Responsável por despertar uma verdadeira jornada sensorial que alivia angústias do corpo e da mente, uma planta de folhas com lâminas serrilhadas tem sido protagonista na vida de inúmeros cearenses nos últimos anos. Com fortes poderes medicinais, ela vem se mostrando eficaz para reduzir dores crônicas, além de fascinar profissionais e estudiosos da medicina pela sua versatilidade em favor da saúde individual e coletiva. Estamos falando da maconha (ou Cannabis sativa), cuja regulamentação para fins medicinais está sendo discutida no Ceará em 2023. Aguarda-se um cenário de transformações no tratamento com a maconha.
Ainda envolta em um longo debate que acende discursos de natureza moral e política em detrimento daquilo que diz a ciência, a maconha é apontada atualmente como uma matéria-prima que pode revolucionar o tratamento de incontáveis doenças. Autismo, epilepsia, fibromialgia, doença de Parkinson, ansiedade e Alzheimer são algumas das condições clínicas e enfermidades que podem ter seus sintomas aliviados a partir do uso medicinal da planta.
Buscando seguir os passos de São Paulo, Paraíba, Pernambuco e outros estados, o Ceará começou a colocar este assunto em pauta em sua Assembleia Legislativa (Alece) com a cooperação de médicos, pacientes e advogados que defendem a regulação e o acesso gratuito aos remédios produzidos com base na maconha. Fora isso, o apoio às pesquisas científicas e às associações que lutam por esta causa também entraram no centro deste debate, que pode decidir pelo alívio físico, mental e financeiro de inúmeras pessoas por todo o Estado.
Antes de adentrar no assunto sobre a regulamentação em si, é importante olhar para o passado e verificar que a maconha está presente em muitos momentos da história da medicina mundial. Relatos de, pelo menos, mais de 4 mil anos dão conta de que a erva já era tratada como elemento medicinal ainda no antigo Império da China, em 2737 a.C, quando o imperador ShenNeng indicava o chá da maconha para o tratamento de inúmeras doenças como gota, reumatismo e malária. Na época, inclusive, acreditava-se que ela era capaz até mesmo de ajudar aqueles que tinham uma “memória fraca”.
Da Grécia Antiga ao Brasil Colônia, o que não faltam são registros do uso médico desta planta, que também chegou a servir de base para fabricação de produtos de diversos outros segmentos, como móveis e tecidos. Quando no início do Século XX, porém, com os Estados Unidos passando por uma grave crise econômica, uma discussão moral se acendeu e a maconha, muito associada a grupos marginalizados, como imigrantes e negros, começou a receber uma onda de propagandas negativas vindas de políticos, imprensa e igreja. Em 1937, ela entrou na ilegalidade nos EUA. No ano seguinte, foi a vez de Getúlio Vargas proibi-la no Brasil.
Com tamanha atmosfera dificultando ou mesmo proibindo seu uso medicinal, a cannabis ficou longe das pesquisas acadêmicas e das prescrições médicas por longo anos. Igualmente, toda uma experiência anterior sobre a planta ficou praticamente esquecida ou apenas na memória de poucas pessoas. Agora, por outro lado, inúmeros profissionais e militantes têm buscado popularizar as informações sobre o tamanho poder que esta planta exótica possui.
Uma das pessoas que tomou para si este trabalho de divulgação das possibilidades terapêuticas da maconha foi o médico Eugênio Franco. Por meio de seu perfil no Instagram Doses de Emergência (@dosesdeemergencia), ele compartilha conhecimentos clínicos a respeito da cannabis para seus quase 30 mil seguidores. Pós-graduado em Cannabis Medicinal pela Universidade São Judas Tadeu, de São Paulo, ele explica que existe uma relação entre os seres humanos e a planta da maconha mais próxima do que muitas pessoas imaginam.
Segundo ele, todos os mamíferos possuem um sistema chamado endocanabinoide, que ajuda a regular funções do organismo como o sono, apetite, resposta a dor, humor, entre outros. A depender do nível dessas substâncias, esses processos vão acontecer de maneira mais “bagunçada” ou organizada em cada indivíduo. “Quando a gente encontra alguém que tem algum distúrbio, seja do sono, dor crônica, ansiedade, demência, epilepsia refratária, esclerose múltipla e assim por diante, a cannabis pode ajudar a modular os sistemas que estão defeituosos”, afirma.
Eugênio Franco comenta que pacientes com epilepsia refratária, por exemplo, precisam tomar diversos remédios para reduzir suas crises de convulsões. Ao mesmo tempo, porém, após tomar suas medicações, essas mesmas pessoas também ficam mais para baixo, letárgicas, sonolentas. Agora, quando existe uma administração da cannabis medicinal nesses casos, é possível diminuir as doses dos remédios alopáticos e não só baixar as convulsões, mas ainda “organizar aquilo que está desorganizado”.
“Então o paciente consegue ficar acordado, interagir, ter vida social, mas com menos doses de medicação e com menos episódios convulsivos”, menciona, apontando benefícios igualmente para quem sofre com dores crônicas e precisa usar opióides "Compostos químicos que produzem efeitos farmacológicos semelhantes aos do ópio. Nele também existem substâncias que produzem efeitos similares aos da morfina" . Ele cita que pacientes que usam tramadol, morfina ou codeína cada vez mais ficam resistentes e precisam de doses maiores em seus tratamentos.
“Quando a gente entra com a cannabis, ela vai agir no mesmo receptor do opióide, além dos receptores próprios do sistema endocanabinóide, fazendo com que esses receptores fiquem mais sensíveis. Então, se naquele momento, o paciente precisava por exemplo de 10 miligramas de morfina para controlar uma dor, eu posso conseguir diminuir a quantidade de medicação porque o receptor vai ficar mais sensível do que estava antes. Então a cannabis facilita o trabalho de outros receptores e de outros sistemas que estão em todo o corpo, em alguns lugares mais e outros menos”, completa.
Acompanhado por Eugênio, o casal Léo Colares e Bárbara Castro resolveu buscar um tratamento com a cannabis após estudar e avaliar os possíveis benefícios que a planta da maconha poderia lhes proporcionar. Adestrador de cães, Léo tem 27 anos e é diagnosticado com ansiedade e Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Ela, por sua vez, é empresária, tem 33 anos e estava em início de uma depressão até decidir pela introdução do canabidiol em sua vida.
“Fomos a um psiquiatra, começamos a tomar medicação, mas ainda assim sentíamos que faltava alguma coisa. Esse foi o start para a gente. Antes de ir atrás de uma dose maior de outro medicamento, que poderia ter um efeito colateral, decidimos ir atrás do CBD”, diz Léo, que menciona que em pouco mais de um mês de uso já começou a desenvolver atividades que há pouco tempo eram bastante limitadas para ele, como ler e concentrar-se em algo. “Eu estava muito ansioso e também quase depressivo”, lembra.
Com uma irritabilidade que começava já quando saia de casa para o trabalho, em um caminho acompanhado por reclamações de todas as ordens, Bárbara comenta que acreditava que este era o seu “normal”. “Mas eu estava na bad”, diz, afirmando que quando começou o uso do CBD aliado a um antidepressivo, uma mudança significativa aconteceu. “Eu já chegava no trabalho numa situação difícil, tinha crises de choro. Hoje em dia eu consigo lidar muito bem com as situações. Não significa que tudo é um paraíso, mas agora eu tenho cabeça e serenidade para poder lidar de uma forma melhor”, pontua.
Atualmente, Léo e Bárbara são associados da Abrace Esperança, organização paraibana sem fins lucrativos que dá apoio às famílias que precisam de tratamento com a cannabis medicinal. Por meio dela, o casal consegue suas medicações a preços muito reduzidos quando comparado com os remédios importados ou vendidos em farmácia. “Pagamos a metade do valor encontrado no mercado convencional”, evidencia Bárbara.
Sobre a importância das associações para o tratamento com a cannabis, tratamos mais abaixo.
Para a psiquiatra Lisiane Cysne, a proibição da cannabis no Brasil resultou em um atraso nas pesquisas sobre suas substâncias, causando efeitos que duram até hoje. Doutora pela Universitat Autónoma de Barcelona com ênfase em Dependência Química, ela explica que para simplesmente realizar pesquisas é necessário importar matérias-primas de fora do País. “Então é caríssimo fazer esses estudos por aqui”, lamenta, apontando ainda que outra problemática é inserida nesta balança, que é a guerra às drogas.
“Ao discutir a cannabis medicinal não tem como não trazer em sua história a questão da guerra às drogas, que carrega várias problemáticas, inclusive vieses racistas e que refletem na própria economia, já que não se pode plantar ou abrir esse mercado de uma forma mais acessível para as pessoas que estão precisando dele”, expõe. Mas a discussão sobre como a maconha está inserida no meio do debate “Guerra às drogas x Uso medicinal” é tema de uma outra reportagem.
Os resultados clínicos a partir da administração da cannabis são encontrados em várias partes do mundo, principalmente em países como Estados Unidos, Canadá e Israel, onde existem inúmeras pesquisas sólidas que apontam para evidências dos benefícios da planta. Ao trazer essa discussão para o Brasil, percebemos que passos firmes e significativos têm sido dados nos últimos anos no que diz respeito à regulamentação das medicações com base na maconha.
Em 2014, por exemplo, uma família de Brasília conseguiu autorização da Justiça para importar dos EUA um remédio feito de canabidiol, uma substância retirada da maconha. À época proibido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), este era o único que conseguia reduzir as crises de Anny Fischer, de 5 anos, portadora da síndrome CDKL5, a qual determina um quadro de epilepsia refratária e que lhe fazia convulsionar por até 80 vezes em um único dia. O caso ganhou manchetes de jornais e deu luz à essa discussão no Brasil.
Quase dez anos depois, a legislação passou por diversas alterações e a lista de produtos derivados da cannabis autorizados pela Anvisa chegou a 26, em 2023. Agora, pacientes conseguem adquirir suas medicações de maneira legal e de duas formas: por meio de importação, com licença prévia da Anvisa; ou comprando diretamente em farmácias. Em ambas as situações, é necessário atestar a real necessidade do uso apresentando uma prescrição médica.
Mesmo com tais avanços, os custos tanto para importar como adquirir esses remédios em drogarias ainda são muito elevados para grande parte das famílias brasileiras. Para se ter ideia, os preços desses produtos podem variar facilmente de R$ 140 a mais de R$ 6 mil, conforme relatos ouvidos pelo O POVO+.
Diante deste cenário, portanto, aumentam as cobranças para que esses produtos entrem na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), que é a lista de medicamentos oferecidos em todos os níveis de atenção e nas linhas de cuidado do Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar de não haver uma ferramenta nacional que abrace essa questão, é possível que os estados criem políticas públicas locais e com recursos próprios para isso. A exemplo de São Paulo, que aprovou em janeiro de 2023 uma lei que institui o fornecimento gratuito de medicamentos à base de canabidiol.
Essa decisão fez brilhar os olhos de muitos cearenses defensores desta política. Prova disso é que membros de associações e grupos que lutam pela defesa do uso da maconha, bem como médicos, pesquisadores, advogados e políticos lotaram uma audiência pública realizada na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece), em 19 de junho de 2023. Comandada pelo deputado e presidente da Comissão de Direitos Humanos, Renato Roseno (Psol), a sessão discutiu a regulamentação do uso e da pesquisa sobre a cannabis medicinal no Estado.
Após a reunião, que durou mais de três horas, ficou definido que seria apresentado um projeto de lei para tratar deste assunto. “O projeto busca instituir o uso medicinal da cannabis na renda pública do Ceará e isso é importante porque já existe o uso medicinal regulamentado pela Anvisa, só que ele é de acesso muito difícil”, comentou Roseno à reportagem, mencionando ainda que a proposta já teria pelo menos sete votos de deputados(as) garantidos.
Ainda em junho de 2022, o Conselho Estadual da Saúde (Cesau) aprovou uma recomendação para que o Ceará adotasse o uso da cannabis medicinal pela rede pública de saúde. Atualmente, porém, cearenses que precisam fazer uso de medicamentos à base da maconha, mas não possuem condições financeiras para importar ou comprar em farmácia, têm buscado o apoio jurídico para conseguir acesso por meio do Governo do Estado.
Defensora pública e supervisora do Núcleo de Defesa da Saúde (Nudesa), da Defensoria Pública do Ceará, Yamara Lavor comenta que é realizado um “esforço administrativo” com a Secretaria estadual da Saúde (Sesa) para garantir o fornecimento aos pacientes que apresentam vulnerabilidade social. “Ocorre que no Ceará e em nível nacional as medicações com base na cannabis não estão incorporadas ao SUS, mesmo com a aprovação da Anvisa. Então nós judicializamos essas demandas e temos conseguido decisões importantes para que o medicamento seja adquirido e fornecido a esses pacientes”, assegura Yamara, informando que em 2022 nove pacientes obtiveram sucesso na Justiça.
Conforme a Sesa, hoje são atendidos 51 pacientes com o recebimento de canabidiol via Governo do Estado. De perfil majoritariamente de crianças e adolescentes, essas pessoas são diagnosticadas principalmente com fibromialgia, epilepsia, microcefalia ou malformação cerebral. “A Sesa ressalta que o medicamento ainda não é padronizado pelo SUS, sendo a judicialização o atual meio para acesso”, comunica a órgão por meio de nota. A pasta informa ainda que essas demandas custam aos cofres públicos estaduais R$ 726.668 mil atualmente em 2023, uma média de R$ 14,2 mil por pessoa atendida.
“O Estado está pagando caríssimo para esses produtos chegarem até os pacientes”, afirma o especialista em direito e processo penal, Ítalo Coelho. Com expertise na Lei de Drogas e sócio da Coelho & Cardial - Advocacia Antiproibicionista, ele é o advogado responsável pelo caso em que foi expedido um habeas corpus que autorizou o cearense Rodrigo Bardon a realizar o autocultivo da cannabis em casa. Em 2017, Bardon foi o primeiro adulto do Brasil a conseguir essa permissão para produzir o óleo usado para aliviar suas dores neuropáticas e espasmos frequentes.
Hoje uma das vozes atuantes que defendem sobretudo o autocultivo da planta como uma das formas que podem desonerar o Estado ao passo que mantém o direito à saúde garantido, Ítalo Coelho diz que um dos árduos trabalhos é convencer que esta prática não é crime. “Hoje se um vizinho sentir o cheiro, desconfiar e dizer ‘tem um cultivo ali’, a polícia mete o pé na porta, entra e o paciente perde todo o cultivo e é violentado. Por isso a gente pede habeas corpus preventivo para indicar às autoridades policiais da região que ali elas não podem agir sem autorização judicial”, descreve.
"A defesa da cannabis medicinal é a defesa da vida e da saúde dos que sofrem" – Ítalo Coelho, advogado especialista em direito e processo penal.
Um caminho que surgiu para manter o tratamento à base da cannabis mais acessível aos brasileiros foi o do autocultivo. Isto é, os próprios pacientes passariam a plantar, cuidar e extrair o óleo da maconha em suas residências. Com isso no horizonte, diversas pessoas começaram a solicitar e a conseguir na Justiça, a partir de 2016, um habeas corpus que autorizava a produção desta medicação em casa. Lembrando que para isso, do mesmo modo como já acontecia para importar ou comprar na farmácia, a indicação médica e a autorização judicial continuam indispensáveis.
Quem obteve um desses HC foi a fisioterapeuta cearense Ana Carla Bastos, de 39 anos. Convivendo com ansiedade e depressão desde a adolescência, ela foi apresentada a um tratamento à base de cannabis após esgotar praticamente todos os remédios alopáticos convencionais e disponíveis no mercado. A gravidade de sua condição era tão intensa que remédios como Alprazolam, Rivotril e Fluoxetina já não lhe faziam mais efeito.
Mas a pretensão de cuidar de suas próprias mudas só aconteceu após uma barreira econômica bem sólida se erguer diante de Ana Carla. “Quando eu fui importar uma medicação para uso inalado, vi que custava mais de R$ 6 mil. Eu desisti na mesma hora”, recorda, estimando que aquele remédio duraria apenas para um único mês de uso. Sem conseguir custear a compra do óleo, ela precisou enfrentar ainda um processo de falência de uma clínica da qual era sócia no começo de 2020.
“Então imagina aí, você sem grana, tendo que fechar o seu negócio e ainda se vendo em uma pandemia que não tinha perspectiva para acabar. Foi aí que comecei a buscar meus direitos”, comenta, dizendo que neste momento optou pela alternativa do autocultivo da cannabis. “Porque não me interessava importar o remédio se eu tinha condições de produzir.”
Com isso em mente, Ana Carla se aprofundou em estudos sobre a planta, fazendo cursos e até uma pós-graduação, para adquirir os conhecimentos necessários para desenvolver aquilo que lhe devolveria qualidade de vida. “Eu entendi que esta é uma planta revolucionária quando de fato passei a estudá-la cientificamente. E quando você percebe que ela pode ser benéfica para mais de cem condições de saúde descritas em literaturas no Brasil e no mundo, você tira a necessidade de uma hipermedicalização na vida das pessoas”, comenta.
Ela então mudou-se para um local que lhe dava espaço suficiente para cultivar suas plantas sem as limitações físicas dos pequenos vasinhos de apartamento. No fundo do quintal de sua casa, ela conta hoje com inúmeras plantas dispostas em baldes ou mesmo fixadas no chão, expostas ao sol e com uma rega regular – fatores que ajudam a cannabis a desenvolver-se de maneira tal a suprir não somente a necessidade de Ana Carla, mas também de outras dezenas de cearenses.
Isso porque ela fundou no fim de 2021 a Associação Medicinal do Ceará (Amece), a qual facilita o acesso à terapia canabinóide a 126 pacientes espalhados pelo Estado. E quando a palavra “facilitar” é mencionada, a Amece busca levá-la ao pé da letra principalmente no que se refere às questões financeiras, uma vez que diversos estudos foram realizados com intuito de garantir o remédio na mão dos pacientes, bem como a viabilidade da continuação deste trabalho.
“Nós pensamos em quanto uma família que recebe salário mínimo conseguiria dispor por mês para fazer o tratamento de um paciente sem impactar significativamente o seu orçamento”, diz, afirmando que valores a partir de R$ 100 conseguem ser repassados pela Amece. “A gente faz um caminho inverso ao da indústria, porque a associação não é um comércio. Ela é um contraponto, uma maneira de facilitar acesso a quem precisa”, pontua, informando ainda que os associados atuam de maneira voluntária na manutenção do espaço, com limpeza do terreno, regando ou manuseando as plantas quando preciso.
Atualmente, a Amece faz parte da Frente Cearense pelo Uso Medicinal da Maconha (FCMM), ao lado da Acura Caucaia, AME Cariri e Santa Flor (Aracati), as quais acolhem 285 pacientes, com o objetivo de possibilitar o acesso aos medicamentos à base da maconha. Buscando democratizar e desburocratizar esse segmento, a FCMM presta informações sobre cursos de cultivo e extração, auxílio no autocultivo, além de indicar profissionais médicos que consideram o tratamento com a cannabis um método viável.
Por todo o território cearense existe a demanda por medicamentos à base da cannabis para os mais diferentes tratamentos. Por isso, na audiência pública realizada na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece) para debater a regulamentação da maconha medicinal, diversas associações estiveram presentes para dar coro ao discurso de que se faz necessário um olhar mais atento sobre essa temática.
No fundo da sala fria da Alece naquele dia 19 de junho de 2023, porém, uma comitiva formada por mães de crianças atípicas chamou a atenção. Longe mais de 200 quilômetros de sua cidade, elas estavam representando a Associação de Familiares e Amigos dos Autistas de Quixeramobim (Afaaq). O grupo nasceu em 2021 com o objetivo de dar suporte de informação sobre terapias e benefícios que as crianças autistas poderiam ter.
Uma de suas fundadoras é a servidora pública Tati Sousa, que ingressou nesta luta por causa de seu filho Pedro, de 5 anos. Diagnosticado com autismo por um médico de Fortaleza, por causa da falta de profissionais que pudessem identificar a sua condição na cidade do Sertão Central do Ceará, o pequeno apresenta dificuldades para se comunicar.
“Ele também não prestava muita atenção naquilo que acontecia ao seu redor. Você falava com ele cinco, dez, quinze vezes e era mesmo que estar falando com a parede”, relembra Tati, que afirma que isso mudou quando começou a administrar para o filho o óleo à base de cannabis.
Essa medicação, inclusive, é recebida por Pedro e outras nove crianças de Quixeramobim gratuitamente devido à uma parceria com a Associação Flôr da Luz, de Capistrano, que realiza o autocultivo legal da maconha. “Graças ao óleo, a gente já vê muitos resultados nas crianças. Hoje o meu filho se comunica melhor, já balbucia algumas palavras, responde quando falamos alguma coisa e melhorou até no sono, pois tinha vezes que ficava de semanas sem dormir direito. É uma outra criança”, detalha.
Ainda de acordo com Tati Sousa, atualmente a Afaaq conta com 110 associados, mas a demanda da cidade é de cerca de outras 400 crianças diagnosticadas com autismo. “Mas a gente sabe que o óleo não vai fazer o milagre todo sozinho, tem que ter todo um conjunto de outros serviços. No fundo, essa é uma luta que envolve muitas coisas. Além do combate ao preconceito que precisamos ter, essa é uma questão de justiça pela saúde das nossas crianças”, completa.
>> Ponto de vista
Renata Viana
Imagine que a fala do seu filho depende de algumas gotas naturais. Seu desenvolvimento intelectual, seu sono e até mesmo seu apetite dependem disso. Imagine poder melhorar em até 80% a capacidade de comunicação e interação de uma criança. Imagine estas mesmas gotas a fazerem não se automutilar. Parece algo milagroso, distante e impossível. Mas este simples medicamento é sinônimo de independência, convívio social e/ou diminuição da dor de diversas pessoas neurotípicas ou com doenças degenerativas.
O canabidiol, ou CBD, é um óleo extraído dos canabinoides, uma das substâncias naturais que vem da planta da maconha. Diferente do que muitos pensam, esse óleo não possui os efeitos psicoativos comuns às pessoas que fumam a erva. O CBD já vem sendo estudado ao longo do tempo e mostra resultados efetivos em tratamento de doenças crônicas. Mais recente, tornou-se uma ferramenta potente, junto ao pacote de terapias, na condução do tratamento de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Como mãe de uma linda menina autista, me atrelei a essa esperança. Mas me deparei com a enorme carga de burocracias e processos envolvidos para se obter o óleo. No Brasil, o insumo tem que ser importado ou adquirido através de cooperativas – que já têm alta demanda. Em 2022, a Anvisa publicou uma autorização sanitária para novos produtos medicinais à base de cannabis, por meio da Resolução RE 1.298/2022. Apesar de animadora, essa resolução atinge apenas uma pequena fatia da sociedade. Pois, mesmo havendo mudanças recentes de legislação, o uso medicinal da cannabis é caro. Assim, milhares de pessoas sequer terão condições de experimentar essa via de tratamento.
Hoje, o custo mensal do óleo pode passar de R$ 2.000. Isso sem contar os valores de equipes multidisciplinares, como fonoaudiólogos, psicoterapeutas e terapeutas ocupacionais, essenciais na base de cuidados com pessoas autistas.
Neste julho de 2023, fiz a importação de CBD para minha filha e imaginei muito. Como no início do artigo, imaginei um futuro lindo. Mas também pensei nas inúmeras famílias que não poderão ter essa esperança. E ainda como crenças, religião e ignorância nos afastam dessa realidade. O clamor é urgente e são necessárias ações de políticas públicas e de acesso a esses óleos. Então, imagine comigo. Imagine seu filho poder falar, andar, estudar e amar por conta de gotas que poderiam estar no SUS, disponibilizadas gratuitamente para diversas pessoas. Imagine!
Renata Viana, jornalista e designer