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O meio ambiente cercado por energias fósseis e renováveis
Reportagem

O meio ambiente cercado por energias fósseis e renováveis

|Desafios|Neste episódio do especial Transição Energética Justa, veja como a transição energética é necessária para reduzir tensões socioambientais impulsionadas pelo uso de combustíveis fósseis; isso se as empresas renováveis aprenderem com os erros do passado
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FORTALEZA, CEARÁ, 06-05-2024: O impacto das termoelétricas no território Anacé, que é muito próximo das residências, impactando seu dia-a-dia. (Foto: Fernanda Barros / O Povo) (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS FORTALEZA, CEARÁ, 06-05-2024: O impacto das termoelétricas no território Anacé, que é muito próximo das residências, impactando seu dia-a-dia. (Foto: Fernanda Barros / O Povo)

O som do tambor e da cantoria de dezenas de vozes pequenas e agudas aumenta à medida que se adentra a Escola indígena Anacé Joaquim da Rocha Franco, em Caucaia (CE). Nos fundos da antiga creche, o terreiro é protegido por um enorme cajueiro que sombreia a roda de toré infanto-juvenil puxada por Marcelo Anacé, uma das lideranças do povo indígena Anacé do Cauipe.

A escola separa dois dias da semana para reunir as crianças — até o sexto ano do ensino fundamental — no terreiro e cantar o toré. "Nós estamos fazendo o resgate da nossa cultura", reforça Marcelo, 42 anos. Ele é a oitava geração dos Anacé do Cauipe que, a partir dos anos 2010, faz a retomada da terra e da cultura. Mas o retorno não vem sem lutas.

Entre ameaças de diversas fontes, a ausência de serviços públicos e a busca pela delimitação do território na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), os Anacé do Cauipe também enfrentam as termelétricas à carvão e à gás natural.

A ex-agricultora Rita de Oliveira tem fotos de 2018 que já evidenciavam móveis sujos por pó de carvão na casa em São Gonçalo do Amarante (CE), município onde está localizada a Usina Termelétrica Pecém I.

O cenário se repete a 11 quilômetros do município, em Caucaia, no território dos Anacé do Cauipe, por volta dos anos de 2014. "O vento vem na época do caju. A gente começou a ver os caju brilhoso, quando passava o dedo ficava só o brilho", narra Marcelo. "As goiabas começaram a nascer defeituosas. E aí, na laje lá de casa, a gente começou a de repente juntar aquele monte preto."

Além disso, a comunidade começou a identificar que as alergias respiratórias estavam mais intensas, e os casos de câncer estavam crescendo. Na última década, Marcelo calcula dez parentes que morreram de câncer (no pulmão, no intestino, nas mamas, nos testículos e mesmo generalizados) na comunidade, composta por 200 famílias.

Não há dados que confirmem o aumento de casos de saúde dos Anacé do Cauipe e a relação direta deles com o funcionamento das termelétricas do Pecém. Porém, a queima do carvão natural emite diversos gases poluentes, como os óxidos de nitrogênio (NOx), que sabidamente "agravam doenças respiratórias, reduzem a capacidade pulmonar, associam-se ao envelhecimento precoce e também contribuem para a formação de nitrosaminas cancerígenas e de chuva ácida" — como descreve a médica Raquel Maria Rigotto em relatório publicado em 2009.

O POVO contatou a Mercurio Partners, responsável pela Usina do Pecém I, questionando se a empresa teria: um mapa de comunidades afetadas com resíduos de carvão oriundos das termelétricas; planos de mitigação dos impactos da termelétrica nas comunidades; e formas de monitoramento da usina para evitar impacto às comunidades e planos de ação em casos de impactos não previstos.

"Todos os esclarecimentos e dados relacionados aos seus questionamentos já foram prestados e disponibilizados aos órgãos competentes, mas podemos assegurar que não há impacto relacionado ao empreendimento na comunidade indígena Anacé do Cauipe", respondeu a empresa por nota.

Segundo Marcelo Anacé, é justamente na temporada de ventos, entre julho e agosto, que a situação fica pior. "A gente perdeu muitos parentes aqui."

O carvão mineral utilizado no Complexo do Pecém é importado da Colômbia e descarregado no porto do Pecém. De lá, ele é carregado por uma esteira de 12,5 quilômetros, com capacidade de transportar até 2.400 toneladas de carvão por hora, até a usina termelétrica. "As pilhas de carvão são umedecidas com o propósito de evitar a dispersão de partículas no ar", explica a empresa Energia Pecém em site.

Marcelo nos levou para ver as esteiras. No caminho, contava histórias do território ainda no aguardo da delimitação pela Funai. Em 2023, eles receberam o órgão e um antropólogo para tirar dúvidas sobre a antiga delimitação apresentada pela própria Funai, dos anos 1990, quando um antropólogo teria indicado a ausência de indígenas Anacé na região. "São empresas e mais empresas", lamenta Marcelo ao passar por incontáveis loteamentos no território.

 

Expediente

Textos e recursos digitais:Catalina Leite
Edição:Fátima Sudário e Regina Ribeiro
Identidade Visual: Cristiane Frota
Fotografia:Fernanda Barros/O POVO

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