Se o mercado de trabalho fosse uma corrida de 100 metros, as mães solo seriam competidoras que largariam sem sapato apropriado ou carregando uma mochila pesada. Ou seja: teriam séria desvantagem em relação aos concorrentes, como homens, mulheres sem filhos ou aquelas que dispõem de melhor estrutura familiar.
O efeito social e econômico do perfil de mulheres que criam filhos sem o apoio do pai da criança foi medido em pesquisa da Diversitera, que aponta que elas possuem uma renda anual 32% menor em comparação com outras mulheres.
A pesquisa, que acompanhou a renda de mulheres entre 2022 e 2025, ainda demonstra que mulheres - em geral - enfrentam 186 horas anuais a mais do que os homens com tarefas domésticas e, apesar de maior escolaridade, precisam se contentar muitas vezes com funções operacionais, como recepção e limpeza, onde representam 70% da força de trabalho.
Levantamento da pesquisadora e economista do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV), Janaína Feijó, com base em dados da Pnad Contínua, aponta que o Ceará é o sexto estado do Brasil com a maior proporção de domicílios em que a pessoa de referência era mãe solo.
O percentual subiu de 16,9% para 17,6% dos lares, no recorte entre anos de 2012 e 2022. Na média, os estados do Nordeste lideram esses indicadores.
Essa desigualdade se dá também no acesso à formação educacional. Uma parcela expressiva dessas mães não possui ensino superior. Os dados do 4º trimestre de 2022 mostram que mais da metade (54,3%) das mães solo tem, no máximo, ensino fundamental completo e menos de 14% tem ensino superior.
A composição educacional entre as mães solo negras (pretas e pardas) é ainda mais grave, com uma maior concentração nos estratos de nível educacional mais baixo (58,7%) e uma minoria tendo ensino superior (8,9%).
Dentro desse contexto, a avaliação de especialistas consultadas pelo O POVO é que o Brasil não avançou na oferta de políticas públicas básicas para atender esse público, desde a oferta de creches até uma ação possível de indução dessas mulheres no mercado. Nem mesmo o resultado da legislação de igualdade salarial para homens e mulheres na mesma ocupação é vista positivamente.
A economista Carla Beni destaca que essas mulheres, na falta de uma rede de apoio, são empurradas à pobreza, prejudicando, por consequência, o futuro delas e de suas crianças. Na sua avaliação, falta apoio às mães solo que querem trabalhar e empreender, aumentando o peso sobre a renda dessas mulheres.
Citando dados recentes de CNDL, Sebrae e IBGE, Carla lembra que as mulheres chefiam quase metade dos lares, mas ganham menos e tem menos acesso a crédito barato, além de estarem mais inadimplentes.
"É um peso gigante. Por isso, quando uma mulher decide ser mãe sem apoio do companheiro, ou se torna mãe solo depois, o peso é ainda maior. E é por isso que vemos o número de filhos por mulher cair drasticamente".
Segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2023, na relação entre o arranjo familiar, a renda e a pobreza, em famílias chefiadas por mulheres pretas ou pardas, sem cônjuge e com presença de filhos menores de 14 anos, houve a maior concentração de pobreza.
Neste recorte, 22,6% dos moradores eram extremamente pobres e 72,2% eram pobres.
Carla ainda acrescenta que auxílios continuados, como os distribuídos na França e Inglaterra, até que as crianças completem 18 anos, e a mudança do olhar da sociedade para esse público, como o tratamento japonês, são exemplos para o Brasil, que por muitas vezes exclui e renega à pobreza esse perfil.
"A ideia é dar estrutura para essa criança, porque quanto mais equilibrada for a primeira infância, melhor para a sociedade como um todo. A criança, em grande medida, é responsabilidade da sociedade, não só dos pais”.
O abandono dos pais na vida destas crianças se reflete, em muitos casos, desde as primeiras horas de vida. Em 2024, o Brasil teve 153 mil crianças sem o nome do pai na certidão de nascimento, segundo dados do Portal da Transparência, da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen).
O número, no entanto, já foi pior. Em 2023, haviam sido 172 mil registros de crianças sem o nome do pai no registro.
Além do cenário descrito pelos dados, a falta de políticas públicas básicas, que permitam à mulher ter onde deixar sua criança num ambiente seguro durante o dia, ainda geram distanciamento do ambiente de trabalho formal, aumentando ainda a dificuldade do acesso à renda, avalia a economista e pesquisadora do Laboratório de Estudos da Pobreza, da Universidade Federal do Ceará (UFC), Alessandra Araújo.
Segundo ela, existem vários aspectos que envolvem o mercado de trabalho e gênero. Ainda mais para mães solo. "Há a tendência de se ter salários mais baixos, a possibilidade de penalização da maternidade, pela ideia de que a mulher é menos comprometida com a empresa por causa dos filhos", exemplifica.
Alessandra ainda credita à falta de apoio paterno nas famílias uniparentais como causa para uma "dupla penalização". Aqui, as mulheres precisam ainda mais da renda do trabalho para sustentar o filho e por isso acaba se sujeitando a condições piores de trabalho.
"Normalmente, a mãe solo busca maior flexibilidade no trabalho, para conseguir passar mais tempo com o filho. Isso leva, muitas vezes, à redução salarial, precarização do trabalho e aumento do grau de informalidade", aponta.
Alessandra pontua que criar políticas públicas é fundamental para criar uma rede de apoio que permita o desenvolvimento pleno de mães e filhos, mesmo que no contexto social desafiador.
Para ela, é preciso discutir o aumento da flexibilização dos horários como incentivo para que a mãe consiga estar com o filho e, ao mesmo tempo, ter renda para sustentá-lo. Também em incentivo ao trabalho formal com o Imposto de Renda negativo, ou seja, subsídios para incentivar empresas a contratarem, por exemplo.
Não é questão de estado civil
O termo "mãe solo" é mais adequado e abrangente do que "mães solteiras" para caracterizar a solidão e os desafios que as mães, sem cônjuge e com praticamente nenhuma rede de apoio, enfrentam no dia a dia para cuidar de seus filhos.
Desigualdade salarial persiste
Em 2022, o IBGE apurou que as mulheres recebem rendimentos 17% menores do que homens no equivalente a 82% das áreas do mercado de trabalho.
Valdenice, a mãe que não parou
"Quem trabalha, Deus ajuda." A frase parece simples, mas carrega décadas de sacrifícios, fé e resiliência. Aos 53 anos, Valdenice Inácio da Silva, natural de Quixadá, no Sertão Central do Ceará, ainda acorda cedo, abre o pequeno mercadinho da família e cuida da rotina como sempre fez: com as próprias mãos.
Mãe solo de dois filhos, costureira por necessidade e comerciante por insistência, ela é o retrato da força silenciosa que sustenta lares e comunidades do Brasil.Separou-se aos 30 anos, grávida do segundo filho.
"O Lucas tinha sete anos. E o Vitor ainda tava na barriga", conta. Desde então, não se relacionou com mais ninguém. "Nunca me interessei. Isso era coisa de mim mesma", diz. Criar dois filhos sozinha, com pouco estudo e nenhum luxo, virou sua rotina. Uma rotina sustentada por trabalho doméstico, costura e a ajuda preciosa da mãe, dona Xixica, que cuidava dos meninos enquanto ela limpava casas e cozinhava para fora.
Sem tempo para si, para o lazer ou descanso, essas mulheres precisam dividir suas 24 horas entre trabalho produtivo, cuidado com os filhos, tarefas domésticas e, muitas vezes, obrigações com parentes idosos.
Para ela, o tempo sempre foi curto. "Trabalhava até tarde da noite. Ainda tenho as máquinas de costura, mas hoje só faço um conserto ou outro."
Com os filhos crescidos e já avó, ela poderia desacelerar. Mas quando o filho decidiu reabrir o mercadinho da família, foi ela quem tomou a frente. "Minha nora não quis mais ficar no mercado, e a gente não queria que ele acabasse. Aí eu voltei."
Hoje, divide a rotina do "João do Frango" com o filho mais novo, João Vitor, o proprietário do estabelecimento. "A gente se ajuda. Se uma coisa não dá certo, a gente conversa." Aprendeu a mexer com cartão, com Pix. "Cartão eu não sabia, aprendi. Pix eu sei receber, só não faço."
Val não se vê como empreendedora, embora pratique o empreendedorismo na prática e no espírito. "Um pouco, né? Um pouco", responde, rindo, quando perguntada sobre isso. Mas ao olhar para o que construiu — os filhos, os netos, a autonomia — seu olhar é firme e emocionado: "É um orgulho."
Uma narrativa que ecoa através de milhares de mulheres do Nordeste e do Brasil: mães que, sozinhas, criam filhos, sustentam casas e carregam o mundo.
E para aquelas que ainda estão no meio da travessia, ela deixa um recado: "Que luta a pessoa vence. Quem trabalha, Deus ajuda. Lutando, um dia você recebe sua bênção." (Mariah Salvatore)
"Eu tinha duas escolhas: ou parava tudo, ou mudava a nossa vida."
Ana Karoline Nunes da Silva, 26 anos, professora e mãe do Emanuel, de 6. Criou o filho sozinha, se formou na Universidade Estadual do Ceará (Uece), estagiou, trabalhou, perdeu noites de sono, pensou em desistir mas não parou."Eu voltei pra faculdade quando o Emanuel tinha dois meses. Desmamava na madrugada, congelava leite, ia pras aulas sem dormir. E ainda tinha prova pra fazer."
Se a escolha parecia impossível, ela diz que só via uma saída: estudar. "Era a única forma de mudar a minha realidade. E a dele."
Mais da metade das mães brasileiras criam filhos sozinhas. A maior parte delas está em desvantagem: renda mais baixa, menos tempo, menos oportunidades. No Ceará, 52,6% dos lares são chefiados por mulheres. Dessas, quase 90% fazem o trabalho doméstico sozinhas, somando uma média de 24 horas semanais só com tarefas da casa e cuidados.Esse acúmulo tem nome: pobreza do tempo. Significa viver sem margem. Sem descanso, sem lazer, sem tempo pra si mesma. Só sobrevivência.
Karol conhece bem."Eu tinha que montar toda minha rotina ao redor do horário do meu filho. Estudo, estágio, tudo girava em torno dele. Sem dividir nada com ninguém."
Mesmo com diploma e currículo, ela enfrentou barreiras que nenhum curso prepara. Em entrevistas de emprego, não perguntavam sobre suas competências. Perguntavam sobre o filho.
"Sempre queriam saber com quem ele ficava, quem ia levar no médico se ele ficasse doente. Nunca vi fazerem essas perguntas pro pai dele."
A hostilidade é sutil, mas constante. Segundo dados recentes, mães solo têm renda 39% menor que pais casados. Muitas ficam fora do mercado por falta de apoio, creche, horários flexíveis. O que deveria ser estrutura vira obstáculo.
Karol só seguiu em frente por causa da família: "Meu pai levava a gente pra escola e pro estágio. Minha mãe fazia minha marmita, cuidava dele à tarde. Minhas irmãs sempre apareciam quando eu trabalhava.
"Rede de apoio virou o que o Estado não ofereceu. E ainda assim, o cansaço é um companheiro fixo.Formada, atuando na área, diz que a maternidade mudou sua forma de dar aula. "Me fez mais sensível, mais atenta. Eu olho pros alunos e penso nas famílias deles. Ser mãe virou parte do que sou como professora."Hoje, Emanuel cresce vendo a mãe construir um caminho.
"Eu penso muito nisso: ele me vê. Sou o exemplo dele. Tento ser minha melhor versão, mesmo cansada, mesmo errando. Entendo o que você passa, que seja forte e firme em suas decisões! Não se culpe, você está tentando acertar e isso diz muito pro seu filho(a). Não se esqueça de se tratar com carinho.Você é uma pessoa incrível!," reforça, não com pena, mas com garra. (Mariah Salvatore)