Depois dos acontecimentos da semana, é fato que algo precisa mudar no mercado. O noticiário foi frenético e uma notícia se destacou: A “inconsistência” de R$ 20 bilhões nas contas da Americanas S/A, que em pouco mais de uma semana fez desmoronar uma companhia sólida com quase 100 anos de trabalho.
Agora, em recuperação judicial, a varejista deve R$ 43 bilhões a mais de 16 mil credores e é investigada por suposta fraude contábil, num dos maiores escândalos da história do mercado corporativo no Brasil.
Em meio às revelações, houve espanto no mercado. Uma empresa sólida, com sócios-controladores dos mais respeitados - e ricos do Brasil, envolta numa grande rede de suspeitas.
Um dos principais credores, o banco BTG Pactual - que tem aproximadamente R$ 2 bilhões em créditos com a varejista - chama os principais acionistas da Americanas S/A, os bilionários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, de "semideuses do capitalismo" que "foram pegos com a mão no caixa" numa fraude bilionária.
Lembrando ainda que as riquezas dos sócios soma mais de R$ 180 bilhões e que eles estariam buscando se livrar de "pagar a conta" e colocar todo "fardo de sua lambança contábil" nos ombros dos credores.
A Americanas respondeu, alegando que o BTG é um "ávido banco", que "usurpou ilicitamente sem base legal" o dinheiro da companhia. Apesar da briga entre companhias bilionárias ser a mais notável, há outros relatos.
Como o do jovem Bernardo Garcia, que denunciou no Linkedin a falência da loja de sua família após calote da Americanas. Quatro meses após fechar, o pai sofreu um infarto e ficou na UTI por uma semana. Até hoje, sofre "com ansiedade e depressão".
Para quem acompanha o mercado financeiro já percebeu que ciclos de bonanças também prenunciam os de extrema incerteza. Mas todos os limites históricos foram transpostos após o fechamento do pregão da B3 no dia 11 de janeiro, quando a Americanas disse que "foram detectadas inconsistências em lançamentos contábeis."
Banco BTG Pactual entrou em disputa bilionária ao cobrar créditos à varejista Americanas.
Josilmar Cordenonssi, professor de Ciências Econômicas e Finanças da Universidade Presbiteriana Mackenzie, avalia que ainda há muita nebulosidade sobre o tema e que falta transparência, por isso o preço das ações desfragmentou.
Saiu de R$ 11,99 no dia 11 de janeiro, quando revelou a inconsistência, para menos de R$ 1, mais precisamente R$ 0,71 no último pregão da semana passada, sexta-feira, 20.
"A primeira impressão era a de que faltava incluir R$ 20 bilhões no passivo da companhia, como o Patrimônio Líquido (PL), que era de uns R$ 15 bilhões. Com isso, a empresa teria PL negativo, o que seria um sinal muito ruim, colocando em dúvida a sua sobrevivência", explica.
Para além de uma empresa endividada, há indícios fortes de ações fraudulentas, o que tem gerado efeitos negativos na reputação da companhia e tem se espalhado em todo setor varejista. A Renner, por exemplo, chegou a perder mais de R$ 500 milhões em valor de mercado.
Neste cenário, Lucy Sousa, presidente executiva da Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais (Apimec Brasil) entende que a suposta fraude mascarou possíveis problemas financeiros da empresa e permitiu a valorização dos papéis ao longo dos anos e a distribuição de lucros aos principais executivos.
Lucy ainda acrescenta que o rombo, auditado, "induziu a análises erradas" e espera uma regulamentação mais robusta para contabilização, próximos aos padrões observados no mercado americano, que já investigou, multou em milhões de dólares e prendeu executivos acusados de fraude. "Daqui para frente todo setor entra em alerta".
Carla Beni, economista e professora de MBAs da Fundação Getulio Vargas (FGV), destaca que essa possível fraude pode deslegitimar os índices de classificação, num momento em que é cobrado das marcas as melhores práticas em critérios ambientais, sociais e de governança.
Carla ainda cobra ações mais enérgicas por parte dos reguladores do mercado financeiro e da própria Bolsa de Valores (B3), além da Americanas, que precisa responder aos consumidores, investidores, parceiros e aos 40 mil funcionários.
"A possibilidade de recuperação judicial ser bem sucedida só acontece se o consumidor continuar acreditando na Americanas e que continuem comprando nas lojas", complementa.
A Comissão de Valores Mobiliário (CVM), autarquia federal que regula o mercado de capitais, mantém sete investigações em andamento.
E apura a suposta fraude contábil e a conduta da companhia e seus acionistas e administradores, irregularidades nas negociações de ativos da companhia, avalia a atuação de agências de risco de crédito, além de possíveis irregularidades na divulgação de notícias, comunicados e fatos relevantes.
"Após a investigação e apuração de fatos e eventos, caso venham a ser formalmente caracterizados ilícitos e/ou infrações, cada um dos responsáveis poderá ser devidamente responsabilizado com o rigor da lei e na extensão que lhe for aplicável", diz a CVM em nota.
Após a confirmação do rombo de R$ 20 bilhões na Americanas, no dia 11 de janeiro de 2023, o mercado logo buscou culpados e a empresa de auditoria PwC entrou no radar.
Conhecida participante do grupo "big four" de empresas globais de consultoria e auditoria, a PwC aprovou as demonstrações financeiras da Americanas sem ressalvas na auditoria do período das "inconsistências contábeis".
Na sua garantia de lisura às Americanas, a PwC afirmou que "as demonstrações contábeis apresentam adequadamente, em todos os aspectos relevantes, a posição patrimonial e financeira".
A atuação da PwC, porém, deverá ser alvo de investigações por parte da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e por conselhos de classe, como o Conselho Federal de Contabilidade (CFC).
Vale lembrar que a PwC também auditava a Petrobras na época da Lava Jato. Procurada, a PwC informou que não comenta casos de clientes.
Em nota assinada pelo presidente-executivo Fábio Coelho, a Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec) também se pronunciou sobre os desdobramentos de inconsistências contábeis da Americanas.
A Amec externa sua perplexidade quanto às instâncias de governança da companhia, além de falha nas auditorias. Criticam ainda que esclarecimentos tenham sido dados após o Fato Relevante em reunião privada com restrição e limitação de acesso.
Por isso, cobraram manifestações "tempestivas e mais objetivas" dos órgãos de governança da Americanas e de seu Conselho de Administração, assim como a apuração da CVM.
Por enquanto, a situação da empres, conforme comunicado, há apenas R$ 800 milhões em caixa, tornando a operação insustentável. O valor surpreende, visto que, no terceiro trimestre de 2022 o montante estava em R$ 8,6 bilhões.
Bate-Pronto: Omissão de informações
O POVO - Com base nas informações que foram divulgadas, qual a proporção dessa fraude contábil cometida pelas Americanas (AMER3)?
Fabio Garcez - Ainda não há respostas consistentes para chamarmos de fraude, porém essa omissão de informações que resultaram em R$ 20 bilhões de diferença no balanço da companhia não deve ser ignorada e, pode levar a empresa a um patrimônio líquido negativo de R$ 5 bilhões. Com certeza haverá investigações da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) e até mesmo investigações civis contra sócios e diretores se caracterizada a fraude. Talvez esse caso produza um movimento no mercado de cobrar ações mais enérgicas para demonstrar a maturidade da Governança Corporativa que tem evoluído tanto em empresas de capital aberto.
OP - Existe comparativo no mercado corporativo brasileiro de tal incidente?
Fabio - No passado, empresas do varejo extremamente tradicionais como Mesbla e Mappin exemplificaram a dificuldade em se manter competitivo nesse mercado, e mais recentemente, em uma situação parecida ao das Lojas Americanas, a IRB Brasil, empresa recentemente privatizada, apresentou em 2020 inconsistências financeiras na ordem de R$ 60 milhões em bônus pagos e não declarados o que resultou em processos pela CVM e um prejuízo de R$ 1,5 bilhão.
OP - Muitos questionamentos estão sendo feitos contra os sócios-controladores da companhia. É possível que esse erro no balanço tenha sido erro ou foi "premeditado" como acusam alguns?
Fabio - Analisando apenas as informações preliminares disponíveis não conseguimos identificar culpados ou atos premeditados de fraude, porém, em uma empresa com Governança, Relação com Investidores, Auditorias e em um setor regulado é praticamente impossível que a informação não tenha gerado questionamentos em nenhum momento, e só uma investigação independente poderá trazer respostas se teremos ou não o maior caso fraudulento no mercado brasileiro.
OP - De que forma a companhia poderia remediar a situação?
Fabio - O trio de acionistas principais da empresa, integrantes da 3G Capital, podem aportar um grande volume de capital para demonstrar interesse na recuperação e apresentar um plano de reestruturação, o que poderia acalmar um pouco o mercado e estabilizar a desvalorização da companhia, porém, dificilmente esse plano de reestruturação não passará por uma drástica redução nas operações. Com uma operação menor e melhor controle a empresa pode focar em retomar seu espaço no mercado. Caso o aporte de capital não seja suficiente, a recuperação judicial pode ser um remédio amargo, porém o único a ser indicado nesse momento.
EFEITOS
Após informar a "inconsistência" de R$ 20 bilhões, a Americanas S/A está sendo investigada em sete inquéritos na CVM; perdeu mais de 90% de seu valor de mercado e agora tem ações cotadas a menos de R$ 1; foi excluída pela B3 dos índices do mercado financeiro, como o de empresas com alto padrão de governança corporativa; e entrou em recuperação judicial, com mais de R$ 40 bilhões em dívidas com mais de 16 mil credores.
ENDIVIDADOS
A recuperação judicial da Americanas é a 4ª maior da história do Brasil. Com R$ 43 bilhões em dívidas, a varejista só fica atrás de Odebrecht que iniciou o processo com R$ 80 bilhões em dívidas, da Oi (R$ 65 bilhões) e Samarco (R$ 55 bilhões).
AÇÕES NO MERCADO
No último pregão antes de ser excluída de 14 índices do mercado financeiro, incluindo o Ibovespa, a Americanas (AMER3) operou em queda durante todo o dia, abaixo de R$ 1. Até o dia 11 de janeiro, as ações valiam R$ 11,99. Em 2020, antes da pandemia, os papéis da companhia custavam mais de R$ 120.
BANCOS QUE EMPRESTARAM DINHEIRO PARA A AMERICANAS
Bradesco: R$ 4,8 bilhões
Santander: R$ 3,7 bilhões
Itaú: R$ 3,4 bilhões
Safra: R$ 2,5 bilhões
BTG: R$ 2 bilhões
Banco do Brasil: R$ 1,3 bilhão
Daycoval: R$ 600 milhões
BV: R$ 400 milhões
Fonte: Levantamento do jornal Valor Econômico
Processos Eletrônicos na CVM envolvendo a Americanas
2020: 1
2021: 4
2022: não houve
2023: 7 (dois destes são sigilosos)
A diferença entre recuperação judicial e falência
Apesar de estarem juntas na mesma legislação (Lei nº 11.101/2005), com algumas alterações em 2021, são regramentos diferentes.
- Recuperação Judicial tem o objetivo de recuperar a saúde econômico-financeira de uma empresa que tenha mais de dois anos de atividade econômica, mas que esteja momentaneamente em crise. Esse instituto serve para dar segurança jurídica aos credores e devedores, no sentido de garantir continuidade à atividade empresarial. Algumas peculiaridades acontecem, ou seja, quando uma empresa requer judicialmente a título cautelar preparatório para uma recuperação judicial, ou diretamente uma recuperação judicial, ela está dizendo ao poder público que precisa da sua ajuda intervindo na atividade econômica para que em determinado período, que são 180 dias, todas as cobranças e execuções contra a empresa e seu patrimônio, especificamente e sobretudo naqueles bens essenciais à atividade econômica, fiquem suspensas. O principal objetivo da Recuperação Judicial é dar uma blindagem patrimonial que garante, durante aquele período, que o credor não irá tomar seu patrimônio.
- Falência tem por objetivo dar segurança jurídica a credores e devedores mas, tem como ideia principal encerrar a atividade econômica ou seja, se uma empresa pede sua autofalência ou se um juiz de Recuperação Judicial decreta a falência de uma empresa então os gestores daquela empresa são afastados dos cargos e entra a figura do administrador judicial para gerir os ativos e passivos, auxiliando o magistrado para apurar todos os ativos, levar à venda por meio de leilão e obter o maior número de ativos para pagar os credores.
Fonte: Rafael Abreu, advogado empresarial e especialista em Recuperação Judicial