No ano de 2020, como nunca antes, a ciência conseguiu desenvolver vacinas contra uma doença nova e pandêmica em tempo recorde — cerca de um ano entre a primeira infecção e a disponibilização pública do primeiro imunizante. Contudo, a garantia contra a infecção não se manterá da forma como é atualmente. Ainda existem dúvidas sobre como será a campanha de vacinação contra a Covid-19 nos próximos anos, mas o que se sabe até agora indica o caminho para a imunização anual. Por certo, pode-se dizer que a vacina contra o Sars-CoV-2 e suas variantes continuará sendo essencial para a preservação da vida e que serão necessárias novas doses nos próximos anos.
Há pouco mais de um ano, a humanidade começou a ser vacinada contra o vírus em sua forma "primitiva". Com a disseminação de novas linhagens e sublinhagens, as doses de reforço tornaram-se ainda mais decisivas para garantir proteção contra as formas graves da doença. Atualmente, algumas centenas de imunobiológicos estão em processo de pesquisa e desenvolvimento — um deles sendo cearense, desenvolvido por pesquisadores da Universidade Estadual do Ceará (Uece). No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) utiliza vacinas de quatro laboratórios (Astrazeneca, Sinovac, Janssen e Pfizer).
Diante das evidências observadas até então, para Flávio Guimarães da Fonseca, professor do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) e pesquisador do Centro de Tecnologia de Vacinas (CTVacinas) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a tendência é que a vacinação contra a Covid-19 se aproxime do esquema atual da gripe.
Para o microbiologista, que também é presidente da Sociedade Brasileira de Virologia, "no momento, a gente está aplicando essas doses de reforço porque a gente vive uma situação pandêmica". Saindo da condição pandêmica, é provável que se possa adotar um esquema anual ou bianual, argumenta o professor.
"Esses esquemas vacinais que a gente tem hoje devem permanecer e continuar sendo utilizados. Porque a gente ainda tem uma demanda global por essas vacinas. O que pode acontecer é o surgimento de novas vacinas. Desenvolvidas com tecnologias diferentes. Como qualquer outra tecnologia, com o tempo, vai melhorando", detalha.
A epidemiologista Ana Brito, integrante da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e pesquisadora do Instituto Aggeu Magalhães da Fundação Oswaldo Cruz (IAG/Fiocruz), destaca que a indústria farmacêutica tem se mobilizado para fazer a atualização das vacinas utilizadas hoje.
A professora da Universidade de Pernambuco (UPE) cita o caso da chinesa Sinovac, que tem desenvolvido uma vacina trivalente cuja estratégia seria semelhante a da vacina da gripe, "onde haveria uma atualização anual da vacina com as cepas mais circulantes do vírus, a exemplo do que acontece com a influenza". "O resultado dos estudos em laboratório com a vacina trivalente parecem ser bastantes promissores", avalia.
Por outro lado, alguns pesquisadores colocam o pé no freio com relação ao que se desenha para a vacinação contra o Sars-CoV-2. "Nós temos ainda muitas dúvidas de como tudo vai evoluir", pondera Juarez Cunha, pediatra e presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
Na análise de Fábio Myajima, doutor em Epidemiologia e Ciências da Saúde e coordenador da Rede Genômica da Fiocruz Ceará, ainda não há ainda uma definição a respeito e a vacinação contra a Covid-19 "não necessariamente seguirá um esquema vacinal como da gripe comum".
Contudo, ele concorda que há a necessidade de se atualizar as vacinas atualmente utilizadas. "Não existe ainda uma definição em relação à sazonalidade e potenciais ciclos endêmicos e epidêmicos da Covid-19, ao passo que para a gripe comum, especialmente para a Influenza A, já existe um certo padrão a seguir", diferencia.
É importante lembrar também que os fatores que determinam a definição de campanhas de vacinação estão muito relacionados com a circulação do vírus. A epidemiologista Ana Brito lembra que "qualquer cenário que a gente tente estimar hoje para o próximo ano pode se modificar rapidamente".
As lições da ciência na guerra contra a Covid-19
A imunização contra a Covid-19 corrobou o que a História já mostrava sobre a eficácia de vacinas para salvar vidas e evitar situações epidemiológicas graves. Mas a pesquisa científica ainda tem muitos desafios à frente. A maior expectativa é que os imunobiológicos contra o Sars-CoV-2 tornem-se mais eficazes contra as variantes e que garantam maior tempo de proteção.
"As vacinas têm se mostrado eficazes principalmente para formas graves, independente da variante. Mas a gente está precisando fazer as doses de reforço. As variantes foram surgindo e desenvolvendo a capacidade de fugir da resposta imune. Não só da vacina, mas também a natural, de quem teve Covid", explica Juarez Cunha, pediatra e presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
Segundo o médico, 12 vacinas de uso intranasal estão sendo estudadas. No total, mais de 350 vacinas contra a Covid-19 foram ou estão sendo estudadas em todo o mundo. Metade delas estão em fase clínica. "Estamos bastante otimistas no sentido de ter vacinas com maior possibilidade de pegar as variantes que estão se modificando", diz Cunha.
A tendência é que os fabricantes continuem empregando as mesmas técnicas que originalmente adotaram, utilizando a experiência adquirida com o desenvolvimento das primeiras vacinas, pontua Fábio Myajima, doutor em Epidemiologia e Ciências da Saúde e coordenador da Rede Genômica da Fiocruz Ceará.
A epidemiologista Ana Brito, integrante da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e pesquisadora do Instituto Aggeu Magalhães da Fundação Oswaldo Cruz (IAG/Fiocruz), detalha que a Pfizer tem desenvolvido uma vacina bivalente, que protege ao mesmo tempo contra o "vírus selvagem" (que iniciou a pandemia) e as "novas extensões" (variantes).
A Sinovac, que é parceira do Instituto Butantan, está trabalhando no desenvolvimento de uma nova geração da CoronaVac, com a perspectiva de uma vacina trivalente: que combate as variantes mais recentes — a Ômicron e a Delta — e a cepa original.
Fábio Myajima salienta que o impacto da Covid-19 promoveu muitas iniciativas colaborativas e "de certa forma uma revolução nas práticas de desenvolvimento de vacinas". "Nunca na história se concebeu, desenvolveu, e se colocou no mercado com tamanha rapidez e celeridade vacinas para um novo patógeno como o que aconteceu para o Sars-CoV-2", afirma.
O pesquisador da Fiocruz Ceará aponta que o tema central dos novos desenvolvimentos é a questão de "futuramente termos uma vacina que mais efetivamente previna a doença", além das formas graves e mortes.
"A literatura científica indica que vacinas baseadas em genomas de variantes que circulam atualmente poderão ter melhor efetividade na prevenção da doença, mas que isso dependeria também de se monitorar continuamente a evolução viral (que pode influenciar na efetividade), sendo indicado também a utilização de estratégias que utilizem vacinas multivalentes".
A importância da comunicação para imunizar uma população
Uma campanha de vacinação não se restringe ao imunizante em si. Na análise da epidemiologista Ana Brito, integrante da Abrasco e pesquisadora da Fiocruz, alguns aspectos da Campanha Nacional de Imunização contra a Covid-19 deveriam ser modificados ainda este ano.
Um dos pontos é a comunicação das informações a respeito dos imunizantes. "Deve haver uma forte campanha de comunicação, que a gente não assistiu, até então", analisa. Segundo a professora, é necessário "uma campanha de comunicação responsável por parte do Governo central (Federal) que comande as ações articuladas nos três níveis de governo".
Ela defende que uma orientação única e pautada na ciência vai permitir que a população se sinta segura, inclusive, para tomar as doses de reforço. "Independentemente do método e da indústria, elas (as vacinas) são extremamente seguras, modificaram a história da pandemia no mundo. Mesmo com a introdução de novas variantes, a gente não tem mais aquele colapso nos sistemas de saúde que tínhamos antes", frisa.
Em relação ao reforço, outro aspecto apontando pela pesquisadora é a "captação de pessoas para completar o esquema básico". "Nós não temos acompanhado a tendência com relação à vacina de reforço. Ela se dá em torno de 50%. Precisamos estimular a dose de reforço para a população de maneira geral e especialmente para os mais idosos e com comorbidades (a tomar) as quatro doses. Isso é o que confere de fato redução de formas graves", acrescenta.
O que o Ministério da Saúde diz sobre a vacinação em 2023
No início de junho, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, citou a possibilidade de vacinação anual contra a Covid-19 no Brasil. Para isso, o imunizante precisaria contemplar apenas idosos, profissionais de saúde e pessoas com comorbidades. Ainda no final de maio, ele afirmou que o Governo estudava o custo e a efetividade de uma vacinação anual contra a Covid caso a doença se torne endêmica.
O POVO questionou — por e-mail e telefone, na quinta e sexta-feira, respectivamente — a Pasta sobre o que se discute acerca da vacinação contra a infecção no próximo ano mas não recebeu resposta até o fechamento desta reportagem. Algumas das perguntas enviadas foram: A campanha de vacinação contra a Covid-19 em 2023 contemplará a população total ou será direcionada apenas a idosos, profissionais de saúde e pessoas com comorbidades? Há algum resultado sobre o estudo de "custo e efetividade" de vacinação anual contra a Covid-19? Em quais circunstâncias uma vacinação anual seria possível?