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Como a Paróquia da Paz se tornou espaço de tensões políticas
Reportagem

Como a Paróquia da Paz se tornou espaço de tensões políticas

Afastamento de padre Lino e radicalização na Paróquia da Paz são elementos da retórica beligerante estimulada pelo presidente Jair Bolsonaro. Igreja no coração da Aldeota é palco de tensões que antecipam as disputas eleitorais de 2022
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Movimentação de fim de missa na Paroquia da Paz, na Aldeota, na sexta, 24 de julho (Foto: Barbara Moira)
Foto: Barbara Moira Movimentação de fim de missa na Paroquia da Paz, na Aldeota, na sexta, 24 de julho

A poucos metros da Praça Portugal, um ponto de encontro do bolsonarismo no coração do bairro Aldeota, a Paróquia da Paz vive dias de desassossego. E a razão é pública.

Já há três semanas, as missas dominicais celebradas no local se tornaram tema de disputa e o espaço da igreja, considerado sagrado por seus frequentadores, lugar de confrontação e de intolerância política.

A vazão desse ódio começou no dia 4 de julho, logo depois do sermão do padre italiano Lino Allegri, 82. Naquele domingo, ao fim da homilia, o sacerdote foi atalhado por grupo de oito pessoas, sete mulheres e um homem - um coronel reformado do Exército.

A comitiva acossou Lino na sacristia, intimando-o a se explicar sobre as críticas que tinha feito à condução da pandemia pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) - alvo de uma CPI no Senado e de dois inquéritos, um da Polícia Federal e outro do Ministério Público Federal.

O padre ouviu-os calado, contam testemunhas. Depois, reafirmou o que tinha pronunciado na missa: que as quase 550 mil mortes pelo coronavírus no Brasil podiam ter sido evitadas. Auxiliares chegaram em seu socorro. Insatisfeito, o grupo retirou-se da paróquia. Mas haveria troco.

Na missa do dia 11, quando eram lidas notas de desagravo a Lino assinadas por movimentos sociais e pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), um homem, o mesmo coronel que o havia interpelado uma semana antes, interrompeu a missa aos gritos, acusando-o de "transformar o altar em palanque político". Foi expulso do templo por outros fiéis. Gritos de "fora Bolsonaro" e a canção de São Francisco se misturaram no ambiente.

Dias depois, Lino foi temporariamente afastado das celebrações, e ainda não retornou. Como passou a receber ameaças pessoalmente e pelas redes sociais, inscreveu-se no Programa Estadual de Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos (PPDDH). Por determinação do governador do Estado, um inquérito foi aberto pela Polícia Civil para investigar as agressões e identificar seus autores.

Ainda sem Lino, a missa do domingo, 18, ficou a cargo de outro padre, que evitou os temas espinhosos a uma parte de seus paroquianos. Bolsonaristas reuniram-se em peso. Em verde-amarelo, cantaram vitória. Por mensagens de áudio trocadas em grupos, festejaram o afastamento de Lino, a quem chamam de "padre comunista", e comemoram a expulsão dos "vermelhos" e dos "imbecis", numa linguagem que combina militarismo e religião e antecipa as tensões e armadilhas de 2022.

Esse léxico não é casual. É parte da gramática beligerante do próprio Bolsonaro. Pesquisador de religiosidade e professor, o cientista político Emanuel Freitas (Uece) explica por que a Igreja da Paz se tornou território dessa radicalização.

"É uma igreja frequentada por católicos mais tradicionais, membros da elite, e também muitos do Shalom da Paz, que recebeu esse nome porque fica perto da Igreja da Paz", afirma.

Segundo ele, "esperava-se essa reação (contra Lino), dado o conjunto de fiéis", composto exatamente pelos estratos mais representativos de uma base que ainda se mantém ao lado do presidente, cuja animosidade aumenta à medida que a popularidade de Bolsonaro cai em pesquisas recentes, na esteira das revelações da CPI.

"A gente sabe que, entre os apoiadores do presidente, estão católicos tradicionalistas, conservadores e também membros do high society", elenca o docente.

Fincada em solo aldeotino, onde se localiza a única zona eleitoral no Ceará em que o então candidato Bolsonaro venceu em 2018, a paróquia da Paz reúne esses três tipos: classe média alta e ricos, católicos contrários ao progressismo na Igreja e militares da reserva.

"Há muitos generais que moram ali perto, no entorno da avenida Dom Luís. Tem uma casa de quase um quarteirão inteiro que é de um general do Exército", diz Freitas, acrescentando: "Juntaram-se três segmentos em que o presidente é forte: os católicos conservadores, os militares e os ricos".

Jornalista e doutor em Sociologia, o colunista do O POVO Ricardo Moura concorda com essa avaliação. "A Paróquia da Paz está numa área de IDH muito elevado, com uma classe média alta, fica próximo da Praça Portugal, ponto de manifestação da direita. Há toda essa carga, e a igreja não fica imune", assegura.

Para ele, "o discurso de confronto se torna algo presente, estimulado pelo presidente", e o que antes "não saía do universo restrito hoje ganhou propulsão muito grande".

"A paróquia virou uma vitrine", defende Moura, "um microcosmo de visões antagônicas". Nesse embate, avalia, "uma igreja em saída, expressão cara ao papa Francisco, se choca com uma igreja mais conservadora e que procura se afastar de questões consideradas progressistas".

 

 

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