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Cozinhas comunitárias: como organizações civis inspiram políticas públicas
Reportagem

Cozinhas comunitárias: como organizações civis inspiram políticas públicas

| ASSISTÊNCIA | Da comunidade para a comunidade, cozinhas foram essenciais no combate à fome durante a pandemia de Covid-19. Agora, como parte do programa estadual Ceará Sem Fome, modificam modo de atender à população
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FILA para receber quentinha na cozinha comunitária do Bom Jardim (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA FILA para receber quentinha na cozinha comunitária do Bom Jardim

Às 6 horas, Antônia Ticiane Lima, Silma Leal e Maria do Carmo Rodrigues chegam à sede do Centro União Beneficente dos Moradores da Granja Portugal, em Fortaleza, para começar o preparo dos alimentos que serão distribuídos na hora do almoço para a comunidade. De segunda a sexta-feira, as três cozinheiras se dedicam a montar quentinhas que, muitas vezes, são a única refeição do dia de quem as recebe.

“A pessoa que mora em comunidade não consegue ver as outras pessoas passando por necessidade e ficar de braços cruzados”, diz Antônia Ticiane. Para ela, o trabalho na cozinha da associação é gratificante. “A gente vê que tem gente que tá precisando mesmo daquele prato de comida, a pessoa fica muito feliz. Às vezes pedem logo uma colher, comem aqui mesmo”, relata.

No período da pandemia, Regina Maia, vice-presidente da associação, relembra que a quantidade de pessoas pedindo comida era maior. Naquele momento, o trabalho era totalmente voluntário e dependia de doações. Assim como a cozinha do centro de moradores, outras surgiram e se fortaleceram pela Capital.

Na região, 19 organizações se uniram em prol de garantir o direito básico da alimentação aos moradores mais vulneráveis, conforme a pesquisa “Mapa Participativo de Enfrentamento à Fome no Grande Bom Jardim”, de 2022. Juntas, elas conseguiam produzir refeições para 13 mil pessoas, a depender da disponibilidade de insumos doados.

“São entidades que vão se transformando de acordo com a necessidade social de cada contexto. À medida que a fome foi se tornando um problema grave, elas passaram a produzir refeições e distribuir no território. A grande maioria sem nenhum apoio do poder público”, explica Eduardo Machado, sociólogo e coordenador principal da pesquisa. As entidades são associações de moradores, movimentos, igrejas, terreiros, centros comunitários, entre outros.

COZINHA comunitária no Bom Jardim(Foto: fotos FÁBIO LIMA)
Foto: fotos FÁBIO LIMA COZINHA comunitária no Bom Jardim

Em 2023, quando políticas públicas começaram a ser desenhadas para lidar com a emergência da fome no Ceará, a capilaridade e organização das cozinhas comunitárias serviram de inspiração. Elas foram incluídas como um dos braços do programa estadual Ceará Sem Fome, que distribui insumos para mais de mil cozinhas em 181 municípios do Estado.

“A nossa preocupação em conseguir doação, hoje a gente já não tem mais. O programa veio para suprir essas necessidades”, diz Regina. Pelo Ceará Sem Fome, a cozinha da associação faz 100 quentinhas por dia, entregues para moradores previamente cadastrados. A Rede de Cozinhas do Grande Bom Jardim hoje conta com 24 cozinhas e 17 delas participam da política estadual.

No âmbito federal, a lei n.º 14.628, de 20 de julho de 2023, também criou o programa Cozinha Solidária. Por meio dela, cozinhas de todas as unidades da federação poderão se inscrever para receber alimentos in natura, recursos financeiros e formações profissionais. Apesar de ter sido regulamentado em março de 2024, o edital do programa ainda não foi lançado.

“O estado por si só não dá conta de enfrentar (a fome), é preciso a participação da sociedade. A gente foi percebendo que as cozinhas são tecnologias sociais, são mais próximas, conhecem a comunidade, são reconhecidas e já têm essa penetração”, afirma Eduardo.

A certeza do prato de comida

O salão do Centro União Beneficente dos Moradores da Granja Portugal começa a encher por volta das 11h30min. Mulheres, crianças e idosos são o público principal. Regina Maia, a vice-presidente da associação, se organiza para começar a entregar as quentinhas do programa Ceará Sem Fome, já empilhadas em uma mesa. Quando entrega, anota em uma lista dos beneficiários o nome de quem já pegou o alimento.

“A quentinha é ótima, e ajuda muito, porque lá em casa às vezes a gente tem (comida), às vezes não tem”, conta Marcela Fernandes de Araújo, 30, uma das inscritas na cozinha comunitária para receber a quentinha do Ceará Sem Fome. O filho e a mãe de Marcela também recebem a alimentação. Em casa, a comida ainda é dividida com a irmã. Nenhum dos adultos da casa tem um trabalho fixo.

Insegurança alimentar atinge 35% dos domicílios do Ceará(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Insegurança alimentar atinge 35% dos domicílios do Ceará

No dia da visita do O POVO, o cardápio da marmita era carne moída, arroz, feijão, cuscuz e beterraba. Rosemary Alves Pereira, 54, também foi ao local recolher o almoço. “Graças a Deus tem essas quentinhas, se não fosse isso eu morria de fome. Não sou aposentada nem nada. Sábado e domingo eu fico triste porque não tem”, relata. Ela tem a mobilidade reduzida e não trabalha.

Além da comida feita com insumos do programa, doações independentes que ainda chegam à associação são convertidas em sopa e em mais quentinhas para aqueles que não estão inscritos. “A gente complementa, porque chegam pessoas pedindo alimentos e a gente tem que ceder”, afirma Regina.

Funcionamento do programa Ceará Sem Fome

  • Por meio de edital, o Ceará fez parceria com 24 unidades gerenciadoras, que são organizações sem fins lucrativos já experientes em gestão de projetos governamentais;

  • As gerenciadoras recebem recursos do Estado e distribuem a verba para o funcionamento das cozinhas. Ao todo, 1.086 cozinhas do Ceará Sem Fome funcionam divididas em lotes por bairros, em Fortaleza, e por municípios no Interior;

  • No aditivo do edital, assinado em março de 2024 e válido por seis meses, consta a verba de R$ 87 milhões para a manutenção das cozinhas;

  • As entidades parceiras recebem o valor de R$ 7,31 para cada refeição produzida, sendo R$ 5,87 para insumos e custo operacional e R$ 1,44 para custeio da unidade gerenciadora;

  • O programa Ceará Sem Fome ainda prevê a transferência de R$ 300 por mês por meio de um cartão alimentação para 53 mil famílias em situação de vulnerabilidade. Doações de cestas básicas para organizações também são realizadas.

Política impulsiona cozinhas comunitárias, mas burocratiza dinâmica de atendimento

Ao se inscreverem no programa Ceará Sem Fome, as cozinhas comunitárias passam a receber os insumos e ajudas de custo para realizar o trabalho de produção de refeições que já faziam voluntariamente, com ajuda de doações que nem sempre eram constantes. Para isso, no entanto, é preciso também aderir às regras do programa governamental, seguindo burocracias que modificam a dinâmica de atendimento da comunidade.

Pelas regras do programa, as Unidades Sociais de Produção de Refeição (USPR) — como são chamadas oficialmente pelo Governo — devem produzir 100 almoços por dia, de segunda a sexta-feira. Com isso, são pelo menos 100 mil quentinhas distribuídas diariamente em todas as regiões do Estado. As USPR devem receber ainda ajuda de custo para uma cozinheira, isenção da taxa de água pela Cagece e auxílio para pagar a conta de energia e de gás.

Elas precisam selecionar 100 pessoas para serem beneficiadas com as quentinhas, cadastrando-as pelo Número de Identificação Social (NIS). É recomendada a prioridade a mulheres, crianças e idosos. As alimentações só devem ser entregues aos inscritos.

“Eu acho que isso pode melhorar. Antes a gente podia dar alimentação a quem a gente quisesse. A pessoa passava pedindo comida, um catador, e podia dar. Hoje a gente só pode fornecer para as pessoas cadastradas”, explica Regina Maia, vice-presidente do Centro União Beneficente dos Moradores da Granja Portugal. Segundo ela, é comum que todos os dias alguém não cadastrado fique na porta da associação pedindo para receber o alimento.

PROGRAMA Ceará Sem Fome viabiliza 100 refeições por cozinha por dia(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA PROGRAMA Ceará Sem Fome viabiliza 100 refeições por cozinha por dia

Para Miguel Ferreira Neto, vice-presidente da Associação Espírita de Umbanda e responsável pela Cozinha São Miguel, no bairro Granja Lisboa, algumas pessoas em situação de extrema vulnerabilidade ficam de fora do programa devido à falta de documentos.

“Tem pessoas que não têm NIS, que não têm o registro de nascimento e não são daqui (Fortaleza), para buscar fora é caro. Isso dificulta”, afirma. O programa permite que apenas uma parte dos beneficiários não tenha documentos.

Devido a esses aspectos, as cozinhas continuam buscando doações independentes para distribuir sopas ou alimentos in natura para as famílias da comunidade. “No horário do sopão, só precisa trazer o baldinho”, diz Regina.

Dirigente da Cozinha Ana Facó, localizada no residencial de mesmo nome, no bairro Siqueira, Wesley Miranda explica que preferiu não participar do programa pela limitação do número de beneficiários.

“Aqui a gente tem 2.500 pessoas nessa situação (de vulnerabilidade), só 100 quentinhas iria gerar mais problemas do que a gente já tem. Continuamos com a sopa por nossa conta mesmo, às vezes tem doações, quem quiser pegar vem e se serve”, conta.

No entanto, sobreviver apenas com doações depois da pandemia tem se provado um desafio para as cozinhas. O número de alimentos doados diminuiu consideravelmente, enquanto a quantidade de pessoas em vulnerabilidade reduziu de forma tímida.

“Depois da pandemia houve uma redução (da fome), mas no residencial onde tem mais de 2.500 pessoas, é quase insignificante. Praticamente 80 a 90% do pessoal que estava numa situação vulnerável na pandemia continua”, explica.

A obrigatoriedade de produzir os alimentos apenas no horário do almoço também foi um fator decisivo para a Cozinha da Vovó, localizada na Associação Cultural e Beneficente Aldeide Viramundo, ficar de fora do programa. Segundo Janaína Rodrigues, presidente da associação, as cozinheiras têm outros trabalhos durante o dia e só poderiam produzir o jantar.

“Realmente a gente faz uma manobra para encaixar os horários. Se fosse jantar, a gente se organizava. E o valor que o Governo passa para auxílio das cozinheiras é muito pouco, não tem como contratar uma pessoa totalmente exclusiva para o Ceará Sem Fome”, diz Janaína.

Membros da cozinha chegaram a participar do treinamento do programa e de reuniões com idealizadores, mas não conseguiram se encaixar nas regras.

Governo busca incluir mais gente no programa

Lia de Freitas, primeira-dama do Ceará e presidente do Comitê Intersetorial de Governança do Ceará Sem Fome, explica que muitas das regras do programa são necessárias para fins de prestação de contas a órgãos controladores e para organização de logística.

Em relação aos beneficiários sem documentação, Lia afirma que as unidades gestoras e cozinhas foram orientadas a cadastrar pessoas em vulnerabilidade sem documentos e encaminhar elas até um núcleo da Defensoria Pública do Estado para regularizar a situação.

“Mas nós vamos fazer uma nova rodada de análises desses dados para a gente ver se tem de novo uma margem de pessoas que não têm documentos, para começar a providenciar”, garante.

Sobre a quantidade de quentinhas, a primeira-dama explica que um dos principais pedidos que escuta das cozinhas é para aumentar o número de alimentações diárias. No entanto, ela argumenta que os espaços não têm muitas exigências de estrutura e, para não “desprestigiar quem está na ponta”, o programa não faz diferenciação entre esses locais e cozinhas que teriam potencial para produzir mais alimentos. O horário do almoço foi padronizado também para melhorar a dinâmica de distribuição de insumos e fiscalização.

Conforme Lia, o programa também preza pela capilaridade das cozinhas. “Eu tenho uma comunidade de 5 mil pessoas, entre vários bairros e ruas, mas se colocar só uma cozinha para que todos se desloquem até aquele local, fica inviável. A ideia é que as pessoas fiquem mais próximas de suas casas”, afirma. Os espaços também são considerados um ponto de possível aproximação entre o Estado e os beneficiários, com oferta de cursos profissionalizantes e cadastros em outros programas sociais.

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