Quando o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) chegou no Brasil, em 9 de junho de 1950, centenas de crianças sequer passavam do primeiro ano de vida no Ceará. Hoje, o cenário é outro. Elas não só sobrevivem como se desenvolvem e viram jovens líderes, principalmente, de suas próprias histórias.
A instituição foi fundada como um braço da Organização Mundial da Saúde (Onu) em 1946, sendo primeira batizada como Fundo Internacional de Socorro à Infância (Fisi). Quatro anos após fundação, a entidade estabeleceu um escritório em João Pessoa (PB), se firmando de forma física pela primeira vez no Brasil.
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Hoje a Unicef já funciona de maneira expandida pelo País, mantendo uma sede nacional em Brasília, uma temporária em Boa Vista (RO) e oito zonais, instaladas nas capitais: Belém (PA), Fortaleza (CE), Manaus (AM), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA), São Luís (MA) e São Paulo (SP).
Em meio a essa expansão diversos foram os desafios que a entidade encontrou no País. De acordo com Rui Aguiar, chefe do escritório da capital cearense, o Fundo das Nações Unidas teve entre primeiras ações no Brasil o combate a mortalidade infantil, cujo índices altos assombravam à época gestões públicas.
Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará estão entre os estados que apresentavam o cenário mais crítico do indicador e que por isso receberam atenção prioritária do Unicef. "Nos primeiros anos foi um trabalho mais emergencial, de formação de parteiras, pois existia muita morte de criança e das mães durante o parto", explica Rui, contando que entre ações estava a distribuição de leite e uma estratégia de imunização.
Com o passar do tempo essa atuação emergencial foi se aliando a políticas públicas, dando resultados efetivos e fortalecendo o olhar sobre a criança e o adolescente. Anamaria, atual 2º vice-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), é uma das lideranças a fazer parte desse processo.
Em 1984 ela ocupava um dos cargos de coordenação do Hospital Infantil Albert Sabin (HIAS) quando foi convidada a presidir o Congresso Brasileiro de Pediatria, que viria dali a um ano pela primeira vez ao Ceará. "Não tinha condições estruturais, era um Estado onde a saúde da criança não era prioridade", diz.
Buscando apoio, Anamaria participou de uma reunião com representantes do Unicef no Brasil, ocasião em que aproveitou para pedir presença física da entidade no Ceará, uma vez que mesmo com ações executadas a unidade federativa seguia apresentando os piores índices de mortalidade infantil do País.
Ela lembra de dizer para lideranças do órgão internacional: "No estado que mais precisa vocês não têm escritório". Cobrança foi curta, mas serviu para plantar uma sementinha que daria frutos no futuro.
Quando o congresso aconteceu, houve o ineditismo de abordar como tema principal a violência contra crianças brasileiras— enquanto o foco em eventos anteriores era na saúde. Inovação ampliou o debate. "Naquela época estávamos preocupados com a situação das crianças vivendo em situação de rua, mas estávamos saindo da ditadura militar, era uma audácia falar sobre esse tema", relembra.
Depois do Congresso Brasileiro de Pediatria, em 1985, Anamaria foi convidada pelo Unicef para ir a Santa Catarina conhecer o Programa Pró-Criança, que visava o desenvolvimento infantil. Na época, ela passava a integrar o comitê de médicos que apoiou a campanha de Tasso Jereissati para o Governo do Ceará e quando voltou de viagem apresentou a iniciativa ao político, que prometeu fazer um projeto semelhante.
Começava ali então a elaboração do Programa Viva Criança, lançado oficialmente no Estado em 1987, quando Tasso assumiu como governador. Um tempo depois, movimentações realizadas pelo poder público fizeram o Fundo das Nações Unidas finalmente estabelecer um escritório em Fortaleza, no ano de 1988.
A chegada física da entidade possibilitou a realização de uma pesquisa estadual de saúde materno infantil, que mostrou que, de mil crianças que nasciam no Ceará, 116 morriam antes do primeiro ano de vida.
Em paralelo, o Governo realizava o Programa Agente de Saúde. "Na época não tinha médico da família (...) Saiamos da ditadura, o profissional ia de casa em casa, fazer soro oral, incentivar a vacina (...) foram eles (os agentes da saúde) que mudaram a saúde da criança no Ceará", diz Ana Maria.
Como resultado das ações, uma nova pesquisa feita em 1990 mostrou que o Estado reduziu em 33% as mortes de crianças menores de um ano, levando o mesmo a ser premiado em 1993 pelo Unicef e a se tornar pioneiro na América do Sul nesse reconhecimento. Nos anos seguintes, a unidade federativa conseguiu outro feito ao fazer a matrícula escolar saltar de 86% para 98%, de 1995 a 1998.
José Paulo, que atuou como oficial de comunicação do Unicef no Ceará nesse período, lembra que essa mobilização e as ações contra a mortalidade infantil viraram referências internacionais. Conforme ele, foi montada uma série de mecanismos para garantir a presença do aluno em sala de aula.
Os próprios agentes de saúde chegaram a fazer questionários para diagnosticar índices de ausência escolar. Também foram usadas mídias tradicionais e parcerias com empresas e com órgãos como o Correios para estimular matrículas. "A escola se tornou um espaço mais amigável para as crianças", conta.
Outras iniciativas estaduais foram impulsionadas pelo Fundo das Nações Unidas. Na edição de 4 de novembro de 1999, por exemplo, O POVO destaca em suas páginas impressas o resultado do concurso Itaú-Unicef, que reconhece projetos como o Escola de Cidadãos, da Organização Não Governamental (ONG) cearense Comunicação e Cultura, e que busca por melhoria educacional.
Naquele mesmo ano, o Ceará se torna novamente pioneiro ao ser o primeiro estado do Brasil a realizar o Selo Unicef. Na época, O POVO publicou uma matéria falando sobre a chegada do projeto piloto, dando um tom de novidade a experiência que chegava para "destacar prefeituras que apoiavam a infância".
Por meio da iniciativa, municípios inscritos executam um plano de trabalho que faça valer o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), recebendo um certificado ao fim da gestão caso consigam indicadores positivos voltados aos jovens. Na última edição (2021-2024), 158 cidades cearenses foram certificadas.
Ana Márcia Diógenes, jornalista que foi oficial de comunicação do Unicef no Ceará, classifica ação como uma "gincana" entre municípios. Ela ocupava o cargo de diretora da Redação do O POVO quando resolveu sair para assumir o cargo na entidade em 2001. Nas lembranças, guarda a mobilização feita nas primeiras edições do selo no Ceará, que "impressionou" representantes e fez projeto ser expandido pelo Brasil.
"Foi uma expansão muito grande (...) Você faz como uma gincana, um jogo (que) faça brilhar os olhos das pessoas para que elas ganhem o selo, e ganhar o selo significa que elas melhoraram seus indicadores", diz.
Além do selo, hoje a entidade mantém no Estado iniciativas como a Unidade Amiga da Primeira Infância (UAPI), o Programa de Água, Saneamento e Higiene nas Escolas e o Territórios Conectados, que promove conectividade nas escolas por meio de ações como a entrega de tabletes.
Passos importantes do Unicef no Brasil:
Fonte: Unicef Ceará
Entre as ações necessárias para obter o Selo Unicef, cada município precisa manter ativo um Núcleo de Cidadania de Adolescentes (Nuca). Por meio do projeto, meninos e meninas de 12 a 18 são levados a discutir e a solucionar tanto questões comunitárias como de desenvolvimento pessoal, abordando temas como gravidez na adolescência, empoderamento feminino, racismo e mudanças climáticas.
Iniciativa começou a ser construída em 2010, quando um grupo de jovens apresentou ao Unicef uma proposta de melhoria nas escolas. Com o tempo, esse projeto foi sendo aperfeiçoado pela entidade e em 2012 deu raiz ao Nuca, formato que instiga, entre outras coisas, o ser político de cada integrante.
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Iniciativa deu tão certo que atualmente já está na quinta geração de participantes, atendendo adolescentes e jovens de regiões rurais, agrícolas e indígenas, em 179 municípios cearenses. Entre os responsáveis por fundar o projeto que originou o núcleo está Nilson Silva, que hoje é oficial do Unicef no Ceará.
Além de um dos fundadores da proposta inicial, ele também pode ser visto como "cria" do Nuca, uma vez que foi essa política que o fez enxergar novos horizontes e trilhar uma carreira na fundação. "É uma estratégia importante pra nós porque engaja os adolescentes na participação política. Essa participação política reverbera no município (...) mas também reverbera em casa, reverbera na escola", diz.
Exemplo disso é o que tem acontecido na vida dos adolescentes Leomar de Lima, 15, Lívia Maria, 14, e Raquel Lopes, 14, todos da etnia tapeba, de Caucaia, Região Metropolitana (RMF). Há pouco mais de um ano eles entraram no Nuca e se transformaram. Ganharam confiança para enfrentar e mudar o mundo.
"Eu era tímido, não gostava de conversar, chorava direto com tristeza (...) Em uma reunião eles trouxeram o tema do racismo e eu já sofri muito racismo (...) mas não conseguia conversar (sobre isso), diz Leomar, frisando que agora fala abertamente com os pais sobre assunto. Enquanto conta sua história, ele adota uma postura confiante que nem de perto se parece com o do menino encabulado que relatou ter sido.
Mudança parecida aconteceu com Livia Maria. "Sempre fui mais na minha e passava uma fase (ruim) sozinha. Aí (com o Nuca) eu comecei a falar, me abrir mais com a minha mãe. Fico feliz de falar isso agora, porque a gente se dá muito bem", diz, com a voz firme de quem aprendeu a amadurecer.
Já Raquel Lopes aponta como impacto do projeto a descoberta de assuntos como "dignidade menstrual". Ela conta ainda que conversar sobre temas como "relacionamento abusivo" a fez entender que cresceu vendo como "normal" situações do tipo, e mostra saber agora a importância de denunciar casos do porte.
Antes do Nuca, os três adolescentes almejavam profissões que viam os familiares exercendo ou sonhavam baixinho com possibilidades que pareciam distantes. Agora, mesmo ainda em fase de descobertas eles sabem que têm um mundo de oportunidades e até compartilham do mesmo desejo: cursar Direito.
Feito um salto ao futuro, Felipe Caetano, 22, é um exemplo vivo de que os jovens podem realizar esse sonho. Em 2013, quando trabalhava como garçom em uma praia de Aquiraz, ele foi convidado pela escola a participar de um fórum do Nuca e pela primeira vez viu adolescentes em lugar de destaque.
Foi a partir desse momento que começou a se enxergar como trabalhador infantil e compartilhou dessa visão com os pais. "Pra (minha mãe) era natural que o filho do pobre não sonhasse", conta.
Ele não só terminou os estudos como se formou em Direito e hoje é servidor público. Atualmente colabora com o Unicef e tem como pauta de vida "o combate ao trabalho infantil". A jovem liderança ainda inspirou suas irmãs mais novas, que hoje sonham grande, e diz que projeto mudou a vida da família.
Sete décadas e meia depois da chegada do Unicef no Brasil, o cenário da política de garantia de direitos de crianças e adolescentes é outro. No entanto, segundo entidade, problemáticas como violências, trabalho infantil, exploração sexual e pobreza multidimensional contra esse grupo ainda persistem no País.
Rui Aguiar, chefe do escritório da capital cearense, aponta que o principal desafio segue sendo os índices de violências contra os mais jovens. "Há a necessidade de se criar ainda no País uma cultura de notificação dessas violações de direitos a crianças, de fazer um trabalho integrado entre saúde, educação e assistência, pro atendimento de vitimas de violências e o acompanhamento das famílias", diz.
Órgão atualmente tem trabalhado no desenvolvimento de um modelo de atendimento a crianças vitimas de violência, baseado em uma experiência observada em Beberibe. Além disso, o representante da entidade destaca a questão da imunização para o público adolescente como outro desafio atual.
"Sempre houve uma ênfase muito grande na vacinação de crianças, agora estamos trabalhando numa segunda frente, que é a imunização de adolescentes (...) precisamos criar uma cultura de imunização na adolescência", diz, frisando que isso pode ajudar a prevenir uma série de doenças no futuro.
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Rui também destaca o fato do mundo do trabalho estar sofrendo uma "transição muita rápida", sendo necessário fortalecer a aprendizagem, no sentido de orientar os mais jovens sobre o futuro. Para isso, o Unicef tem uma plataforma que oferta cursos e busca orientar esse público no mercado de trabalho.
Com material O POVO DOC