode aumentar em até 20% o valor da energia para a indústria, que deve repassar o aumento de custo para o restante da cadeia.

Isso deve fazer com que o objetivo inicial do Governo de reduzir a tarifa de energia a partir da privatização não seja alcançado. A Abrace ainda ressalta que o efeito da MP nas contas de luz seria de 10% na tarifa para os consumidores regulados, sem contar os impactos advindos do aumento que chegariam aos consumidores livres, que são representados principalmente por indústria e comércio. Cabe acompanhar ao longo deste e do próximo ano os possíveis impactos inflacionários da medida.

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O POVO tentou contato com o relator da proposta na Câmara, mas não obteve retorno do parlamentar até o fechamento desta edição.

As usinas térmicas do Ceará
As usinas térmicas do Ceará (Foto: Luciana Pimenta)

Joaquim Rolim
Coordenador de Energia da Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec)
Joaquim Rolim Coordenador de Energia da Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec)

BATE PRONTO com Joaquim Rolim

O POVO - Do jeito que está, esse projeto tem o potencial de surtir efeito contrário e deixar a energia elétrica mais cara ao consumidor?

Joaquim Rolim - Essa é uma grande preocupação. O Brasil possui um dos menores custos de produção de energia do mundo, principalmente quando falamos em eólica e solar. Porém, para o consumidor, os custos com energia elétrica estão entre os mais caros. Entendemos que o projeto de lei deveria contribuir na redução de custos para o consumidor de energia.

OP - As mudanças de mercado provocadas pela privatização podem surtir quais efeitos a mais no mercado nacional?

Joaquim - A água dos reservatórios das hidrelétricas tem múltiplos usos. Esse aspecto precisa ser muito bem avaliado e as ações bem direcionadas, para não se provocar um desequilíbrio no processo. O que se espera em um processo de privatização é que se consiga otimizar a gestão, reduzir os custos, aumentar a capacidade de investimento e melhorar a qualidade para o consumidor com benefícios para a sociedade.

Joaquim Rolim é engenheiro eletricista pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), diretor técnico da Associação Brasileira de Geração Distribuída (ABGD), representante da Classe Industrial no Conselho de Consumidores de Energia Elétrica do Ceará e coordenador do Núcleo de Energia da Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec)

RESUMO DA MP

O modelo de desestatização prevê a emissão de novas ações da Eletrobras, a serem vendidas no mercado sem a participação da empresa, resultando na perda do controle acionário de voto mantido atualmente pela União.

Apesar de perder o controle acionário ao reduzir sua participação de 60% para 45% das ações, a União terá uma ação de classe especial (golden share) que lhe garante poder de veto em decisões da assembleia de acionistas, a fim de evitar que algum deles ou um grupo de vários detenha mais de 10% do capital votante da Eletrobras.

PRÓS E CONTRAS DA MP

POSITIVOS

  • A prorrogação por 30 anos das concessões das usinas sobre controle da Eletrobras;
  • A mudança do regime de exploração para Produtor Independente, cessando o regime de cotas e dando liberdade de negociação da energia;
  • A privatização será via aumento de capital mediante aporte de recursos na Eletrobras para redução da participação da União dos cerca de 60% para 45%, cada acionista ou grupo de acionistas não poderá ter mais do que 10% de participação na sociedade, para garantir a pulverização de capital típica das "true corporations";
  • A União terá "golden share", que dá direito de veto em relação a determinadas matérias, o que faz sentido em vista da importância nacional da Eletrobras;
  • Eletronuclear e Itaipu continuarão sob controle da União. A estrutura de privatização via aumento de capital, estava prevista no PL 5877/19 apresentado pelo Governo Federal e que não foi adiante.

NEGATIVOS

  • A exigência de contratação de 6MW de energia proveniente de termelétricas a gás, sendo 1MW no Nordeste e o restante no Norte e no Centro Oeste, o que tem impacto no preço da energia e precisa ser melhor avaliado, apesar da importância das térmicas para a segurança energética no Brasil. Aliás, tentou-se inserir essa proposição da Nova Lei do Gás, mas não vingou;
  • A obrigatoriedade de contratação de energia elétrica proveniente de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH´s) nos leilões de energia, limitada a 2 MW, o que seria uma verdadeira reserva de mercado que não faz sentido e viola a regra da concorrência pelo menor preço da energia nos leilões. Mal comparando, seria como um subsídio às PCHs;
  • A prorrogação do Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa) por mais 20 anos, que representa a continuação de subsídios pagos pelos consumidores;
  • A exigência de destinação obrigatória do saldo de caixa de Itaipu para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) e para programas sociais até 2032;
  • A exigência de aporte anual, por 10 anos, de R$ 350 milhões pelas concessionárias de energia da bacia do Rio São Francisco para revitalização da região.

Análise: Alexei Macorin Vivan, advogado e sócio do escritório Catão & Tocantins Advogados

 

Críticas da oposição

Na avaliação do deputado federal e vice-líder da Minoria na Câmara dos Deputados, José Guimarães (PT-CE), a votação que aprovou na Casa a MP da privatização foi um "duríssimo golpe" em um dos setores estratégicos da economia brasileira. "A primeira questão que é importante destacar, é que a União perde a capacidade de regulação do sistema elétrico, que passa a ser regulado pelo investimento privado. Portanto, não há segurança nenhuma da eficiência da geração e da transmissão de energia e, principalmente, se o setor privado fará ou não investimentos."

O deputado cearense ainda diz que o texto da MP toma atribuições que seriam do Executivo, seja do Ministério de Minas e Energia ou do Ministério do Desenvolvimento Regional. "É uma das principais e mais lucrativas empresas do País. Eu, portanto, acredito que esse processo aprovado pode fazer com que os consumidores tenham que pagar a conta e aí haverá, sim, o aumento das tarifas. E os fundos de revitalização do São Francisco nós já temos a partir do trabalho do Ministério do Desenvolvimento Regional. Entendo que a iniciativa privada não deve priorizar investimentos que não tenham à frente o grande cifrão do lucro, por isso votamos contra a privatização da Eletrobras".

Nordeste

O Consórcio Nordeste divulgou nota contrária à aprovação da privatização da Eletrobras. "O Brasil enfrenta uma grave crise econômica e social, em que o aumento da pobreza e do desemprego caminham junto com a inflação, que está corroendo o poder de compra das famílias. Ressalte-se que a energia elétrica representa aproximadamente 40% dos custos industriais, ou seja, um aumento deve refletir sobre toda a cadeia produtiva."

Levantamento

As chaminés das termelétricas já competem com a fumaça das queimadas como nossa maior fonte de emissões nocivas à natureza. Em 1995, as queimadas respondiam por 77% de nossas emissões. Caíram para 32% em 2012. No mesmo período, a fumaça das usinas foi de 8% a 30% das emissões brasileiras. O dado é do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases do Efeito Estufa, organizado pelo Observatório do Clima, uma coalizão de ONGs e centros de pesquisas.

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