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Marcas que ficam: casos de intolerância religiosa mais que quintuplicam no Ceará
Reportagem

Marcas que ficam: casos de intolerância religiosa mais que quintuplicam no Ceará

Dados são de um levantamento solicitado pelo O POVO para a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS-CE) e considera os últimos quatro anos
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Mãe Telma  (Foto: Foto Filme Arreda Homem que Chegou Mulher)
Foto: Foto Filme Arreda Homem que Chegou Mulher Mãe Telma

Por ser babalorixá do Candomblé, Cleudo Pinheiro, 61, já perdeu amigos e guarda o trauma de ter tido uma arma apontada na cabeça. Assim como o pai de santo, dezenas de homens e mulheres que seguem religiões de matriz africana são discriminados por cultuarem seus antepassados e seus orixás. Só no Ceará, conforme a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS), os casos de intolerância religiosa mais que quintuplicaram entre 2019 e 2022: indo de 3 para 16.

Levantamento da pasta analisa o índice dos últimos quatro anos. Em 2022, foram 16 procedimentos referentes ao artigo 208 do Código Penal, que inclui: "Escarnecer de alguém publicamente por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso e vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso".

 

Pai Shell é responsável pela condução da casa de Candomblé mais antiga de Fortaleza
Pai Shell é responsável pela condução da casa de Candomblé mais antiga de Fortaleza (Foto: Reprodução)

Já em 2021, entre janeiro e dezembro foram identificados oito registros desse porte. Em 2020, foram nove casos. No ano de 2019 houve o registro de três ações que podem se enquadrar como intolerância religiosa, o que mostra um disparo considerável do dado durante os últimos quatro anos.

Conforme a SSPDS, balanço considera inquéritos policiais, boletins de ocorrência e termos circunstanciados de ocorrência realizados dentro do período analisado. De acordo com a defensora pública Mariana Lobo, o caso é considerado de intolerância religiosa quando há indução, incitação ou alguma "atitude de preconceito em face da religião que a pessoa exerce".

"É importante dizer que (a intolerância religiosa) é crime e como tal existe um inquérito policial, uma ação criminal e uma pena, mas também existe uma responsabilização civil porque muitas vezes esse atos (...) podem causar também um direito a reparação de danos da vítima", explica Lobo, que é ainda supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC), da Defensoria Pública do Ceará.

De acordo com o artigo 208 do Código Penal, cometer atos que se enquadrem como intolerância religiosa pode levar a detenção de um mês a um ano, ou multa. Além disso, se há emprego de violência a pena é aumentada de um terço, "sem prejuízo da correspondente à violência".

Para combater a intolerância religiosa, a Assembleia Legislativa do Estado (Alece) aprovou, em dezembro último, o projeto de Lei que criou a Delegacia de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou Orientação Sexual (Decrim) da Polícia Civil do Ceará (PC-CE). Conforme SSPDS, a instituição, que "terá como missão institucional atuar na repressão desses crimes", ainda não tem uma data para começar a funcionar, mas a previsão é de que isso ocorra "muito em breve".

Todos os dados foram compilados pela Gerência de Estatísticas e Geoprocessamento (Geesp), da Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp), vinculada à SSPDS. O POVO solicitou à pasta de segurança um detalhamento sobre quais religiões estão inclusas no levantamento, mas secretaria informou que não há como dispor desse balanço mais específico.

Religiões de matriz africana e onde prevalecem no Brasil

  • Candomblé (prevalece no Rio de Janeiro e em São Paulo)
  • Umbanda (Rio de Janeiro e São Paulo)
  • Tambor-de-mina (Maranhão)
  • Xangô de Pernambuco (Pernambuco)
  • Batuque (Sul do Brasil)
  • Candomblé baiano (Bahia)

Intolerância vai de olhares atravessados a ameaças de morte

No início de 2011, babalorixá Cleudo ti Osun resolveu inaugurar seu terreiro de candomblé em um distrito de Maracanaú, Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). No entanto, o que era para ser um momento de celebração transformou-se em um episódio traumático.

Isso porque um vizinho tentou impedir a abertura do espaço e teria até mesmo apontado uma arma para a cabeça do líder religioso. "(Ele) Saiu na rua armado e me fez ameaça de morte e depois queimou pneus em seu quintal para a fumaça impedir a festa. Chamei a polícia e fiz BO. Foi traumático", relembra.

Embora tenha sido o episódio de intolerância que talvez tenha lhe deixado mais traumas, não foi o único. Hoje com 61 anos o pai de santo relembra que já foi criticado, xingado e vivenciou violências mais "sutis" — muitas delas vindas de pessoas próximas. Durante sua jornada religiosa, cujo início se deu há cerca de 40 anos, ele relembra que amigos se afastaram e que a própria família, em parte formada por católicos, começou a enxergá-lo como "exótico" ou como uma pessoa "do mal". 

Pai de Santo Cleudo Ti Osun
Pai de Santo Cleudo Ti Osun (Foto: Reprodução)

"Estas violências são contínuas e seguem a mesma dinâmica da violência doméstica. Começa com um comentário maldoso e termina com promessa de violência. E está presente na família, na escola também (...) A escola que persegue a criança de terreiro o ano inteiro, mas comemora a semana da consciência negra", pontua.

As marcas da intolerância também estão presentes na vida de Pai Shell, responsável pela condução do Ilè Ibá, casa de Candomblé que surgiu em 1975 em Fortaleza e é a mais antiga da Capital. O pai de santo relata que sempre teve uma convivência harmoniosa com a comunidade e outros segmentos religiosos tradicionais. Contudo, ao longo da sua vida, ele já foi marcado por olhares atravessados de preconceito.

"As pessoas descrevem nossa religiosidade com um termo pejorativo grotesco, criado com o passar dos tempo que simplesmente nos resume como macumbeiros, seguidores do diabo (...) Comigo não é diferente, somos observados como encarnados sem luz (...) Consigo me sair desses olhares cristãos preconceituosos e discriminados, de forma política, sem me deixar permitir se sentir inferiorizado, com argumentos ecumênicos esclarecedores, sem confronto", conta.

Mãe Telma
Mãe Telma (Foto: Reprodução / Foto Filme Arreda Homem que Chegou Mulher)

O sentimento não é diferente para Mãe Telma, responsável pela condução da Tenda Espiritualista Mãe Tutu, casa de Umbanda aberta há nove anos em Fortaleza. Embora nunca tenha passado por agressões físicas ou verbais por conta da religião, ela afirma que sempre é alvo de olhares julgadores quando sai na rua vestida de mãe de santo. 

"No meu trabalho é que sempre ligam perguntando se tenho tempo para ouvir a palavra de Jesus e isso me irrita. Não por conta de Jesus, mas porque não existe nenhum macumbeiro que saia ligando para a casa alheia incomodando as pessoas ou perguntando se elas querem ouvir a palavra de Seu Tranca Ruas ou de Dona Pombagira", desabafa.

Aumento de casos no Brasil e o caminho de combate ao preconceito

O aumento do número de casos de discriminação desse porte não é uma realidade que assombra apenas o Ceará. De acordo com o II Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe, divulgado no sábado, 21 de janeiro, houve uma crescente de casos de intolerância religiosa no Brasil.

Segundo dados do portal Disque 100, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, foram registrados 477 casos de intolerância religiosa em 2019, 353 casos em 2020 e 966 casos em 2021.

“Também cabe destacar o grande quantitativo de denúncias de intolerância religiosa classificadas como não definidas, sendo registrados 103 casos no ano de 2020 e 234 no ano de 2021. Essa categoria de dados não esclarece a qual crença religiosa pertence a vítima, limitando a interpretação dos dados e apontando para a necessidade de aperfeiçoamento do canal de denúncias Disque 100”, aponta o estudo.

Conforme história relatada no Museu Afro Brasil, as religiões de matriz africana chegaram ao País por meio dos diversos povos africanos que, enquanto eram escravizados, tiveram contato entre si e trocaram e fundiram elementos de sua cultura, fazendo surgir as religiões afro-brasileiras. À época, essas formas de religiosidade foram vistas pelos colonizadores europeus e cristãos como "ritos demoníacos de feitiçaria", uma visão preconceituosa que persistiu ao longo dos anos.

De acordo com a pesquisadora e assistente social Ingrid Lorena, há "três fatores articulados que levam ao aumento do preconceito" religioso no Brasil: a falta de compreensão sobre o Estado laico, o racismo estrutural e o avanço do discurso de ódio.

"Nos últimos anos vimos um avanço dos discursos de ódio que teve como ponto central a desinformação, o preconceito, racismo, misoginia e o machismo. Discursos que estavam voltados e atrelados a aspectos religiosos", destaca a profissional, que é umbandista.

"Há pouco tempo no nosso país tínhamos nas escolas disciplinas sobre apenas uma religião socialmente aceita, que era a Católica. Era passada uma visão de mundo sob uma perspectiva religiosa e isso influencia diretamente na nossa formação social, política e cultural (...) Quando temos instituições que valorizam somente uma religião ou história corremos o risco de não conhecer e desvalorizar outras histórias, culturas e narrativas", pontua.

A importância da formação social também é apontada pela defensora Mariana Lobo: "O Brasil é um país de muitos cultos, de uma riqueza cultural e de uma tradição enorme. É importante cada vez mais a gente trabalhar na perspectiva da educação de direitos, inclusive de crianças e jovens, para compreender o que veio antes, para compreender as tradições e assegurar o direito e a liberdade de cada pessoa".

Criação do Dia das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas

Diante do quadro nacional, o presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou, em ato inaugural de seu mandato, lei que institui o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé. A data, que deve ser comemorada anualmente no dia 21 de março, pode ser caminho para que praticantes da religião encontrem mais respeito às suas crenças.

Conforme Lobo, a data é importante, dentre outros motivos, para fortalecer o debate sobre a garantia dos direitos "de qualquer pessoa ao seu culto e à sua crença". "A implementação dessas datas, elas trazem a perspectiva de afirmação dos direitos da livre liberdade de culto, de crença, de religião. (A lei) reforça a necessidade de respeito aqueles grupos que tem a maior vulnerabilidade", pontua.

A criação da data é comemorada, principalmente, pelo grupo alvo da intolerância. Pai Shell, por exemplo, afirma que "o reconhecimento do estado a religião de matrizes irá contribuir para que a religião alcance respeito", frisando que a lei sancionada provocou euforia e gratidão aos candomblecistas.

"É o reconhecimento de nossos ancestrais africanos que tanto contribuíram, com muito trabalho na construção desse país em épocas coloniais, com trabalho escravo, sofrimento, torturas, em um passado sombrio, de terror que assombra até os dias de hoje a história dos negros (...) Criar o dia do Candomblé é reconhecer a existência desse povo e sua religiosidade e tornar de uma forma grandiosa a religião de nossos antepassados, nosso culto, nossos Deuses divinizados na natureza, nossos orixás", destaca.

Para o babalorixá Cleudo ti Osun, a data é uma "reparação aos povos originários que tiveram suas terras invadidas e os povos africanos que, como escravizados, doaram suas forças de trabalho e vida para construção do País". Contudo, ele espera que junto ao dia também sejam trazidas ações de formação e de informação, para ter a liberdade de viver a sua fé e de seguir em paz em seu terreiro, espaço entranhado nele feito "um chão que fortalece suas lutas por um mundo melhor".

Como denunciar casos de intolerância

De acordo com a SSPDS, toda pessoa que sentir a sua crença ser "discriminada publicamente, individualmente, nas redes sociais ou que seja impedido de praticar sua fé", deve realizar o Boletim de Ocorrência (BO) em qualquer unidade da Polícia Civil do Estado do Ceará (PC-CE).

"As denúncias podem ser feitas também para o número 181, o Disque-Denúncia da SSPDS, ou para o (85) 3101-0181, que é o número de WhatsApp, por onde podem ser feitas denúncias via mensagem, áudio, vídeo e fotografia. As informações podem ser repassadas ainda para o Disque 100, serviço de proteção dos direitos humanos do Governo Federal. O sigilo é garantido", destaca órgão.

Além disso, a vítima pode procurar também o Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (Ndha), da DPCE. Sede fica localizada no endereço: Av. Senador Virgílio Távora, 2184, Dionísio Torres.

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