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22 mil alunos abandonaram ensino fundamental no Ceará
Reportagem

22 mil alunos abandonaram ensino fundamental no Ceará

As aulas presenciais em escolas públicas do Ceará passaram mais de um ano suspensas, como estratégia de combate à Covid-19. As dificuldades de acompanhamento contribui para a evasão escolar
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 Escolas públicas de Fortaleza projetam retorno de atividades presenciais para setembro (Foto: Barbara Moira)
Foto: Barbara Moira  Escolas públicas de Fortaleza projetam retorno de atividades presenciais para setembro

De 2019 até maio de 2021, 22.193 estudantes abandonaram o ensino fundamental municipal no Ceará. O número é da plataforma de Busca Ativa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e reflete em grande parte o impacto da pandemia de Covid-19. Como parte das estratégias para conter a pandemia do novo coronavírus, autoridades sanitárias pelo mundo orientaram a suspensão de aulas presenciais, o que criou dificuldades para continuidade dos estudos sobretudo de crianças e adolescentes mais pobres e sem acesso a recursos tecnológicos.

Destes mais de 22 mil estudantes, 12.001 estão sendo acompanhados pelas escolas. Juazeiro do Norte, Itapipoca e Caucaia apresentam os maiores números. São 2.018, 1.054 e 1.042 alunos fora da escola em cada um desses municípios, respectivamente.

A plataforma de Busca Ativa permite que os promotores do Ministério Público Estadual (MPCE) e os conselheiros tutelares, além dos gestores, acompanhem a situação de evasão escolar. A falta não justificada resulta em alerta aos gestores escolares, conselheiros tutelares e promotores de Justiça.

O motivo mais comum apontado para a evasão é por a escola ou os estudos serem considerados desinteressantes. Mudanças frequentes de domicílio, viagem ou deslocamentos são outra das razões. O fato de crianças ou adolescentes estarem em situação de rua é outra razão apontada para milhares estarem fora da escola no Ceará, de acordo com a plataforma.

Estarem em conflito com a lei, terem doença ou alguma deficiência física, mental, intelectual ou sensorial são outras razões elencadas. Dependência química, sofrerem abuso, gravidez na adolescência, trabalho infantil e violência na família, na escola ou no território onde vivem também são fatores. E há crianças que deixam de frequentar escola por falta de documentação ou de transporte escolar.

De acordo com a procuradora de Justiça e secretária executiva do Centro de Apoio Operacional da Educação do MPCE, Elizabeth Almeida, o órgão tem se reunido com gestores municipais e conselheiros tutelares para treinamentos sobre o uso da plataforma.

O aluno detectado fora da escola passa a ser acompanhado por um ano pelos profissionais da escola. Durante esse ano, o desenvolvimento desses alunos é acompanhado, assim como nível de aprendizagem. Na rede municipal de ensino de Fortaleza, foram identificados 525 alunos em situação de evasão.

"Essas crianças que abandonaram e não retornaram são a grande preocupação que a gente tem. Nossa meta é que as crianças que não concluíram em 2020, retornem em 2021 e que as que estão em 2021 não abandonem a escola e que todas que estavam fora da escola até 2019 sejam localizadas", pontua Rui Aguiar, representante do Unicef no Ceará.

Ele acrescenta que a previsão é que uma quantidade muito grande de alunos tenha abandonado a sala de aula durante a pandemia. Segundo dados preliminares, com base no Sistema de Gestão Educacional da Secretaria Municipal de Educação (SME) de Fortaleza, em 2020, os dados referentes ao abandono caíram para 0,1%. Em 2019, esse número era de 0,4%.

A SME informou, por nota, que foi assinado termo de cooperação técnica que tem por objeto a implementação de ações conjuntas entre a pasta, a Secretaria Municipal da Saúde, Secretaria Municipal de Direitos Humanos e do Desenvolvimento Social e Secretaria Estadual da Educação (Seduc) para que assegurem, de forma permanente, a Busca Ativa de crianças e jovens fora da escola na rede municipal e na rede estadual em Fortaleza, e promovam os encaminhamentos e atendimentos pertinentes a cada instituição, com o acompanhamento do Ministério Público do Ceará.

A SME ressalta que, em 2020, a Prefeitura identificou 196 alunos fora da escola, dos quais 174 encontram-se matriculados em 2021, 18 foram transferidos para outras redes e 4 não foram matriculados. As principais causas do abandono, conforme levantamento da SME, são questões econômicas, conflitos sociais e familiares e gravidez na adolescência.

 

Cuidados com higiene são cruciais no retorno às aulas presenciais
Cuidados com higiene são cruciais no retorno às aulas presenciais

O que as escolas públicas precisam para o retorno às aulas presenciais

Desde 20 de março de 2020, as aulas da rede pública de ensino no Ceará ocorrem de forma remota. O retorno de forma híbrida é projetado para este segundo semestre, como já ocorre em escolas particulares desde o primeiro semestre. Desde março de 2020, cerca de 48 milhões de estudantes deixaram de frequentar as atividades presenciais nas mais de 180 mil escolas de educação básica espalhadas pelo Brasil, como forma de prevenção adotada pelos governos para restringir a propagação do coronavírus, como mostram os dados do último Censo Escolar produzidos pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep).

Para haver aulas presenciais, as escolas precisam ter estrutura para acomodar estudantes em sala de aula, assegurado o distanciamento, além de disponibilizar equipamentos de proteção individual (EPIs) tanto para professores quanto funcionários e alunos.

De acordo com o Ministério Público Estadual (MPCE), dos 184 municípios cearenses, 119 enviaram o Plano de Retomada das Aulas Presenciais. Dentre as respostas, 110 cidades (59,78%) encaminharam ao Ministério Público o Plano de Retomada, seis informaram que o referido Plano está em elaboração (3,26%) e três informaram outras providências (1,63%), sem mencionar o Plano. Outros 65 municípios não responderam ao Ofício do MPCE (35,33%). Os planos seguem as diretrizes disponibilizadas pela Seduc e abordam a governança, que leva em consideração a realidade múltipla dos alunos; infraestrutura, diretrizes pedagógicas e sanitárias e gestão de pessoas.

O checklist para a inspeção em escolas públicas, disponível no site do MPCE, inclui como requisitos, além dos totens de álcool em gel, tapete sanitizante e aferição de temperatura, a adaptação dos bebedouros para encher garrafas individuais, banheiros bem estruturados, sinalização no piso para distanciamento, proteção acrílica onde não é possível realizar distanciamento e arborização do local. Ao todo são 20 requisitos.

Em Fortaleza, 581 unidades foram analisadas e passaram ou estão passando por adequação para adaptação da infraestrutura, de acordo com o protocolo sanitário de prevenção à Covid-19. Entre as adaptações estão a instalação de lavatórios e abertura de passagem e melhor circulação de ar. Outras 43 unidades passam por adequações mais complexas, dentro do pacote de requalificação das unidades escolares.

De acordo com o representante do Unicef no Ceará, Rui Aguiar, a primeira condição para o retorno é que a escola tenha infraestrutura e equipamento básico. "O espaçamento na sala de aula e nos espaços de convivência, organização do recreio, da merenda escolar. Existe uma série de protocolos e o Unicef está levantando esse diagnóstico nas escolas. Estamos trabalhando muito forte para que as escolas se organizem para que em agosto tenham os equipamentos prontos", explicou.

Outro ponto que requer atenção são as condições do transporte escolar, mais usado pelas crianças do Interior do Estado. "Tem elementos também relacionados ao próprio fardamento, com condições na própria casa da criança para lavagem de roupa e higiene pessoal e isso é uma coisa importante, sobretudo em crianças da escola pública", frisou Rui.

A pesquisa "Voz dos Alunos", realizada pela ONG Visão Mundial, ouviu crianças de 7 a 11 anos, de comunidades vulneráveis e matriculadas na rede pública de ensino nas regiões Norte, Nordeste e Sudeste, inclusive em Fortaleza. Ela mostrou que 68% dos alunos relataram insegurança para o retorno presencial, sendo que 84% destes relataram medo da contaminação. Além disso, 42% das crianças entrevistadas disseram que não possuem todos os materiais suficientes para levar à escola diariamente e necessitam de apoio da escola para estar protegido.

Rui Aguiar explica que algumas ações que a Prefeitura desenvolveu durante a pandemia precisam ser continuadas, como a doação de cestas de alimentos, o auxílio que foi dado no cartão para crianças de 0 a 5 anos de complementação de renda familiar. "As escolas também devem estar organizadas para garantir que as crianças que não possam retornar continuem com a educação a distância. Toda essa estrutura de EAD da pandemia precisa ser mantida durante os próximos meses", acrescenta.

A pesquisa "A Voz dos Alunos", mostrou ainda que 6% das crianças entrevistadas não tiveram acesso às aulas remotas. Das crianças que não tiveram acesso às aulas, a maior parte está localizada em Recife (56%) e Fortaleza (44%). Entre as que tiveram acesso e relataram dificuldade, 59% relataram problemas de conexão com a internet, 34% relataram dificuldade no acesso ao material escolar, 22% relataram dificuldade no apoio para realização das tarefas e 11% relataram que a alimentação foi insuficiente.

 

Estudantes mentalmente adoecidos

De acordo com a pesquisa IPEC Unicef sobre os impactos primários e secundários da Covid-19 em Crianças e Adolescentes, lançada em junho deste ano, 56% dos adultos disseram que algum adolescente da casa apresentou um ou mais sintomas relacionados à saúde mental. Entre os sintomas de transtornos mentais apresentados pelos adolescentes estão: mudanças repentinas de humor e irritabilidade (29%), alterações no sono como Insônia ou excesso de sono (28%), diminuição do interesse em atividades rotineiras (28%), preocupações exageradas com o futuro (26%) e alterações no apetite (25%).

Além disso, 55% relataram que os hábitos alimentares da casa mudaram durante a pandemia. Entre esses, 49% das famílias com crianças e adolescentes passaram a consumir menos frutas e verduras no período.

Em relação ao acesso ao material de aula, os principais canais às atividades são Whatsapp (71%) e material impresso (69%). Nas famílias com renda de até um salário mínimo, 65% dos estudantes usam exclusivamente o celular para as aulas.

Por nota, a Secretaria Municipal da Educação de Fortaleza destaca as estratégias que foram fortalecidas durante a pandemia e devem ser continuadas durante o retorno. A Célula de Mediação Social e Cultura de Paz, criada em 2013, possui o Projeto Escola Mediadora que Promove a Paz (Empaz). A iniciativa tem o objetivo de prevenir a violência e promover a resolução pacífica dos conflitos escolares de modo a criar um ambiente pedagógico seguro, acolhedor e propício ao crescimento intelectual.

Em 2020, a Prefeitura contratou profissionais psicólogos e implantou o Serviço de Psicologia Escolar na Rede Municipal, que possibilita o atendimento a estudantes, seus familiares e profissionais da Rede de Ensino, contribuindo com o processo de ensino e aprendizagem, escuta, orientação e fortalecimento dos vínculos e bem-estar da comunidade escolar. Entre outras ações, o serviço conta com o Plantão Psicológico Escolar (PPE) que ocorre de terça a quinta, nos turnos manhã (8h às 11h) e tarde (14h às 17h), pelo telefone: (85) 3459 6996.

O projeto Academia do Professor realiza o Grupo de Apoio à Saúde Mental dos professores em tempos de Pandemia, encontros virtuais com o objetivo de trocar experiências, além de dar suporte social e psicológico neste período. Outra estratégia foi a disponibilização de atendimento psicológico aos profissionais da Educação que atuam na Rede Municipal de Ensino, através do projeto Sintonia.

Dados não trazem dimensão da precariedade, mesmo com esforço dos professores

Reginaldo Silva, coordenador de Advocacy da ONG Visão Mundial, responsável pela pesquisa "A Voz dos Alunos"

O POVO - Como ter um retorno seguro às aulas presenciais na rede pública?

Reginaldo Silva - O retorno seguro depende muito do investimento público para isso. É preciso espaço adequado, que possibilite distanciamento social. Além do espaço físico, é necessário que haja suporte para as famílias adquirirem kits de proteção. Produtos de limpeza precisam estar na escola e nas casas dos alunos.

OP - Quais os impactos dos cortes orçamentários na educação, nesse cenário?

Reginaldo - Esse é um dos maiores impactos. Houve cortes na área da educação nesse período, com medidas relacionadas à pandemia, teto de gastos e reduziu um valor muito alto da educação. A gente precisa de investimento, não existe retorno seguro sem investimento público pra isso.

OP - De que forma a saúde mental das crianças é um desafio?

Reginaldo - As crianças estão muito preocupadas com o retorno das aulas. É preciso olhar de maneira integral para essa criança, reconhecendo um ser que foi altamente impactado pela pandemia. Crianças acostumadas com o convívio, brincadeira, relações com outras crianças. É preciso pensar a aprendizagem, mas também o apoio psicológico para essa volta ao convívio e essa ansiedade presente nessas crianças. Nós escutamos muitas crianças e elas disseram em sua maioria que tinha o acompanhamento dos professores, pelo Whatsapp, mas esse acompanhamento é precário. Ouvimos crianças que só tinham um celular em casa e para fazer as tarefas, assistir aula, tinham de esperar o pai voltar para casa à noite. Esses dados, quando são apenas números, não trazem a dimensão da precariedade desse ensino a distância, mesmo com todo esforço dos professores. A Prefeitura de Fortaleza tem ajudado com alimentação, mas não chega em todos, porque uma parte das crianças disseram na pesquisa que passaram fome. Quando a gente entrevistava, algumas crianças respondiam que estavam assistindo aula pelo Whatsapp. Não tem como fazer isso, principalmente, no caso de quem utiliza celular com conexão de dados. Esses dados acabam e esses alunos chegam a ficar 15 dias sem acesso. Outra coisa importante, é preciso dar atenção aos professores e capacitação para a utilização das ferramentas tecnológicas.

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