O Nordeste é a região que mais utilizou a palavra "desconforto" para classificar a vida financeira. 13,2% dos entrevistados utilizaram o termo, superando o Sudeste, com 11,4%. Norte (9,2%), Sul (8,9%) e Centro-Oeste (8,1%) completam a lista.
Os dados são de uma pesquisa realizada pelo Will Bank que trata sobre "dismorfia financeira", um estudo que aborda sobre economia comportamental, ajudando a entender como esse público lida com as finanças.
A pesquisa contou com mais de 100 horas de entrevista e ouviu mais de duas mil pessoas de 18 a 40 anos de todas as classes sociais, etnias e regiões do Brasil, e mostrou que a cada 10 pessoas entrevistadas, sete utilizam palavras negativas para descrever a vida financeira.
De acordo com Felipe Félix, CEO do Will Bank, a dismorfia financeira é baseada na falta de pertencimento a um padrão criado por aqueles que já têm dinheiro. Ainda assim, ela não afeta apenas os mais pobres e marginalizados.
"Mesmo quando se alcança um determinado patamar, a falta de algo sempre prevalece, o padrão ideal nunca é ou será alcançado. Queremos gerar discussão sobre essas questões propondo a quebra de certos paradigmas, ainda mais porque acreditamos no crédito como um direito humano, que pode apoiar na jornada de evolução e empoderamento financeiro de muitas pessoas brasileiras."Felipe Félix, CEO do Will Bank
De acordo com a economista Mila Gaudêncio, a desigualdade nasceu com o Brasil e até hoje está presente em diversos aspectos da sociedade. Segundo ela, muitas pessoas que escutam educadores financeiros veem que a realidade apresentada não contempla eles, e isso acaba afastando as classes menos favorecidas de uma orientação em relação às finanças.
"Hoje a gente ainda vê que isso é refletido em muitas pessoas que contam as narrativas. Quando a gente vê algumas regrinhas de educação financeira dizendo para investir 70% do salário e viver com 30%, você está falando 70% de quanto para você ditar uma regra dessa? E como a pessoa preta pode pensar no longo prazo se ela sai com guarda-chuva e pode morrer na rua?", provocou.
As palavras da economista também se refletem na pesquisa, que mostra realidades contrastantes em relação à forma com que o dinheiro é visto de acordo com classes sociais e etnia.
Os homens brancos das classes A e B são os que mais utilizam palavras positivas para descrever a situação financeira (58,1%), quase o dobro da amostragem geral, que foi de 28,7%. Enquanto 61,4% das mulheres pretas e pardas das classes D e E utilizaram palavras negativas.
Além disso, um terço dos pretos e pardos não conseguem fechar as contas do mês ou tem dificuldade de deixar as contas em dia. Já para as pessoas brancas, o índice de pessoas que disseram estar com contas atrasadas chegou a 24%.
Segundo o estudo, 53% dos entrevistados acredita que, mesmo ganhando mais, outras pessoas sempre estarão na sua frente, enquanto 52% afirmaram que "ser rico" significa pertencer a outros grupos distantes da sua realidade. Já 74,3% das mulheres pretas e pardas afirmam sentir que outros ganham mais facilmente coisas que, para elas, exigem muito esforço.
"Muitas dessas pessoas acreditam que sempre haverá uma condição melhor a ser atingida, não importa quanto dinheiro elas tenham na conta. Por outro lado, a alegria de subir na vida e ganhar mais dinheiro é compartilhada por 88% dos entrevistados, que afirmam sentir mais satisfação ao conquistar algo que outras pessoas duvidaram", disse Félix.
A educação financeira é apontada por diversos economistas como um caminho para ajudar as pessoas a passar de um cenário de endividamento para projeção do próprio futuro.
Conforme dados de maio da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), 78,3% das pessoas estão endividadas e 27,7% têm alguma inadimplência.
Segundo a doutora em economia e professora dos cursos de Ciências Econômicas e Finanças da UFC Sobral, Kilvia Mesquita, o brasileiro, em média, não tem conhecimento de educação financeira no planejamento familiar, e isso se agrava ainda mais nas famílias de baixa renda.
Ela ressalta que dar crédito a quem não sabe lidar com ele é uma política muito cruel, e que muitas vezes, por causa da necessidade ou do desejo por consumo, você pode cair nessa armadilha do parcelamento de crédito e endividamento.
"As pessoas não sabem como lidar com a própria renda. Se você imaginar, nós não temos essa ideia de planejamento, do que fazer daqui a um ano ou onde querer chegar daqui a cinco anos ou 10 anos. A gente vive uma vida muito imediatista de curtíssimo prazo", disse.
Kilvia destacou também que a contemporaneidade criou muitos sonhos nas pessoas, seja por um desejo ou porque tem um influenciador ou artista que está apresentando coisas, e isso está criando necessidades artificiais nas pessoas que pode fazer elas romperem esse planejamento financeiro.
Ela ressalta que no Brasil falar sobre o dinheiro é um grande tabu, mas que isso precisa ser falado desde as escolas e ser discutido transversalmente.
"As redes sociais te mostram uma realidade que você passa a desejar, e aí você quer viver aquilo hoje, porque o hoje dá mais prazer. Sempre que você guarda para consumir no futuro, você está gerando uma frustração porque você quer ser feliz hoje, então planejar também é aprender a lidar com essas frustrações", acrescentou.
A economista acredita que a educação financeira deve ser incorporada pelo Ministério da Educação para chegar às classes menos favorecidas, além de ser internalizada nas secretarias estaduais e municipais de desenvolvimento.
Ela pondera que se houver um trabalho conjunto de várias instituições e de vários setores da sociedade civil as pessoas, de forma bem didática, vão entender que a educação financeira é importante para sua vida: "Isso pode acontecer de uma maneira mais natural, mas até que aconteça essa conscientização coletiva é preciso que a sementinha seja plantada", concluiu.
O estudo da dismorfia financeira identificou ainda que apenas 51,2% dos entrevistados possuem cartão de crédito, e que 16,6% utilizam a opção de pagamento parcelado.
Essa distância das instituições financeiras é ainda maior entre as classes D e E. Cerca de 58% dos entrevistados não se sentem acolhidos pelos bancos. No caso da classe A e B, esse número é de apenas 27%.
A diarista Keila Cavalcante, 46, é uma dessas pessoas que escolheu se desfazer do cartão de crédito "há muitos anos" por problemas que enfrentava ao emprestar o nome para outras pessoas realizarem compras, que acabavam não pagando ou atrasando pagamento.
Hoje, ela sobrevive do Bolsa Família e de alguns trabalhos que faz de forma avulsa, fazendo faxinas e cuidando de uma idosa, e quando precisa comprar algo que não consegue à vista, pede o cartão emprestado a uma amiga para parcelar.
Keila falou ainda que quando recebe o auxílio já saca tudo e utiliza o dinheiro para pagar contas, como aluguel, água, luz e alimentação. Ela completou ainda que não guarda dinheiro no banco porque não sobra.
"Hoje, graças a Deus, é com o auxílio que eu escapo. Eu saco o dinheiro e já uso pra pagar as contas e comprar comida. Ninguém sabe mais nem o que é lazer", disse.
Entenda
O que é dismorfia financeira?
Dismorfia financeira se refere à condição capaz de afetar a forma como diferentes pessoas percebem a própria realidade financeira, ou seja, de quanto dinheiro tem. Ela se baseia na falta de pertencimento a um padrão criado por quem já tem muito dinheiro.
Como as pessoas se sentem em relação à vida financeira delas
88% - Sente satisfação ao conquistar algo que outras pessoas duvidaram
79% - Tem desejo de consumir hoje muitas coisas que não pôde consumir no passado (infância, adolescência)
71% - Outros ganham facilmente aquilo que ela precisa conquistar com muito esforço
71% - Há lugares em que ela se sente desconfortável de estar ou de pensar em ir
69% - As pessoas que mais bombam nas redes sociais mostram uma realidade muito distante da que ela vive
64% - Quando usa o app do banco principal, sente que ele foi pensado/feito para ela
64% - Demora mais tempo para comprar o que ela deseja do que outras pessoas que ela conhece
60% - Às vezes tem vontade de usar o crédito oferecido, mas não uso porque tem medo de não conseguir pagar
55% - Ter tudo o que ela deseja depende somente de dinheiro
53% - Vê as ofertas de crédito que recebe como uma forma de crescer
53% - Mesmo se ela ganhar mais, outras pessoas estarão na frente dela
52% - Ser rico significa pertencer a outros grupos distantes da realidade em que ela pertence
49% - Sente que a condição financeira piorou nos últimos 12 meses
49% - Acha que a linguagem usada pela maioria dos bancos é difícil de entender de propósito, para confundir as pessoas
46% - Com frequência sente que um futuro próspero é cada vez mais distante ou até impossível
45% - As instituições financeiras parecem não confiar na capacidade dela de ser bom pagador
45% - Se sente amparada e atendida pelas opções de crédito que os bancos oferecem
45% - Vê pessoas parecidas com ela nas propagandas das redes sociais de bancos digitais
44% - Se sente amparada e atendida pelas opções de investimento que os bancos oferecem
41% - Vê pessoas parecidas com ela nas propagandas das redes sociais de grandes bancos tradicionais (com agências)
40% - Tem tantas contas em atraso que é quase impossível de gerenciar
40% - Não vê pessoas como ela prosperando financeiramente
33% - Consegue comprar quase tudo que deseja sem se preocupar com dívidas
Fonte: Will Bank
Sono
Estudo da Serasa mostrou que as dívidas tiram o sono de 83% dos brasileiros inadimplentes
Dei Valor
Na playlist do Dei Valor, canal de educação financeira do OPOVO no Youtube e Tiktok, você encontra várias dicas para melhorar a sua relação com o dinheiro