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Desvalorização do real: os dois lados da moeda brasileira
Reportagem

Desvalorização do real: os dois lados da moeda brasileira

Com incertezas no cenário político e econômico — além da pandemia —, a desvalorização do real diante de outras moedas tem impactos diretos no bolso do brasileiro, desde viagens ao Exterior até produtos da cesta básica
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Casa de câmbio Ouro Minas vê agora retomada da procura  (Foto: Thais Mesquita)
Foto: Thais Mesquita Casa de câmbio Ouro Minas vê agora retomada da procura

Se você tivesse guardado R$ 100 em 1994, esse dinheiro seria equivalente a algo em torno de R$ 16 atualmente, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A constante alta da inflação no Brasil permite prever que se você guardasse esses R$ 16 de hoje, o dinheiro também valeria bem menos daqui a um ano.

Em setembro de 2021, a inflação ficou em 1,16% — a maior taxa para o mês desde o início do Plano Real (1994). No mês de novembro, apesar de ter desacelerado na comparação com outubro, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) registrou maior variação para o período desde 2015.

A desvalorização da moeda brasileira em relação a outras como dólar, euro e libra tem tido efeitos severos na economia, e é uma das principais causas/consequências da escalada inflacionária no País.

Um estudo do Centro de Macroeconomia Aplicada da Escola de Economia de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), revelou que o real encerrou o terceiro trimestre de 2021 com desvalorização de aproximadamente 31% em relação aos seus fundamentos.

O cenário de instabilidade política, recessão econômica, incerteza fiscal e crise sanitária gerada pela pandemia de Covid-19 culminam neste achatamento da moeda, que se espalha por todos os setores da sociedade e tem afetado desde viagens ao Exterior, passando pelo preço dos combustíveis, até o poder de compra de produtos básicos, gerando insegurança alimentar.

De modo geral, a desvalorização do real pode causar dois efeitos principais: internamente (mercado interno), ocasionado pelo aumento de preços de produtos/insumos importados em dólar. “Em decorrência do fator externo (com efeito reflexo no mercado interno), há impacto no poder de compra por conta do aumento dos preços internacionais das commodities (de combustíveis, que encarece o transporte, e de alimentos – trigo, carne, soja etc.)”, explica explica o economista Wildys Oliveira.

“Havendo vantagens econômicas para os grandes produtores, eles haverão de priorizar a venda para o Exterior (receberão mais US$ por produto, ou seja, mais lucro). Isto pode resultar na falta de produtos internamente. Esta falta pode resultar numa escalada inflacionária desses produtos considerando aumento de preço”, detalha.

O aumento do preço de itens básicos, como o arroz, é um exemplo de como o dólar em alta e o real em baixa pode chegar à mesa das famílias brasileiras. O valor de uma cesta básica, que inclui produtos como arroz, feijão, farinha, café, leite e pão, na cidade de São Paulo subiu de R$ 490,36 (2019) para R$ 692,27 em 2021, segundo o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

No semestre, a cesta básica de Fortaleza inflacionou 9,05%, enquanto que no ano foi de 7,61%. Isto significa que a alimentação básica em novembro de 2021 (R$ 580,36) está mais cara do que em maio de 2021 (R$ 532,21) e ante novembro de 2020 (R$ 539,33).

Diante deste cenário, para o também economista Ricardo Eleutério, as preocupações fiscais e as indefinições sobre a política nos Estados Unidos acabam pressionando o câmbio para cima. “A taxa de câmbio foi feita para desmoralizar os economistas”, brinca ele.

“Nós temos um mercado de câmbio muito volátil, com flutuações abruptas para cima ou para baixo. O Brasil adota um regime de câmbio flutuante desde 1999. A principal desvantagem é a volatilidade ou a flutuação excessiva que nós temos experimentado. A taxa de câmbio é causa de problemas macroeconômicos e também é um produto de problemas macroeconômicos: se os Estados Unidos sobem a taxa de juros, a taxa de câmbio sobe no Brasil, o que gera mais inflação e faz com que o Banco Central eleve ainda mais a Selic, esfriando consumo e gerando desemprego”, frisa.

Os números mostram, por exemplo, que estamos há dois trimestres seguidos de variação negativa do PIB, o que tipifica tecnicamente uma recessão. “Se nós tivermos mais quedas do PIB no ano que vem, mais recessão e a inflação não declina. Em função das incertezas, nós vamos ter uma combinação de recessão com inflação, e sempre que as incertezas aumentam, o dólar é pressionado para cima”.

O poder de compra e o mercado de câmbio

A desvalorização do real gera um aumento na taxa de câmbio, o que também pode influenciar nas demandas por compras internacionais, como viagens e produtos. Com a diminuição do poder de compra agravada pela pandemia, há um aumento de brasileiros que resolvem emigrar para tentar a vida em outros países, entretanto os gastos no Exterior acabam se tornando mais caros.

O câmbio brasileiro chegou a ser o 15ª mais valorizado em 2021 em relação ao dólar, porém voltou a desvalorizar depois de junho. Conforme ranking da Austin Rating, o real recuou 6,5% em relação à moeda norte-americana neste ano. 

O gerente comercial da casa de câmbio Ouro Minas, Caio Ito, esclarece, portanto, que houve uma redução da procura durante a pandemia, mas que, com o avanço da vacinação, a retomada já pode ser percebida.

"A economia funciona como uma engrenagem, onde cada atividade se relaciona de alguma forma a outras. Durante a pandemia, devido às medidas de saúde e contenção da disseminação do vírus, houve a necessidade de as pessoas ficarem mais tempo dentro de casa, o que diminuiu o fluxo de turismo e por consequência a negociação de moedas estrangeiras."

O CEO do Grupo RRC complementa que "aos poucos as pessoas estão voltando a viajar, principalmente as que já tinham viagem agendada. Após um período de reclusão é natural que o turismo volte a crescer, ainda mais levando em consideração o aumento de vacinas e aberturas de fronteiras. Contudo, devido a falta de informações de alguns países e aceitação de certas vacinas, acaba dificultando essa retomada."

E, de acordo com Caio, "o mercado acreditava que o aumento nos preços das commodities e a alta de juros ajudaria o Real a se valorizar, mas a verdade é que o investidor estrangeiro, aquele de fora que aloca capital no Brasil, ajudando a gerar empregos, ainda está muito preocupado com a questão fiscal no Brasil, o que se traduz em uma questão política".

 

 

 

 

Câmbio

Dólar comercial:

R$ 5,59

Dólar Turismo:

R$ 5,78

Euro comercial:

R$ 6,31

Euro Turismo

R$ 6,48

Libra comercial:

R$ 7,39

Libra Turismo:

R$ 8

Fonte: Ouro Minas

 

Paulo já se preparava para a viagem há quatro anos
Paulo já se preparava para a viagem há quatro anos

Para ir ao Exterior, comprar moeda aos poucos é uma estratégia

Paulo Sérgio, 27 anos, é cirurgião-dentista e está há dois meses na Espanha preparando sua mudança para iniciar um mestrado. Ele explica o que o motivou a sair do País: "No Brasil, a gente não tem coisas que eu acho que são necessárias, como saúde, educação e segurança".

Paulo já se preparava para a viagem há quatro anos, mas conta que o contexto pandêmico atrasou seus planos. "A pandemia tardou um pouco, mas eu já levava mais de quatro anos me programando pra isso. Foi algo bem pensado, e tem que ser bem pensado. Não é uma coisa que você simplesmente diz: ah, estou indo e acabou".

Quando percebeu a desvalorização do real diante do euro, o cirurgião-dentista logo traçou estratégias para se preparar financeiramente: "Eu perguntei para amigos quem tinha euro em casa de alguma viagem que fez, se sobrou algum dinheirinho e podia trocar comigo, porque o que eu puder economizar de câmbio já vale a pena".

Outra saída encontrada foi comprar euro gradualmente. "Eu fiz isso e também vinha comprando euro devagarinho, aos pouquinhos. Eu vou comprando sempre aos poucos, não compro tudo de uma vez. Porque é uma forma de eu ter uma média do dinheiro, então às vezes eu compro alta, às vezes eu compro baixo e aí eu consigo uma média. Isso é uma dica pra quem está pra quem está se programando a longo prazo. Se programar e ter documento", finaliza Paulo Sérgio.

 

Bruno e Lívia chegaram faz poucos dias a Portugal
Bruno e Lívia chegaram faz poucos dias a Portugal

Imprevisibilidade é um desafio ao se mudar para outro país

O casal Lívia Rosendo e Bruno Viana se mudou para Lisboa, Portugal, em busca de qualidade de vida.

"Além da questão econômica, por ser uma moeda mais valorizada, a gente queria algo que não saísse com o nosso bem que se esforçou muito para conquistar e qualquer pessoa viesse e levasse. Coincidentemente, a gente fez uma despedida do Brasil com todos os amigos num barzinho, chegaram três caras armados e assaltaram a gente. Levaram minha bolsa com todos os documentos, os cartões, meu celular e de todos que estavam lá", relata Lívia, 30 anos, que é psicóloga.

Ela diz que começou a se preparar em março de 2020, e que a mudança somente foi menos difícil porque seu esposo, que é programador, conseguiu um emprego já recebendo em euro: "A área da tecnologia está sendo muito valorizada aqui em Portugal, eles precisam muito, então ele começou no novo trabalho remotamente e aí a gente começou a fazer a preparação de visto e passaporte".

Recém-chegados e ainda desfazendo as caixas da mudança, Lívia e Bruno conseguiram driblar a desvalorização do real juntando dinheiro em euro. "A gente percebeu, quando a gente estava com uma grana boa em real, que convertendo não iria valer tanto a pena. Como o meu esposo já estava ganhando em euro, a gente deixou o real para resolver as coisas lá [no Brasil]", conta a psicóloga.

 

Janaina diz que viu seu dinheiro em real virar
Janaina diz que viu seu dinheiro em real virar "água"

A sensação de perceber que seu dinheiro perdeu valor

A dentista Janaína Moura, 33 anos, tinha o sonho de morar fora para aprimorar seu inglês e viver uma experiência em outro país. Estudando há quatro meses em Sandy (Utah), nos Estados Unidos, ela começou a se organizar depois de uma viagem para Nova York, em 2019, quando pensou ser o melhor momento.

"Eu senti que talvez fosse a hora, já comecei a colocar meu carro para vender e tudo para que eu pudesse juntar esse dinheiro e viesse passar aqui pelo menos um ano estudando. Veio a pandemia, por um milagre de Deus eu consegui vender meu carro, porém, os consulados fecharam então eu fiquei nessa esperança de quando iam abrir para que eu pudesse vir", relata.

Janaína passou o ano de 2020 e uma parte de 2021 na expectativa, e quando finalmente conseguiu retomar os planos, deparou-se com outro desafio: a desvalorização do real.

"Muita coisa mudou, o dólar foi ficando cada vez mais alto, o real desvalorizando demais, então, com certeza, eu tive muito prejuízo em relação a isso. O que eu esperava comprar ou gastar com o dinheiro que eu tinha realmente não deu, né? Tive que escolher algumas coisas, o que dar prioridade. A desvalorização estava muito grande e simplesmente teve coisa que eu não consegui comprar, e outras que eu ainda estou pensando que vai dar certo comprar ou não", diz a dentista.

Ela comenta que precisou se reorganizar ao perceber que o dinheiro tinha perdido valor: "Quando eu cheguei aqui, por causa da pandemia, tudo aqui aumentou também, preço de aluguel, supermercado, combustível, tudo isso está mais caro. Então eu tive que realmente me reorganizar em relação ao dinheiro que eu trouxe do Brasil."

"E quando você vem morar fora que você vê o poder da moeda. É uma tristeza muito grande pra gente ver que país está passando por tudo isso, ver que a nossa moeda não tem valor nenhum. Você trabalhou muito no Brasil pra ter aquele valor. E aí quando você vem morar fora, a sensação que eu tive depois que eu vim aqui, que eu peguei o meu dinheiro em real e converti pra dólar, é que meu dinheiro virou água. É como se todo o seu esforço, seu sacrifício pra aquilo se resumisse a nada", expõe a dentista.

 

Preços não param de crescer em postos de gasolina e supermercados dos Estados Unidos

"Pago 20 dólares para abastecer o tanque, mas já não posso mais enchê-lo, é um escândalo", se queixava na sexta-feira (10) Telilia Scott em um posto de gasolina em Washington, indignada pelo aumento recorde dos preços nos Estados Unidos.

Poucas horas antes, o Departamento de Trabalho americano havia informado que, em um ano, a gasolina tinha aumentado, em média, 6,8%, a maior inflação desde junho de 1982.

"É muito difícil! O pão está muito caro, o açúcar também. Tudo é muito caro!", lamentou a mulher, que tem por volta de 50 anos e está desempregada.

"Você vai ao mercado e tem que pagar sete dólares por um galão de leite [cerca de quatro litros], quando antes custava 2,39!". Para ela, o "absurdo" é ainda maior porque, "devido à covid, as pessoas não têm dinheiro e estão começando a trabalhar de novo" agora e voltando a ganhar um salário.

Outro motorista, Earl Walker, também reclamou da inflação. "Os preços aumentam todos os dias", afirmou, ao assinalar que o combustível inflacionou tanto que, às vezes, não consegue se deslocar para o trabalho e precisa "pedir dinheiro emprestado" para se locomover.

Segundo os dados publicados na sexta-feira, os preços no setor energético foram os que mais aumentaram em um ano (33,3%), assim como acontece em muitos países, como o Brasil.

"Não posso mais encher o tanque, isso me custaria mais de 100" dólares, explicou Walker, um assistente social de 40 anos, que também se queixou do aumento do preço da carne de frango nos supermercados.

Perto do mesmo posto de gasolina, Edward Harrison, de 47 anos, fazia compras no Walmart, a maior rede de supermercados dos EUA.

Harrison confessou que tem saído menos e que passa mais tempo na internet em busca de ofertas, mas que preferiria ir diretamente ao supermercado mais próximo de sua casa.

"Agora preciso ter mais cuidado", afirmou o técnico em eletrônica, que também recorre a produtos de segunda mão "quando necessário".

No mês passado, os preços dos carros novos subiram 11,1%, enquanto os veículos usados tiveram aumento de 31,4%. Em outubro, o aumento havia sido ainda maior.

Por outro lado, para os que têm mais recursos, o aumento da inflação passa mais ou menos desapercebido.

Stephen Keil, de 30 anos e funcionário de uma grande empresa de energia, contou que só percebe a inflação quando recebe seus extratos bancários "mais tarde". Para ele, os preços aumentaram de forma "gradual".

Segundo Keil, os aumentos mais evidentes estão nos presentes de Natal, como por exemplo as bicicletas. "Dizem nas lojas que isso se deve ao aumento do custo de transporte", comentou.

A seu lado, Abby Mitchell, uma pesquisadora de 29 anos, agora está comparando os preços das diferentes marcas e produtos. Ela admitiu que, antes, "se queria comprar espinafre, comprava espinafre, sem realmente olhar o preço".

Contudo, os moradores da capital, onde predominam os eleitores do Partido Democrata, não culpam pela inflação o presidente Joe Biden, que prometeu inverter essa tendência.

"Tudo se deve à covid", disse Stephen Keil. "Não há muito que o governo possa fazer".

"Biden fez muito pelas pessoas", afirmou Telilia Scott no posto de gasolina, "mas os políticos ainda podem fazer mais".

ube/seb/dg/lda/rpr

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