A decisão da mudança de local de construção da Usina de Dessalinização (Dessal), na Praia do Futuro, em Fortaleza, vai afetar mais famílias do que o projetado inicialmente pelo Governo do Ceará e o clima de medo impera nas comunidades impactadas. O POVO esteve no espaço e conversou com moradores, que já foram avisados do despejo por viaturas policiais.
Nessa quinta-feira, 27, o Núcleo de Habitação e Moradia da Defensoria Pública do Estado do Ceará (NUHAM/DPGE-CE), liderado pela defensora Elizabeth Chagas, visitou o espaço e encontrou quatro comunidades que serão afetadas pelo empreendimento. Os defensores promoveram uma ação jurídica, social e técnica em favor das famílias.
Diferente da projeção inicial do Governo do Estado de que o projeto afetaria uma comunidade de no máximo 120 famílias, são pelo menos 200 núcleos familiares distribuídos entre quatro comunidades: Vista para o Mar, Vila Norte Sul, da Benção e Deus é Fiel.
Os residentes devem ser impactados pela construção da maior planta de dessalinização para consumo humano da América Latina, projeto que retira o sal da água marinha através de um tratamento robusto à base de osmose reversa "O processo de dessalinização por osmose reversa usa pressão para empurrar a água do mar através de uma membrana semipermeável. Esta camada especial permite a passagem apenas de certas moléculas, portanto, quando a água do mar pressurizada entra em contato com esta membrana, H2O moléculas escapam enquanto os sais e outras impurezas ficam para trás." — procedimento já realizado em cidades que não possuem representativa oferta de água doce, seja por inexistência ou contaminação dos recursos.
Cerca de 720 mil pessoas deverão ser diretamente beneficiadas com a Dessal, uma Parceria Público-Privada (PPP) firmada entre a Cagece e o consórcio Águas de Fortaleza. A planta de dessalinização de água marinha terá capacidade para produzir 1m³ (mil litros) de água por segundo, vazão que será destinada ao Macrossistema Integrado de Distribuição de Água de Fortaleza e Região Metropolitana.
Com duração de 30 anos, o contrato de PPP terá um valor total de R$ 3,1 bilhões que serão aplicados em investimentos, operação e manutenção e fornecimento de água potável nos reservatórios do Mucuripe e Praça da Imprensa. Desse total, mais de R$ 500 milhões devem ser investidos na construção da planta de dessalinização e instalação das tubulações.
Por meio de nota encaminhada pela Casa Civil, do Governo do Ceará, a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) informou que “a usina tem o compromisso de minimizar ao máximo o impacto à população do entorno” e que as famílias ocupantes do novo terreno da Dessal “receberão uma solução” do Estado e Superintendência do Patrimônio da União (SPU).
No local, os moradores se disseram assustados com o movimento em torno das comunidades, que se formaram por meio de construções improvisadas à beira-mar e sem acesso a energia elétrica e saneamento básico. Até então “esquecidas” pelo Poder Público, agora se veem como alvos por estarem no caminho da Dessal.
Essas pessoas — a maioria em condição de vulnerabilidade econômica, sendo beneficiárias de programas sociais, e social, vivendo em áreas sob domínio de facções criminosas — receberam o “aviso de despejo” de suas moradias sem que fosse apresentado qualquer documento.
No local, Marcelânia Oliveira, líder comunitária da comunidade Vista para o Mar, disse que os moradores não têm para onde ir e que ali vivem pessoas idosas com dificuldades de locomoção, além de crianças autistas, pessoas cadeirantes e com síndrome de Down.
“Há oito dias chegou uma viatura caracterizada como se fosse da Federal com pessoas dizendo que a gente teria cinco dias para evacuar o espaço, só que não trouxeram papel, não trouxeram nada”, afirma.
O terreno em questão fica localizado a partir do cruzamento da avenida Zezé Diogo com a rua Ismael Pordeus, no bairro Antônio Diogo, e ainda é cortado pela Areninha Gildo Fernandes de Oliveira (Praia do Futuro I).
O espaço é distante pouco mais de 1 quilômetro do local anterior, motivo de disputa com empresas do setor de telecomunicações que só foi resolvida após reunião, em Brasília, depois da alegação de que a operação da usina traria “risco de apagão de internet no Brasil” por conta da proximidade dos cabos submarinos de fibra óptica.
Em nota, o Governo informou que a proposta foi acordada com o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), o Ministério das Comunicações, a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, a Associação das empresas de cabos submarino e pelo consórcio Águas de Fortaleza.
E que no local do antigo terreno deve ser implantado um Centro de Tecnologia, aproveitando a boa disponibilidade de redes de dados já existentes.
Também informa que, agora, serão feitas as atualizações documentais necessárias. Isso inclui adequações do projeto, em aspectos como Geotecnia, Topografia, Plantas e Layout; além de resoluções formais junto a órgãos federais, como SPU e Marinha; assim como ajustes nas licenças ambientais prévia e de instalação.
O Governo espera que esses procedimentos sejam realizados ao longo deste segundo semestre de 2024. Mas, conforme a Superintendência Estadual de Meio Ambiente do Estado do Ceará (Semace), ainda não foi apresentado à instituição a solicitação do pedido de licenciamento para a nova área, bem como da possibilidade de reassentamento de pessoas atualmente instaladas no terreno.
Somente após as etapas legais será iniciada a construção da planta. Antes de todo o imbróglio, havia intenção de construir a usina neste ano e entregar em 2025. A partir de agora, os prazos foram esticados e a perspectiva é de entrega somente em 2026.
Com relação à areninha presente na região, O POVO buscou a Secretaria Municipal do Esporte e Lazer (Secel) para saber se a pasta está ciente e se já existe algum projeto do que será feito com essa quadra esportiva diante das movimentações.
“Até o momento não houve nenhum contato”, respondeu Jefferson Carvalhal, coordenador de equipamentos de pequeno porte da Secel.
Depois de receberem o aviso para que saíssem voluntariamente dos terrenos ocupados na faixa de areia que se estende na altura do número 1585 da avenida Zezé Diogo, os moradores acionaram o Escritório de Direitos Humanos Dom Aloísio Lorscheider (EDHAL) e a Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE), que têm prestado atendimento jurídico com relação à desapropriação do local e agora auxiliam no mapeamento da área e do perfil das famílias afetadas.
O EDHAL, salienta o coordenador Marcus Giovanni, tem atuado no cadastro das famílias para indenização e/ou inclusão em programa de moradia caso haja a desocupação. O Escritório também vai ajudar na criação de uma associação de moradores de cada uma das ocupações atingidas pelo projeto da Dessal.
“Esses moradores ocupam uma faixa de praia da União da Praia do Futuro, inclusive algumas ocupações ali têm mais de 15 anos. E agora, com essa questão da mudança de local da usina, é provável que haja uma remoção daquelas pessoas. Nós, em parceria com a DPCE, com a Defensoria Pública da União, com a Comissão de Direitos Humanos da Câmara, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia e o Escritório Frei Tito de Alencar, a gente está se mobilizando para que essa remoção seja o menos traumática possível”, aponta Marcus.
O coordenador confirma que há pelo menos 200 famílias distribuídas nas comunidades: “Nosso trabalho é no sentido de não tirar as pessoas daquela área. Se for remover, que o governo forneça uma habitação na própria área da Praia do Futuro. E, segundo, para que as famílias sejam indenizadas. E aí a gente está atuando em conjunto no sentido de mitigar essa desocupação”.
A defensora pública Elizabeth Chagas, do Núcleo de Habitação e Moradia (Nuham) da DPCE, explica que, a partir dessas ações nas comunidades, será possível gerar relatórios que ajudem a garantir o direito à moradia da população vulnerabilizada que reside na região "e os diálogos interinstitucionais acerca da situação fática de várias comunidades que vivem na faixa de areia por não terem para onde ir".
O POVO acompanhou a aplicação dos questionários durante a quinta-feira, 27. A equipe de reportagem, aliás, só entrou na comunidade após representantes da Defensoria chegarem ao local e foi comunicada que deveria circular somente acompanhada deles. Os responsáveis pela ação tiveram de se identificar e sinalizar a indivíduos do local, que supostamente seriam integrantes de facção criminosa, sobre o propósito da visita.
As perguntas feitas englobam o espaço físico, os tipos de construções e a quantidade de casas, além de questões sociais como o acompanhamento educacional de crianças e adolescentes, tratamentos de saúde, situação de idosos, pessoas com deficiência, doentes crônicos, pessoas grávidas, quantos sujeitos trabalham, valor da renda, se recebem auxílio do governo (e, se sim, de qual tipo), entre outras questões para facilitar o diálogo e a busca por soluções sobre os direitos dos núcleos urbanos informais.
Uma equipe técnica formada por arquitetos e urbanistas, assistentes sociais e agentes multidisciplinares também tem atuado no trabalho do Núcleo, que deve continuar em data ainda a ser definida.
Em agosto de 2023, O POVO noticiou que a mudança no projeto da usina não deveria resultar em uma desapropriação de área, segundo assegurou, na época, o Consórcio Águas de Fortaleza. A remoção de habitantes com a necessidade de desapropriar a região era uma das principais preocupações dos ocupantes dos arredores do equipamento.
Recentemente, em 19 de junho, o governador Elmano de Freitas (PT) garantiu que as famílias afetadas pela usina terão “uma moradia bem melhor do que elas têm hoje”. A declaração foi dada durante solenidade de lançamento do Complexo Solar Panati, em Jaguaretama.
“Não é razoável nós termos investimento de bilhões de reais e as pessoas que estão ali do lado, morando em casebres, em condições indignas. Nós temos que dar conta de ter um investimento bilionário e, ao mesmo tempo, ter a atenção devida e a sensibilidade com as famílias que estão morando ali ao redor”, defendeu.
O chefe do Executivo estadual acrescentou que as famílias assentadas no local ocupam área de Marinha, “uma área que já é da União. Mas nós temos sensibilidade, até pela minha trajetória de vida, de procurar essas famílias. O que eu quero, portanto, é encontrar e construir moradia digna para essas famílias”.
A reportagem procurou a Cagece, uma das principais envolvidas no projeto, para solicitar informações mais detalhadas sobre o novo local, assim como mapas e imagens que mostrassem a localização exata da instalação.
Questionou ainda qual foi o órgão responsável por mensurar o número de famílias que serão afetadas e qual o posicionamento da Companhia sobre o reassentamento, além de como será feito o acompanhamento dessa mudança e quantas pessoas devem ser impactadas por ela. Sobre esses pontos, não houve resposta.
O POVO buscou, ainda, o Consórcio Águas de Fortaleza para se manifestar sobre o caso, mas foi informado mais uma vez de que todas as decisões estão centralizadas no Governo do Estado. O Consórcio e a Cagece aguardam a definição sobre o novo espaço para que só então possam tomar a frente do projeto.
A líder comunitária Marcelânia Oliveira adiciona que as comunidades existem há bastante tempo e que cresceram durante a pandemia de Covid-19, quando mais pessoas em situação de vulnerabilidade mudaram-se para lá: “a Deus é Fiel tem 15 anos que existe, a Vila Norte Sul tem 11 anos, a da Benção tem 10 anos e a nossa aqui, Vista para o Mar, que é a mais recente, tem 5 anos”.
“Os policiais disseram que a gente tinha que sair, porque aqui é uma área privada que é da União e que aqui vai ser construída uma indústria, uma tal de salinas (sic), e que tinha que ser evacuado o terreno. Mas a gente não tem para onde ir e a gente não quer sair da praia, correr o risco de ir para outro bairro. Aqui (na Praia do Futuro) tem tanto terreno abandonado, com lixo, sem uso”, declara.
E continua: “A gente não quer confusão, a gente só quer uma coisa: moradia digna para a gente morar. Porque se a gente tivesse como sobreviver e se manter, a gente jamais estaria num lugar desses, sem saneamento, sem encanação, sem energia. Dá um papoco nesse fio, a gente fica na escuridão aqui”.
O aluguel social, benefício eventual de R$ 400 concedido por família pelo Governo do Estado através da Secretaria da Proteção Social (SPS), é considerado uma medida insuficiente pelos moradores, que argumentam que as famílias são compostas por grande número de pessoas e que o valor as forçaria a ir embora para bairros mais afastados. Além disso, as comunidades temem pela descontinuidade do pagamento.
“Para pagar (o valor do aluguel social) um mês sim e o resto não? Porque eles começam e depois pronto, abandona e a gente fica jogado. Difícil achar casa, quando acha é quitinete para morar com criança, marido, cachorro, papagaio. E quando joga para aluguel social, a comunidade perde força”, alega Raquel Viana, líder da comunidade da Benção.
No início do ano, O POVO noticiou que um parecer definitivo da Superintendência do Patrimônio da União (SPU) ainda deveria avaliar a construção. Esta reportagem, então, questionou o titular da superintendência no Ceará sobre a situação das comunidades, já que a cessão da área depende da União.
De acordo com o superintendente Fábio Galvão, o reassentamento das famílias é “imprescindível para a pauta”.
“Estão morando em condições precárias, sem saneamento, urbanização, e ainda em área não permitida para moradias. Assim, a União federal está de acordo e espera uma solução pacífica e social”, indicou.
E continuou: “A Cagece nos solicitou uma área na Praia do Futuro, analisamos, vimos que era possível e aprovamos o local proposto, que fica na área da areninha da Praia do Futuro. A Companhia enviou os projetos e estamos analisando e confiantes que esteja tudo em conformidade com as legislações, pois água é essencial para todas e todos”.
Ainda conforme Galvão, a SPU/CE está, em conjunto com o Governo do Estado e a Defensoria Pública, realizando o cadastramento social das famílias, mapeamento e caracterização dos imóveis e construções no trecho.
Linha do tempo sobre projeto da Dessal Ceará
Em 22 de dezembro do ano passado, o então ministro de Comunicações, Juscelino Filho, solicitou à Cagece estudos complementares com avaliações e planejamento mais detalhado e específico de gestão de riscos quanto à infraestrutura local.
A reportagem contatou o Ministério para questionar se houve algum retorno por parte da Companhia, já que foi anunciada uma série de ações para o início da construção — incluindo o reassentamento dessas centenas de famílias.
Em resposta, a pasta informou que o que chegou até o Ministério das Comunicações foi o estudo analisado pela Anatel — e que levou ao acordo com a estatal para evitar a interferência nos cabos submarinos.
Famílias querem permanecer no bairro e consideram aluguel social "insuficiente"
A líder comunitária Marcelânia Oliveira adiciona que as comunidades existem há bastante tempo e que cresceram durante a pandemia de Covid-19, quando mais pessoas em situação de vulnerabilidade mudaram-se para lá: "a Deus é Fiel tem 15 anos que existe, a Vila Norte Sul tem 11 anos, a da Benção tem 10 anos e a nossa aqui, Vista para o Mar, que é a mais recente, tem 5 anos".
"Os policiais disseram que a gente tinha que sair, porque aqui é uma área privada que é da União e que aqui vai ser construída uma indústria, uma tal de salinas (sic), e que tinha que ser evacuado o terreno. Mas a gente não tem para onde ir e a gente não quer sair da praia, correr o risco de ir para outro bairro. Aqui (na Praia do Futuro) tem tanto terreno abandonado, com lixo, sem uso", declara.
E continua: "A gente não quer confusão, a gente só quer uma coisa: moradia digna para a gente morar. Porque se a gente tivesse como sobreviver e se manter, a gente jamais estaria num lugar desses, sem saneamento, sem encanação, sem energia. Dá um papoco nesse fio, a gente fica na escuridão aqui".
O aluguel social, benefício eventual de R$ 400 concedido por família pelo Governo do Estado através da Secretaria da Proteção Social (SPS), é considerado uma medida insuficiente pelos moradores, que argumentam que as famílias são compostas por grande número de pessoas e que o valor as forçaria a ir embora para bairros mais afastados. Além disso, as comunidades temem pela descontinuidade do pagamento.
"Para pagar (o valor do aluguel social) um mês sim e o resto não? Porque eles começam e depois pronto, abandona e a gente fica jogado. Difícil achar casa, quando acha é quitinete para morar com criança, marido, cachorro, papagaio. E quando joga para aluguel social, a comunidade perde força", alega Raquel Viana, líder da comunidade da Benção.
"Reassentamento é imprescindível", diz SPU
No início do ano, O POVO noticiou que um parecer definitivo da Superintendência do Patrimônio da União (SPU) ainda deveria avaliar a construção. Diante da mudança no projeto, procuramos o titular da superintendência no Ceará sobre a situação das comunidades, já que a cessão da área depende da União.
De acordo com o superintendente Fábio Galvão, o reassentamento das famílias é "imprescindível para a pauta". "Estão morando em condições precárias, sem saneamento, urbanização, e ainda em área não permitida para moradias. Assim, a União federal está de acordo e espera uma solução pacífica e social", indicou.
"A Cagece nos solicitou uma área na Praia do Futuro, analisamos, vimos que era possível e aprovamos o local proposto, que fica na área da areninha da Praia do Futuro. A Companhia enviou os projetos e estamos analisando e confiantes que esteja tudo em conformidade com as legislações, pois água é essencial para todas e todos".
Ainda conforme Galvão, a SPU/CE está, em conjunto com o Governo do Estado e a Defensoria Pública, realizando o cadastramento social das famílias, mapeamento e caracterização dos imóveis e construções no trecho.