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Caso Gaia Molinari: 10 anos de incertezas e impunidade
Reportagem

Caso Gaia Molinari: 10 anos de incertezas e impunidade

A investigação da morte da turista italiana em Jericoacoara passou das 30 mil páginas, teve nove delegados, dois suspeitos presos e, depois, isentados, mas não respondeu: quem matou Gaia?
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crimes sem solução - ep.2 (Foto: google maps/reprodução)
Foto: google maps/reprodução crimes sem solução - ep.2

O que aconteceu com Gaia Barbara Molinari? Poucos crimes na história recente do Ceará são tão paradigmáticos no que diz respeito à impunidade quanto o caso da turista italiana de 29 anos encontrada morta em 25 de dezembro de 2014 em Jijoca de Jericoacoara, município do Litoral Oeste do Estado.

Quase dez anos depois, o inquérito que investiga o caso já passou das 30 mil páginas. Nove delegados passaram pelo caso. Dois suspeitos foram presos temporariamente, mas, inocentados, foram soltos sem sequer terem sido indiciados. As prisões suscitaram polêmicas, com alegações, inclusive, de racismo, no caso da carioca Mirian França.

O inquérito já chegou a ter o arquivamento solicitado em 2017, mas continua em aberto. Nas milhares de páginas resultantes da extração dos dados do celular de Gaia, pode haver uma última esperança de encontrar algum elemento que possa ajudar no caso. Na prática, todavia, o inquérito que apura o caso está paralisado.

A última movimentação do inquérito ocorreu em setembro de 2023, quando um novo delegado, Ícaro Coelho, do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), assumiu a investigação. De lá para cá, nenhum documento foi anexado à peça.

Na leitura do inquérito, ao qual O POVO teve acesso a trechos, surgem mais dúvidas que respostas. Além da autoria do crime, a pergunta “por que Gaia foi morta?” também não tem resposta. Ela não teve nenhum bem roubado, não foi vítima de violência sexual e nem teve nenhum desentendimento nos poucos dias que passou em Jericoacoara.

Nenhuma das testemunhas ouvidas indicou um motivo plausível para a morte — quase todos afirmaram que Gaia era uma moça simpática e afável, incapaz de suscitar ódios. Pairam dúvidas, até mesmo, sobre o que a turista havia ido fazer no Serrote, a isolada localidade onde fora encontrada.

Até mesmo as estatísticas mostram o quão fora da curva foi o assassinato de Gaia. A Polícia Civil levantou que, entre 2010 e 2014, oito estupros foram registrados em Jericoacoara, nenhum seguido de morte. No mesmo período, foram dez homicídios, nenhum tendo mulheres como vítimas.

O fato da população de Jericoacoara mudar 70% a cada três dias, aproximadamente, por causa das idas e vindas de turistas e prestadores de serviço, é um dos fatores que dificultaram a elucidação do caso, conforme citado pela própria investigação. O local onde Gaia foi encontrada, de pouca movimentação e rodeado pela vegetação, também foi outro empecilho.

Para muitos dos ouvidos, o(s) autor(es) do crime não eram nativos, já que, tratando-se de uma vila pequena e de poucos habitantes, todos os moradores se conheciam e podiam, assim, identificar atitudes suspeitas. Testes de DNA foram feitos em dezenas de potenciais suspeitos, incluindo, pessoas que estiveram com Gaia ou, então, que tinham passagem pela Polícia e estavam na praia na época do crime. Nada foi identificado.

Gaia Molinari chegou a Fortaleza em dezembro de 2014
Gaia Molinari chegou a Fortaleza em dezembro de 2014

Quem era Gaia Molinari e o que ela veio fazer no Brasil

Gaia Molinari aportou no Brasil, inicialmente, em São Paulo (SP), onde realizou serviços comunitários em troca de hospedagem. Em 16 de dezembro de 2014, ela chegou a Fortaleza, para trabalhar em um hostel no Centro, também sob regime de permuta. Foi através de um site especializado na prática que Gaia conseguiu firmar o acordo.

Gaia contou a pessoas que conheceu durante sua estadia no Ceará que há seis meses viajava pelo mundo. Ela morava em Paris, capital da França, onde trabalhava como relações públicas de uma multinacional. Gaia também já havia morado em Londres, na Inglaterra, e era natural de Piacentina, província do Norte da Itália.

A mãe de Gaia descreveu à polícia italiana — em um documento que foi transcrito e anexado ao inquérito da polícia cearense — que a filha não era uma "irresponsável" ou “desprevenida”, pois, desde os 18 anos, “agia em autonomia, viajando mundo afora".

Ainda conforme a mãe, Gaia manifestava o desejo de trabalhar com as pessoas "necessitadas", em especial, crianças moradoras de favelas. Foi por esse motivo que ela teria vindo ao Brasil. Em certa ocasião em que as duas conversaram via internet, a mãe de Gaia contou que esta disse gostar “muito de crianças” e “que trabalhar com as crianças no Brasil proporciona-lhe muita alegria”.

“(Gaia) Era capaz de fazer amizade com quem quer que fosse, capaz de fazer sorrir todo mundo, contava amigos espalhados em qualquer lugar no mundo e para onde passava deixava inúmeras amizades”, depôs a mãe dela. Quase todos os depoimentos no inquérito policial acerca do temperamento de Gaia descrevem personalidade semelhante.

Algumas das descrições de Gaia feitas pelas testemunhas incluem termos como: “muito comunicativa”, “de coração bom”, “confiava muito”, “temperamento caloroso e amigável”, “comunicativa e alegre”, “não (consigo) imaginar que alguém pudesse ter raiva dela”, “carinhosa”, “extrovertida”, “simpática” e “costumava abraçar e beijar as pessoas”.

O irmão de Gaia, que também depôs à polícia italiana para colaborar com a investigação no Ceará, foi mais um a reforçar a imagem de mulher alegre, sociável e “que era capaz de fazer sorrir todo mundo”.

Gaia, conforme ele, “vivia cada instante ao máximo e queria fazer sempre mais coisas de quantas conseguisse fazer na realidade”. "Asua mente, na imaginação, ia sempre fora dos limites de tempo e de espaço; por exemplo, era capaz de programar um dia onde quisesse: dormir até tarde, fazer cooper, fazer compras para um piquenique, viajar até uma praia, ler, tomar sol, dar uma volta em caiaque, comer mesmo no caiaque, escalar, fazer longos passeios, tomar banho e ainda cumprir a viagem de volta e tudo em somente 9 horas”.

Ainda de acordo com os familiares, Gaia não andava com muitos bens de valores nem tinha muitas posses ou era rica. O corpo da turista italiana foi encontrado por volta das 13 horas do Dia do Natal. Foi um casal de turistas quem encontrou o cadáver e acionou a Polícia Militar.

Laudo cadavérico indica que Gaia foi morta por asfixia mediante estrangulamento, praticado pelo assassino com as próprias mãos. Não havia sinais de violência sexual, mas seu rosto foi “desfigurado”. Gaia não apresentava lesões de defesa, indicando que foi pega de surpresa.

O caso foi, inicialmente, investigado pela Delegacia de Proteção ao Turista (Deprotur), cuja sede fica em Fortaleza e que tinha como titular à época a delegada Patrícia Bezerra.

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