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Ampla maioria das adolescentes grávidas são negras no Ceará
Reportagem

Ampla maioria das adolescentes grávidas são negras no Ceará

| Mulheres de 15 a 19 anos | A diferença com o total de jovens brancas grávidas chega a 1.192%. Perfil destaca importância de políticas públicas para este público
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Gravidez entre 15 a 29 anos impacta vida educacional e profissionais de jovens  (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Gravidez entre 15 a 29 anos impacta vida educacional e profissionais de jovens

O Ceará identificou que um dos grupos femininos mais vulneráveis socioeconomicamente — meninas negras, com idades entre 15 e 19 anos —, representa 92% das adolescentes que engravidam no Estado. O recorte sobre a escolaridade dessas jovens mostra ainda o desafio da evasão escolar e das distorções série-idade. O registro de 3.076 gestações em meninas entre 10 e 14 anos — entre 2020 e 2023 — exibe outro fenômeno a ser superado, o estupro de vulnerável.

As informações sobre raça e nível de instrução das adolescentes são do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica (Ipece), que elaborou relatório de análise entre os anos 2019 e 2022. Já os dados das gravidezes entre 10 e 14 anos são do Sistema de Nascidos Vivos do SUS.

"O recorte de raça mostra a desigualdade racial (a diferença entre o total de adolescentes negras e brancas grávidas é de 1.192%), então o Governo precisa olhar esse público com mais atenção. E são as meninas negras que têm mais dificuldade de completar o ciclo da educação", explica o analista de Polícias Públicas do Ipece, Victor Hugo de Oliveira, que elaborou o estudo.

Ele expõe mais dois padrões específicos que merecem atenção. O efeito da gravidez adolescente na perpetuação da pobreza e a redução da pirâmide populacional no Brasil. "O pai, muitas vezes também adolescente, entra no mercado de trabalho para ter mais renda; a mãe fica em casa, em serviços não remunerados. E muitas vezes a criança deixa de ter uma infância adequada porque os níveis educacionais não foram satisfatórios", explica Victor Hugo.

O analista pondera ainda a queda substancial de nascidos vivos no Brasil de uma forma geral. "Com um número menor de crianças, precisamos nos preocupar ainda mais com o capital humano que está sendo gerado. Se essa criança nasce em um cenário de pobreza, estaremos desperdiçando mão de obra", detalha. Os números reforçam o que o especialista em Políticas Públicas explica: em 2022, das mais de 13 mil meninas entre 15 e 19 anos que tiveram filhos, 80% não tinham o ensino médio.

Em Fortaleza, duas unidades hospitalares oferecem serviços específicos para adolescentes grávidas através do Projeto Sigo Adolescente, que acontece no Hospital Distrital Gonzaga Mota do José Walter e na Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac). A assessora técnica de Saúde da Mulher da Secretaria Municipal da Saúde (SMS), Léa Dias, destaca que o pré-natal das adolescentes segue o fluxo normal nos 118 postos de saúde da Capital.

"Abaixo de 14 anos, exige uma equipe disciplinar mais forte, ou quando a mãe tem alguma patologia que precise de atenção especializada. Meninas nessa faixa etária devem ser encaminhadas para outros serviços", explica Dias. Além de a gravidez de meninas entre 10 e 14 anos configurar estupro de vulnerável — o que exige articulação com órgãos de direitos da criança e do adolescente — há questões específicas sobre a condição clínica dessa gestação.

As síndromes hipertensivas representam um dos maiores riscos à saúde da gestante e do bebê. É uma patologia característica de gestações nos extremos das idades. "E tem a questão da prematuridade. Às vezes uma questão do perfil adolescente mesmo, que não tem os cuidados adequados, como com a infecção urinária, por exemplo, que pode colaborar para um parto prematuro", detalha a assessora técnica da SMS.

Uma portaria do Ministério da Saúde (MS) determina que casos de violência contra a mulher — como nos casos de estupro de vulnerável — tenham notificação compulsória. Ou seja, obrigatória. O Conselho Tutelar é acionado, mesmo que haja "permissão" dos pais para relação conjugal e gravidez.

O abortamento previsto em lei considera: vítima de violência sexual; pessoas incapazes, que tenham deficiência mental; quando há risco de morte para a mãe; quando o feto é anencefálico e quando a mãe for menor do que 14 anos.

Para a realização do aborto legal não é preciso autorização judicial ou Boletim de Ocorrência. Existe acompanhamento psicológico e, no caso de violências, as mulheres ou meninas são orientadas para denúncia.

601 meninas grávidas que já tinham sido gestantes

Nas escolas cearenses, a gravidez na adolescência é trabalhada num contexto social macro, onde programas destacam as potencialidades do jovem e o impacto na prevenção das violências. Em 2022, nas escolas de ensino médio estaduais, houve o registro de 1.913 adolescentes gestantes. De acordo com o estudo do Ipece, no ano anterior, 601 meninas entre 15 e 19 anos estavam na segunda ou até terceira gestações.

É por isso que a chefe da Divisão Médica da Maternidade-Escola Assis Chateaubriand (Meac), Zenilda Vieira Bruno, está com os olhos voltados principalmente para reincidência da gravidez na adolescência. "É importante oferecer métodos (contraceptivos) de longa duração. A camisinha é ótima para prevenir doenças, mas para gravidez, o índice de falha é altíssimo. Quando a gente pergunta, elas dizem que o coito interrompido é o mais usado. Mas isso é arriscadíssimo, porque é uma habilidade complicada para quem está começando a vida sexual", explica.

A médica, que há mais de 30 anos trabalha com adolescentes, afirma categoricamente que, principalmente para as adolescentes que estão grávidas pela segunda vez, a oferta de métodos anticoncepcionais deveria ser prioridade. "O DIU de cobre, ofertado pelo SUS, já tem estudos que mostram que é excelente. Quem nunca engravidou pode usar, adolescente pode usar, o risco de infecção é muito pequeno", orienta a médica.

Zenilda destaca ainda outros métodos, como o implante que é colocado no braço. "Pode ser colocado até antes do início da atividade sexual. É caro, mas já há vários trabalhos mostrando que é mais barato gastar em Larc (sigla em inglês para Long-acting reversible contraceptives, que em um tradução livre significa Métodos Contraceptivos Reversíveis de Longa Duração) do que ter uma gravidez na adolescência", pondera.

A Meac está trabalhando junto ao Governo do Estado para que haja o fornecimento de Larc de forma mais ampla. "A pílula, que tem de tomar todo dia, é complicada para adolescente. Muitas não podem tomar porque precisam esconder dos pais. A camisinha, muitas têm vergonha de como serão julgadas", detalha Zenilda. Com durações de três, cinco e dez anos, os Larcs possibilitam ainda o acompanhamento das adolescentes pelo sistema de saúde que oferece o método.

Pesquisadora e integrante do Fórum Permanente Direitos da Criança e do Adolescente Monitoramento de Políticas Públicas (Fórum DCA), Lídia Rodrigues destaca que é direito dos adolescentes aprender a lidar com as questões do próprio corpo. "Eles estão vivendo aquela situação, independente da sociedade achar que eles podem ou não. Se eles não estão conseguindo proteger essa vivência, se não conseguem fazer com que essa vivência se torne um processo que não comprometa o futuro, eles estão sendo violados", argumentou.

Em Fortaleza, 97% das meninas grávidas são negras

O recorte racial mostrado pelo estudo do Ipece, que exibe 92% das meninas grávidas como negras, é reforçado pela porcentagem identificada por outro estudo, em Fortaleza, que avaliou a reincidência da gravidez na adolescência: 97% das jovens grávidas na Capital também são negras "O dado referente ao estudo de Fortaleza foi fornecido pela chefe da Divisão Médica da Maternidade-Escola Assis Chateaubriand (Meac), Zenilda Vieira Bruno." . Os dados, referentes a 2019 a 2021, mostram ainda que 57% das adolescentes grávidas pela segunda vez estavam com distorção idade/série.

“A questão racial é um elemento importante. Em que medida isso não é uma reprodução colonial de corpos negros produzindo mais corpos negros?”, questiona Lídia Rodrigues.

Ela complementa ao descrever o ciclo de pobreza e racismo: “Tem uma teoria da Psicologia que fala sobre a profecia autorrealizada. A sociedade espera isso das meninas negras, que elas engravidem antes dos 16. Elas escutam tanto isso que acabam concretizando”.

A análise feita por Lídia pode ser facilmente narrada por uma das adolescentes grávidas atendidas no ambulatório da Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac). “Foi uma gravidez planejada. Eu cuidava do filho da minha irmã, mas aí ela levou ele embora e eu quis ter o meu”, conta a menina de 17 anos. A irmã, de 20, tem três filhos. A mãe da adolescente, de 47 anos, hoje com cinco filhos e dez netos, contou que engravidou pela primeira vez aos 14 anos.

A história é quase sempre a mesma: meninas negras e pobres que engravidam cedo, deixam a escola e ajudam a formatar ainda mais o ciclo da pobreza. A adolescente que será mãe logo mais — ela já estava no final da gestação — diz que não contará com a ajuda do pai do bebê, que está preso. “Mas a mãe dele vai me ajudar”, destaca. A adolescente faz Educação de Jovens e Adultos (EJA) para completar o ensino fundamental.

Questionada sobre o uso de contraceptivos, ela diz que “só conhecia a injeção”, mas como queria engravidar, não procurou usar nenhum. Sobre planos para o futuro, ela diz que ainda não pensou. A mãe da adolescente, preocupada, deixa claro o que mais a incomoda: “Que futuro uma mãe que não trabalha pode dar ao filho? Porque eu trabalho para dar a ela, porque não tem quem dê. O pai foi só pra fazer”.

Nas escolas, programas de Estado e Município abordam temática

Na rede municipal de ensino de Fortaleza, entre 2021 e 2023, foram registradas 53 gestações em alunas do ensino fundamental. Há o registro de um caso de evasão e outro de abandono escolar. O Município desenvolve o programa Gente Adolescente, junto à pasta da Saúde, que, entre as ações de assistência ao público adolescente contempla a gravidez.

A gestão destaca mais três iniciativas: Comissões de Proteção e Prevenção à Violência Contra a Criança e o Adolescente, o Serviço de Psicologia (composta por 12 profissionais) e o Programa de Promoção da Cultura de Paz no ambiente escolar (ProPaz).

“Um trabalho consolidado é o da busca ativa, intensa e qualificada. Identificamos, ainda no turno, os alunos faltantes e entramos em contato. E já tivemos situação em que a família diz que a menina não vai porque está grávida”, conta Joelson Moura, coordenador da Coordenadoria de Articulação da Comunidade e Gestão Escolar (Cogest), da SME. Ele garante que as alunas que têm filho recebem prioridade para matriculá-los nas creches da Prefeitura.

Na rede estadual, de acordo com informações em nota da Secretaria da Educação do Estado (Seduc), é realizada anualmente a Semana Nacional de Prevenção à Gravidez na Adolescência, em fevereiro. A pasta afirma ainda que oferta estudos domiciliares às alunas em licença maternidade: “A aluna também poderá se ausentar para amamentação e, inclusive, optar por levar a criança para a escola, que organizará um espaço com essa finalidade de amamentar”.

O POVO solicitou mais dados, além de fonte para entrevista sobre ações desenvolvidas, tendo em vista que é no ensino médio o maior desafio educacional do público. A Seduc afirmou que o Censo Escolar não acompanha esse tipo de informação.

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