Não há como blindar a escola das violências cotidianas vividas pelos alunos que a frequentam, pela comunidade que lhe rodeia e pelos profissionais que a compõem. Casos como o assassinato de dois alunos dentro da escola de ensino médio Professor Luis Felipe, em Sobral, evidenciam isso.
Instituições de ensino lutam para continuar sendo um espaço de proteção para a juventude, mesmo no contexto em que a fragilidade da paz ultrapassa muros e adentra a sala de aula.
Em uma pesquisa com cerca de 500 alunos de ensino médio do Grande Bom Jardim, em Fortaleza, foi constatado que 42,5% acreditavam que a violência em seus bairros interferia nas suas formações educacionais. Ao mesmo tempo, pouco mais da metade (54,13%) considerou a escola um lugar seguro.
O estudo foi feito em 2023 pelo Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação (Vieses), em parceria com o Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS).
“A escola ainda é um dos locais em que os adolescentes mais confiam de estar. Isso não quer dizer que não haja problemas na escola, não quer dizer que não corre-se o risco de situações como essa que aconteceu em Sobral. O que a gente precisa fazer é potencializar ainda mais esses equipamentos”, defende o professor João Paulo Pereira Barros, membro do departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e líder do Vieses.
Nos questionários da pesquisa, os adolescentes pontuaram que a violência impacta em vários aspectos, principalmente atrapalhando o ambiente de paz da escola e as condições emocionais dos alunos, dificultando a concentração na sala e os estudos em casa, prejudicando o desempenho dos professores e o acesso à escola.
Heitor Castro, 16, estuda em uma escola de ensino médio em Maracanaú, região metropolitana de Fortaleza, e relata que o medo é uma constante no caminho da unidade. Nas quadras que anda para chegar ao colégio, já foi assaltado e passou pela cena de um homicídio pouco tempo após o ocorrido. O sentimento não vai embora quando ele está dentro da instituição.
“Esses dias me peguei conversando com uma amiga depois desse caso de Sobral. A gente estava traçando rotas caso acontecesse algo dentro da escola, para que a gente conseguisse fugir”, diz o estudante.
Para ele, o problema não está dentro da escola, mas sim no ambiente urbano sem segurança em que a instituição está inserida. “Ficamos à mercê de qualquer coisa que possa acontecer nesse território”, lamenta.
O cenário aumenta ainda o risco de interrupção das trajetórias escolares. Pelo menos 246 alunos de escolas municipais do Ceará tiveram risco de abandono devido à violência territorial desde 2017, conforme dados da plataforma Busca Ativa Escolar - mantida pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em parceria com municípios e atualizada constantemente.
As cidades com maior quantidade de registros foram Fortaleza (72) e Sobral (94). Rui Aguiar, chefe do escritório do Unicef em Fortaleza, orienta que todos os casos devem ser verificados e as famílias ouvidas. A solução deve envolver todos os setores da gestão pública: saúde, educação, assistência social, Conselho Tutelar e segurança pública.
“Entendemos que a escola é um espaço de proteção das crianças e dos adolescentes e é papel da escola promover uma cultura de paz nos territórios. No entanto, sabemos que a escola não dará, sozinha, uma resposta a todos os problemas; é necessário um trabalho articulado entre diversos setores dos governos municipais e estaduais e envolvimento da sociedade civil para que as escolas cumpram seu papel de proteger”, diz Rui.
Rui aponta a lei nº 17.253/2020, que instituiu as comissões de proteção e prevenção à violência contra crianças e adolescentes no ambiente escolar, como um importante instrumento de aproximação entre as redes educacional e de proteção social. "A legislação atualizou a Lei nº 13.230/2002, promovendo um trabalho mais aprofundado de identificação, notificação e prevenção de diferentes tipos de violência", afirma.
Uma gota de água que pode virar uma bola de neve. É assim que Ingrid Rabelo, assistente social e assessora de juventudes do Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS), descreve como as ameaças de violência ignoradas podem se tornar problemas sérios. Se a escola toma conhecimento de situações como essa, é preciso intervir.
Em Fortaleza, o acirramento de conflitos entre facções foi acompanhado de ordens para o fechamento de escolas em 2025. Nos bairros Pirambu, em maio, e Vicente Pinzón e Papicu, em agosto, aulas foram suspensas após as instituições receberem ameaças. Mesmo aquelas que se mantiveram abertas tiveram frequência reduzida de estudantes.
Alex Viana, gerente da Célula de Mediação Social e Cultura de Paz da Secretaria Municipal da Educação (SME), explica que não há como “desacreditar” das ameaças recebidas. “O contexto de alguns territórios é bem complexo. A gente tem buscado desenvolver protocolos em relação a como cada membro da comunidade escolar deve se comportar numa situação de crise, no pós-crise também”, relata.
Algumas das ações fazem parte de um plano de contingência desenvolvido com metodologia adaptada do Comitê Internacional da Cruz Vermelha para países em guerra ou em situação de violência extrema. Fortaleza é uma das cidades do Brasil em parceria com o Comitê.
No caso das escolas do Vicente Pinzón e Papicu, “corredores seguros” foram implantados com o auxílio da Guarda Municipal e Polícia Militar. “A gente percebeu que na medida em que organizou esse acesso por vias definidas e monitoradas pela polícia, teve o aumento gradual da frequência dos meninos”, diz Alex.
Quando a ameaça é direcionada para algum estudante, outras estratégias são colocadas em prática: transferência para uma escola em outro território e até mesmo a inclusão do aluno no Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM), do Governo Federal.
Desde que começou a trabalhar na célula, em 2022, Alex conta que dois alunos sofreram ameaças de morte e a rede de proteção precisou ser acionada para garantir não só o direito à educação, mas também a prevenção da violência letal.
Apesar de serem muitas vezes tratados como um grupo homogêneo, com os mesmos pensamentos e desejos, crianças e adolescentes são diversos. Em um cenário sensível e complexo como o da influência da violência nas escolas, não há como esperar que a resposta seja única - nem para as que dividem o mesmo bairro. Gestores e ativistas entendem que escutar os estudantes é um passo fundamental para melhorar o clima escolar.
“A gente tem percebido que os espaços de escuta dos jovens transformam aquele cenário. Promover as rodas de conversa, a presença da arte, da cultura e do esporte também, tem um efeito muito visível”, relata Ingrid Rabelo.
A experiência trabalhando para fortalecer os grêmios estudantis das escolas do Grande Bom Jardim, em Fortaleza, realizar festivais e sábados culturais para os jovens e estreitar laços com as escolas ajudou Ingrid a perceber que as demandas vão desde um local seguro para jogar bola até um auxílio para encontrar o primeiro emprego.
Para Enedite Madeira, diretora da escola de ensino médio de tempo integral Jocie Caminha, no bairro Granja Portugal, o olhar de cuidado para ansiedades, mudanças de comportamento ou desempenho e faltas é parte importante dos projetos implementados na escola.
O programa Professor Diretor de Turma, como a diretora exemplifica, é uma iniciativa da Secretaria da Educação do Estado (Seduc) que promove a proximidade de um docente com uma turma da escola. Ele fica mais atento às questões socioemocionais dos alunos e consegue ajudar até mesmo outros professores a lidar com as dificuldades particulares daqueles adolescentes.
Já com as famílias, Enedite relata que disponibilizar mais horários para reuniões e um número de WhatsApp foi um diferencial para o contato aumentar.
Além disso, a parceria desenvolvida por meio do Fórum de Escolas do Grande Bom Jardim permite a troca de ideias com gestores de outras instituições de ensino do território. O apoio da rede permite uma visão mais ampla dos problemas comuns e o compartilhamento de soluções possíveis.
“Nem tudo que funciona na minha escola vai funcionar em outra, mas a gente unifica forças e faz um bom trabalho”, diz a diretora.
O Fórum também faz parcerias com movimentos sociais, organizações da sociedade civil e acadêmicos para levar experiências culturais, esportivas e debates sobre direitos humanos aos colégios do Grande Bom Jardim.
Aprender sobre diversidade e valores como empatia e respeito também ajuda a escola a ser menos violenta, opina o estudante Heitor Castro, 16. “Acaba que a escola se torna um ambiente violento não só nessa questão de armas, mas no sentido de muito preconceito”, conta.
A mediação de conflitos é outro elemento essencial para manter a paz no clima escolar. “É muito importante que os conflitos internos da escola sejam resolvidos da forma mais pacífica possível e que envolvam menos o ambiente externo, porque o ambiente externo pode ser muito perigoso e cruel com os jovens”, lamenta Heitor.
As estratégias para melhorar a cultura de paz devem ainda evitar visões deterministas sobre as circunstâncias de vida de jovens que moram em territórios violentos. “As juventudes acabam sofrendo estigmas porque vem de contexto de violência e logo são desacreditadas ou taxadas como como sujeitos potencialmente violentos, incapazes de estabelecer relações de convivialidade”, diz o professor de psicologia João Paulo Pereira Barros.
Apesar da exposição à violência influenciar no sofrimento psíquico, comprometer processos de aprendizagem, de socialização e de desenvolvimento, o professor defende que, com as ferramentas corretas, os jovens podem superar as situações adversas.
“Precisamos ampliar a rede de suporte, acolhimento e escuta para que, mesmo em contexto de violência, essas pessoas possam refazer suas trajetórias, perspectivar futuros e estabelecer caminhos de potência de vida”, afirma.
1. Diálogos com estudantes sobre prevenção e combate à violência, enfrentamento do racismo, LGBTfobia, machismo e capacitismo.
2. Atuação intersetorial, envolvendo áreas como segurança cidadã, assistência social, saúde, cultura, esporte, emprego e renda.
3. Melhoria das condições estruturais da escola, alimentação de qualidade e convivialidade.
4. Promoção, prevenção e cuidado em saúde mental de juventudes em contextos de violência.
5. Valorização profissional, cuidado psicossocial e formação permanente de trabalhadores/as da educação.
6. Implantação de comissões de proteção e prevenção à violência nas escolas e fortalecimento de informações sobre canais e serviços disponíveis.
7. Articulações entre escolas e territórios para a defesa da vida das juventudes e o enfrentamento das repercussões educacionais da violência, envolvendo fóruns, grêmios estudantis, coletivos juvenis, conselhos escolares, organizações da sociedade civil e movimentos sociais.
8. Ampliação de espaços artísticos e culturais nas escolas para potencialização da permanência estudantil.
9. Atenção às famílias de estudantes em situação de vulnerabilização social.
10. Fomento de monitoramentos, análises e sistematizações de dados sobre as repercussões da violência na vida de estudante.
Fonte: Cartilha Recomendações para o Fortalecimento da Escola Pública como Espaço de Proteção Juvenil, Prevenção e Combate à Violência - Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS - 2023)