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Uma praça entre duas Estações: a busca por harmonia diante das mudanças no Centro Histórico
Reportagem

Uma praça entre duas Estações: a busca por harmonia diante das mudanças no Centro Histórico

Na expectativa pela inauguração da Estação Fashion, comerciantes apontam queda de movimento durante o dia no entorno da Estação das Artes, enquanto admitem pouco conhecer sobre o complexo cultural, que lota as noites
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Complexo Estação das Artes trouxe novas opções de cultura para o Centro de Fortaleza (Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Complexo Estação das Artes trouxe novas opções de cultura para o Centro de Fortaleza

Os tapumes no número 519 da rua Castro e Silva cobrem um espaço vazio onde antes ficava o shopping Acaiaca, em frente à Praça da Estação. Lucilene Alves Linhares, 56, comerciante do local há décadas, lembra de quando foi cabeleireira em um salão que funcionava lá dentro. O shopping foi demolido e deverá dar lugar a um novo centro comercial voltado para o mercado da moda atacadista: o Estação Fashion.

O empreendimento terá 1.200 unidades de lojas e boxes, seis setores, um estacionamento com mais de 500 vagas para carros e uma rodoviária no subsolo para os ônibus de clientes que vêm de outras cidades e estados. O fluxo da região, que já concentra 50 mil pessoas diariamente, deve aumentar.

“Com o empreendimento pronto, a gente espera que esse número dobre, a princípio”, afirma Daniela Branquinho, gerente de marketing do empreendimento. O shopping tem previsão de inauguração no segundo semestre de 2024.

Localizado no Centro de Fortaleza, em frente a Praça da Estação, o Estação Fashion será erguido no espaço anteriormente ocupado pelo shopping Acaiaca(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Localizado no Centro de Fortaleza, em frente a Praça da Estação, o Estação Fashion será erguido no espaço anteriormente ocupado pelo shopping Acaiaca

A mudança é mais uma das várias que ocorreram nos últimos anos neste trecho do Centro Histórico de Fortaleza. Uma das mais impactantes e recentes foi a inauguração do Complexo Cultural Estação das Artes, equipamento do Governo do Estado que une a Pinacoteca do Ceará, o Mercado AlimentaCE, a Estação das Artes, o Centro de Design e o Museu Ferroviário. A entrega foi em 30 de março de 2022.

A cultura e o comércio dividem o espaço do Centro desde o início da história da Capital. No entanto, nem sempre as transformações urbanas são sentidas da mesma forma pelos dois setores. Com o encerramento das atividades da estação João Felipe, em 2014, e a retirada do terminal de ônibus da praça para a construção do Complexo, alguns comerciantes sentiram uma diminuição de fluxo nas lojas.

Lucilene, que atualmente é dona de uma loja de artigos para festas na rua Castro e Silva, conta que, quando a praça foi fechada para obras, todos foram impactados. “A gente tinha toda uma expectativa com a praça, achando que iam fazer outro terminal”, relata. Com a reforma, o local virou um grande espaço livre, com bancos de concreto e árvores.

Estação Fashion mira trazer até 50 mil pessoas a mais para o Centro por dia(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Estação Fashion mira trazer até 50 mil pessoas a mais para o Centro por dia

Francisco Mesquita, 55, não gostava do terminal de ônibus que tinha no local. “Era muito bagunçado. Mas o terminal de trem eu não concordei em tirar, atraía muita gente, muita gente vinha merendar”, diz. Francisco é dono de um restaurante na rua General Sampaio há 14 anos.

Para o dono de uma loja de artesanato de palha há 23 anos, Francisco Odeilde Mariano, 65, as mudanças melhoraram o local. “Em todos os aspectos, na limpeza, no turismo, aumentou um pouco o comércio, a segurança. Antes tinha mais gente, mas não era quem vinha fazer compras”, opina.

Apesar de trabalhar no entorno, Lucilene Alves Linhares, 56, admite nunca ter entrado na Estação das Artes(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Apesar de trabalhar no entorno, Lucilene Alves Linhares, 56, admite nunca ter entrado na Estação das Artes

Sandra Santos, 47, concorda que a praça teve melhoras, mas sente falta da movimentação promovida pelo terminal de ônibus. “Agora é vazio, a pessoa passa direto. Para quem vive o dia a dia, morreu”, afirma. A funcionária de uma loja de plantas artificiais para decoração conta que os clientes só são aqueles que já conhecem o local ou encontram a loja pelo Google. Sandra e Lucilene afirmam que nunca entraram no Complexo Cultural.

Divergências em relação aos impactos da reforma da praça no comércio à parte, todos veem a construção da Estação Fashion com esperança. “Espero que as pessoas que vão comprar lá, passem na Castro e Silva pra comprar também”, diz Lucilene. “Tenho as melhores expectativas, é mais uma forma de atrair pessoas”, afirma Francisco Mesquita. Sandra também espera que o novo empreendimento seja uma “benfeitoria” para o comércio do entorno.

Praça ganha vida à noite

Enquanto o horário comercial não atrai tanta gente para a Praça da Estação, a nova ocupação do espaço mudou as noites e os fins de semana do Centro. Com a programação cultural, o público que busca por lazer passou a frequentar a área. Exposições, festivais gastronômicos, festas e shows chamam pessoas que antes não passeavam por ali.

Movimentação na Estação das Artes aumenta a partir das noites de quinta-feira(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Movimentação na Estação das Artes aumenta a partir das noites de quinta-feira

“Sempre venho, desde dezembro, faço aula de skate aqui [na praça]. É perfeito para a prática de esportes. Eu ia para a Beira Mar, mas lá tem muita gente, aqui é mais amplo”, relata a produtora Polyana de Loreto, 37. Ela conta que se sente segura no local até mesmo a noite e acha positiva a revitalização da praça.

Katya de Lara Felício, 28, é técnica em restauro e trabalha no acervo da Pinacoteca. Para ela, é perceptível o aumento da ocupação na praça. “Tem gente que vem fazer capoeira, andar de skate, tirar fotos. De quinta a domingo é mais movimentado por causa do Complexo”, diz.

Praticamente toda semana, a jornalista Julyta Albuquerque, 40, leva o filho para a Estação das Artes. “Lembro da praça como era antes, não cheguei a usar o terminal de ônibus, mas entendo que a mudança que aconteceu ali naquele local foi incrível”, diz. Para ela, a reforma permitiu que as pessoas se apropriem de um local “considerado por muitos como marginalizado e perigoso”.

Julyta, no entanto, chama atenção para a necessidade de políticas públicas que atendam as pessoas socialmente vulneráveis que transitam pela praça. “Não é só instalar o equipamento, é preciso também cuidar das pessoas que estão ali ao redor, cuidar da economia daquele local, de quem vive ali e de como elas estão vivendo. São pessoas que são intimamente impactadas por aquela mudança”, afirma.

Para Anderson Marques, 38, trabalhador de serviços gerais que também faz bicos na praça ajudando a vender bebida nas noites de festa, “as coisas do lado de dentro [do Complexo] são mais para a classe mais alta”. Ele acredita que é preciso mais atividades do lado de fora. “É para ter oportunidade para as pessoas da rua, tem muita gente com talento escondido”, opina.

Histórico da Praça da Estação

1849 - Inauguração do cemitério São Casimiro, primeiro de Fortaleza. O cemitério foi construído no local que hoje é a Praça da Estação;

1873 - Primeira viagem da Estrada de Ferro de Baturité. Ferrovia foi construída ao lado do cemitério para auxiliar o escoamento dos produtos vindos do Interior do Ceará;

1880 - Estação João Felipe é inaugurada. Depois da desativação do cemitério, o espaço foi incorporado pela administração da ferrovia. No início, o local se chamava Estação Central.

1924 - Construção dos galpões da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA). O local era utilizado para armazenar as mercadorias que vinham do Interior para serem vendidas no litoral;

1983 - Tombamento da Estação João Felipe. A estação foi considerada patrimônio mais de 100 anos depois de sua inauguração;

2005 - Estado adquire prédios da Estação João Felipe. O Governo Lúcio Alcântara pagou cerca de R$ 18 milhões à Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA) para aquisição do complexo ferroviário.

2014 - Estação encerra atividades. Embarques e desembarques foram encerrados para as obras da Linha Leste do metrô de Fortaleza;

2022 - Complexo Cultural Estação das Artes é inaugurado em março. Com 67 mil m², as obras do projeto tiveram início em 2019 com previsão de entrega para 2021. A pandemia de Covid-19 atrasou a construção. A Pinacoteca do Ceará, que também faz parte do Complexo, foi entregue em dezembro do mesmo ano.

Os diálogos para atingir harmonia em um espaço híbrido

O Centro é um dos bairros com maior mistura de ambientes, usos e ocupações. Por isso, as movimentações promovidas nesse local são complexas e precisam do diálogo de todos aqueles que interferem na região, seja do setor público ou privado. O planejamento deve levar em conta a diversidade de pessoas que vivem e passam por lá, para as que buscam cultura, renda ou economia.

Estação Fashion pode ser oportunidade de incremento de público em atividades culturais na Estação das Artes(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Estação Fashion pode ser oportunidade de incremento de público em atividades culturais na Estação das Artes

João Wilson, diretor-executivo do Instituto Mirante, responsável pelo gerenciamento do Complexo Cultural Estação das Artes, acredita que em quase dois anos de funcionamento, o equipamento já deixou um impacto positivo visível no espaço. Além do sucesso de público, com mais de 100 mil visitantes nesse período, o coordenador menciona a importância da reforma da Estação João Felipe.

"Você tem um complexo daquele, que é um patrimônio histórico que foi revitalizado, e você devolver para a cidade um lugar que faz parte da memória dela, isso já cria um impacto muito importante. Quem anda ali de carro, de ônibus, de moto, andando, já tem uma visão completamente diferente" afirma.

A inauguração do Estação Fashion, novo shopping voltado para a moda atacadista, está prevista para 2024. No entanto, segundo Daniela Branquinho, gerente de marketing do empreendimento, os diálogos com os colegas de quarteirão já se iniciaram. Além do Complexo Cultural, a iniciativa buscou estreitar laços com o Museu da Indústria e com o Centro de Turismo do Ceará (Emcetur), ambos localizados a poucos metros do centro comercial.

“A gente já tem buscado uma convivência de parceria mesmo. A nossa intenção é trabalhar em parceria com os equipamentos culturais e os equipamentos sociais da região, porque a gente conhece os desafios que o Centro ainda enfrenta, apesar de todo o investimento que tem passado”, diz Daniela.

José Wilson afirma ver de forma positiva a procura do empreendimento por diálogo. Para ele, os equipamentos da região precisam participar da gestão do território. “A gente precisa, principalmente junto à Prefeitura e ao Governo do Estado, trabalhar no que tange a gestão do território. Falo desde a iluminação, a coleta de lixo, a gestão do tráfego, a segurança pública. Todos esses componentes, a gente já dialoga. Com a chegada da Estação Fashion isso vai ter que se intensificar também”, opina.

Sabendo da questão complexa do trânsito no local, o Estação Fashion propôs no projeto arquitetônico um estacionamento com 500 vagas, tanto para carros particulares quanto para ônibus de viagem que trazem os atacadistas para compras, já que o plano é dobrar a quantidade de pessoas que passam pela área. “A nossa ideia é contribuir mesmo com o poder público para esse fluxo, até na questão de logística mesmo ali no Centro que a gente tem uma dificuldade de estacionamento”, afirma Daniela.

De acordo com Manuela Nogueira, titular da Coordenadoria Especial de Programas Integrados da Prefeitura de Fortaleza, o poder municipal está atento às mudanças que ocorrem no Centro. Ela destaca investimentos da Prefeitura no território, como a reforma da praça e o início da construção do terminal de ônibus na Praça José de Alencar e a requalificação da rua 24 de Maio, que liga a Praça José de Alencar à praça da Estação.

Complexo Estação das Artes recebeu mais de 100 mil pessoas desde a inauguração(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Complexo Estação das Artes recebeu mais de 100 mil pessoas desde a inauguração

“A gente espera que o Centro seja cada vez mais um Centro de todas as pessoas, um Centro que as pessoas vão empreender, que as pessoas possam caminhar, que as pessoas possam ir lá resolver os seus problemas, que possam ir lá fazer as suas compras e que tenha cada vez mais vida”, diz Manuela.

Ela explica que mudanças no trânsito ou no ordenamento urbano na região ainda não estão previstas, mas isso pode mudar com a inauguração do empreendimento. Quando questionada sobre o fluxo dos vendedores ambulantes que trabalham nas proximidades da Praça José de Alencar e da Catedral e podem ser atraídos pela possibilidade de negócio no novo polo fashion, Manuela afirma que todos precisarão pedir permissão à secretaria regional do Centro.

“Eles terão regras para ter essa permissão e depois serão fiscalizados conforme os Códigos da Cidade. O que a Prefeitura faz primeiro é ter uma conversa, a gente tem que entender porque aquelas pessoas estão ali e a necessidade econômica delas”, explica.

Para o sociólogo e colunista do Vida&Arte, Paulo Linhares, a dinâmica efervescente do Centro pode ser positiva para o Complexo Cultural. “Você tem que ver isso como uma oportunidade de chamar essas pessoas para uma vida cultural. O pessoal vai lá para comprar, mas pode frequentar [o equipamento] e ter um fluxo mais democrático dessas instituições”, diz. Ele afirma que o acesso à cultura ainda é elitizado em Fortaleza.

Manuela Nogueira também acredita que a harmonia entre o comércio e a cultura é possível. “Isso é o Centro vivo. A gente quer cada vez mais esse Centro atraindo pessoas diversas. A gente não quer que só vá uma tipologia de fortalezense para o Centro”, diz.

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