A morte dá sinais. Grande parte dos homicídios de jovens são precedidos por violações de direitos básicos, contextos de violência e fragilidade dos vínculos, tanto com familiares quanto com a proteção social provida pelo Estado. Foi no resultado extremo desse cenário — a ameaça de morte — que a atuação de um programa de proteção conseguiu salvar a vida de 484 crianças e adolescentes no Ceará.
Criado em 2003 pelo Governo Federal, o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM) começou a funcionar no Ceará em 2013. Doze anos depois, a política já incluiu 797 pessoas, entre crianças, adolescentes e seus familiares, na proteção. Atendimentos passam de 1.188.
Em 2025, 90 pessoas foram incluídas no programa, sendo 51 crianças e adolescentes e 39 familiares. O número deste ano, contabilizado apenas até setembro, já é a maior quantidade anual desde o início do PPCAAM no Estado.
Os dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) mostram ainda a eficácia do programa: zero mortes foram registradas entre as vítimas incluídas no PPCAAM nos 12 anos de atuação no Ceará.
Crianças e adolescentes podem chegar ao programa por meio de quatro portas de entrada: Conselho Tutelar, Ministério Público, Defensoria Pública e Poder Judiciário. Esses órgãos têm o poder de acionar o PPCAAM para fazer uma análise do risco sofrido pelas vítimas e familiares. A partir disso, é decidido se a inclusão é necessária e qual tipo de proteção é o mais indicado.
Patrícia Meireles, integrante do Núcleo de Assessoria dos Programas de Proteção (NAPP) da Secretaria dos Direitos Humanos (Sedih) do Ceará, explica que o questionário inicial leva em consideração as características da vítima e também do ameaçador.
“Existe uma graduação em termos de complexidade da ameaça. Uma coisa é você lidar com um ameaçador que é um traficante do mesmo bairro, que ele mesmo não pode sair para outro bairro porque ficaria ameaçado também. Outra coisa é você ter um ameaçador agente público, com influência política, meios e recursos para acessar sistemas informacionais”, relata.
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O principal modo de atuação do PPCAAM consiste na transferência das vítimas do local onde receberam a ameaça para um território seguro, no qual o Estado possa garantir a integridade física e psicossocial. A mudança pode ser de bairro, de cidade e até mesmo de estado ou região do País.
O sigilo é um dos pilares fundamentais para manter a segurança de todos os envolvidos. “A gente só sabe o estritamente necessário para o desempenho da nossa função. Se você me perguntar sobre identidade e localização dos protegidos, eu não vou saber lhe dizer nenhum”, conta Patrícia.
A Sedih é o braço do estado do Ceará que mantém convênio com o MDHC para receber recursos federais e monitorar a execução. No entanto, uma organização da sociedade civil é quem executa o PPCAAM, atendendo as vítimas diretamente. No Ceará, o Instituto Terre des Hommes é o responsável.
É por meio dele que as crianças e adolescentes recebem não só a transferência, mas um plano individualizado de atendimento, cuidando desde a segurança imediata até a reinserção plena na sociedade.
“A gente não dá fuga para as pessoas, a gente protege as pessoas”, diz o coordenador do programa no Ceará, que não terá o nome revelado. Com ele, outros 21 profissionais fazem parte da equipe do PPCAAM, como psicólogos, assistentes sociais, advogados, entre outros.
“A partir do momento que essa família chega num novo território, a equipe multiprofissional vai trabalhar o processo de reinserção social dentro das políticas públicas”, desenvolve o coordenador. Matrícula escolar, vacinação, inserção em benefícios sociais e cursos profissionalizantes podem ser ofertados.
O perfil dos atendidos incluem pessoas que estão fora da escola, famílias sem acesso à saúde, com casos de adoecimento mental e uso abusivo de drogas, conflito com a lei e situação de exploração sexual. "Ninguém fica ameaçado do nada", afirma.
Existem três tipos principais de proteção oferecidos pelo PPCAAM. A transferência para um local seguro pode ocorrer para acolhimentos institucionais, para casas alugadas com familiares ou moradias individuais (em caso de vítimas maiores de 18 anos) e para a residência de famílias solidárias.
O acolhimento institucional ocorre quando a criança ou adolescente não tem vínculo familiar ou os responsáveis não podem sair do território onde ocorreu a ameaça. Nesses casos, a vítima é incluída em um abrigo.
Já quando a família inteira é incluída no programa, uma casa é alugada em território seguro para que todos comecem uma nova vida. “O programa aluga casa, paga água, luz, tem subsídio para alimentação, deslocamento, compra de remédio. Garante, num primeiro momento, todas as questões objetivas para uma vida digna num outro território. Não estamos falando de ostentação de luxo e apartamento na Beira Mar”, expõe o coordenador.
Esse modelo sai mais caro para o programa, conforme o gestor, mas tende a ser mais efetivo por garantir a convivência familiar.
Outra forma de atendimento é feita por meio de 14 famílias solidárias espalhadas no Estado. Habilitadas e capacitadas para fazer o acolhimento, elas recebem crianças e adolescentes desacompanhados por poucos meses. A modalidade não configura uma adoção.
A escolha do melhor tipo de proteção depende também do tipo de ameaça e da disponibilidade de locais seguros para a transferência. Se a vítima tiver parentes distantes que consigam recebê-la e assegurar um ambiente protegido, sem comprometer a segurança de outros moradores, a opção também é considerada.
Conseguir vagas em acolhimentos institucionais ainda é um obstáculo para o programa. De acordo com David Araújo, membro do Fórum Permanente das Organizações Não Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA Ceará) e do conselho gestor do PPCAAM, o programa sofre com o preconceito relacionado aos atendidos.
“Existe resistência ao programa. Muitos locais pensam que se receberem o adolescente, vai chegar um bandido. Eles são tidos como violentos, problemáticos. São preconceitos que não condizem com a realidade”, afirma.
David lembra o caso de uma menina vítima de exploração sexual que estava sendo ameaçada de morte. Uma vaga em um abrigo era necessária para formalizar a entrada dela no PPCAAM. “O acolhimento negou a vaga. Ela evadiu e três semanas depois apareceu morta”, conta.
“A gente tem uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que estabelece fluxos e o compromisso do sistema de justiça para garantir essa proteção. Mas se eu não tiver vaga disponibilizada para a assistência, tenho um problema para fazer a aprovação”, explica o coordenador do PPCAAM. Diálogos constantes são mantidos com a rede de acolhimento institucional para evitar negativas.
“Isso é um problema grave. A central de vagas, tanto do Estado como a do município de Fortaleza, não pode causar dificuldades para inserção desse público nos equipamentos, do ponto de vista jurídico”, afirma o promotor Lucas Azevedo, coordenador do Centro de Apoio Operacional da Infância e da Juventude (Caopij) do Ministério Público do Ceará.
Para Azevedo, é preciso encontrar ferramentas para o público atendido no PPCAAM que não exponham outras crianças, adolescentes ou profissionais da rede protetiva a riscos. No entanto, não é possível ter acolhimentos destinados só a essas vítimas, já que isso tornaria o local um “alvo”.
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Durante os 12 anos de atuação do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM) no Ceará, o panorama da segurança pública no Estado se complexificou. Com o acirramento dos conflitos entre facções, cada vez mais capilarizadas e enraizadas nos territórios, o programa enfrenta novos desafios para proteger as vítimas.
“Nós temos hoje no Ceará cerca de cinco facções que brigam por território. A gente não tinha isso em 2013. Isso torna o gerenciamento do programa de proteção muito mais complexo”, diz o promotor de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional da Infância e da Juventude (Caopij) do Ministério Público do Ceará, Lucas Azevedo.
De 2015 a setembro de 2025, 3.204 adolescentes de 12 a 17 anos foram assassinados no Ceará. Essa faixa etária concentra 8,4% de todos os crimes letais da última década, de acordo com dados da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).
Azevedo afirma que grande parte dos adolescentes atendidos vivem em territórios onde há disputa entre facções. Nem sempre são envolvidos diretamente com as organizações criminosas, mas a violência acaba respingando por meio de parentes e amigos ou pela localização da residência.
A vivência em territórios comandados pelo poder do crime organizado, em alguns casos, faz os adolescentes “desacreditarem um pouco da força da estrutura estatal”, conforme o promotor, e recusarem a entrada no programa, mesmo passando por alto risco de se tornarem vítimas de homicídios. Como o PPCAAM depende da voluntariedade dos protegidos, é preciso que as pessoas queiram ser incluídas.
Nesse contexto, Lucas destaca o trabalho do Núcleo de Acolhimento às Vítimas de Violência (NUAVV), do MPCE. “Boa parte dos acionamentos do PPCAAM pelo MP vem através desse núcleo, que faz essa escuta mais qualificada. Quando os adolescentes são ouvidos de uma forma mais empática, mais acolhedora, a gente consegue quebrar em alguns casos essa resistência”, conta.
O processo de atendimento especializado também ocorre com egressos do sistema socioeducativo. Rubens de Lima Júnior, defensor titular do Núcleo de Atendimento aos Jovens e Adolescentes em Conflito com a Lei (Nuaja), da Defensoria Pública do Estado, explica que o trabalho envolve monitorar o risco da ameaça e apresentar o programa aos jovens e às famílias, além de solicitar a inclusão assim que o jovem está apto a sair do sistema.
“Se ele sair do socioeducativo e não quiser entrar no programa, porque alguns acham que a facção vai proteger, mas depois de um tempo quiser, ele tem direito”, afirma. Os egressos podem ser atendidos no PPCAAM até os 21 anos.
A presença das facções em todo o Estado demanda ainda mais atenção no momento de encontrar um território seguro para transferir os ameaçados. Nenhuma região é “intocável” pela violência armada, relembra o coordenador do programa, que não será identificado por motivos de segurança.
“O programa teve uma evolução. Os governos estadual e federal foram entendendo a complexidade. Começamos com uma equipe mínima, hoje nós temos 21 profissionais. Talvez ainda não seja suficiente. A gente entende a importância de criar núcleos em regiões estratégicas, como no Cariri e na região Norte”, afirma o coordenador.
Apesar de reconhecer a expertise e o êxito do PPCAAM nesse nível de proteção, Rubens acredita ainda que o programa precisa de mais recursos e formatos que garantam a continuidade dos serviços.
“Já passamos meses sem o programa por causa de fim de contrato. Às vezes muda o instituto que vai gerir e muda toda a equipe. O cenário de hoje não admite mais esses intervalos. Existem questões também que ultrapassam os limites do programa de proteção. O formato não é capaz de atender a tantas hipóteses. É preciso continuamente ser reinventado”, afirma.
“O PPCAAM tem um histórico de sucesso, é um programa levado muito à sério e muito bem gerido, mas o público alvo que a gente consegue atingir ainda é pequeno”, diz Lucas, que defende a ampliação da proteção emergencial. Atualmente, leva cerca de 15 dias para a inclusão da vítima ocorrer.
Por isso, as portas de entrada acionam também o Programa de Proteção Provisória (PPPro), criado no Ceará em 2020, que garante medidas de proteção em menos de 24 horas para vítimas de ameaças de morte. O caráter provisório da proteção foi pensado justamente para diminuir o tempo de espera de outros programas. O modelo é referência no Brasil.
Apesar de não serem portas de entrada oficiais do PPCAAM, as escolas são importantes aliadas dos órgãos que podem acionar o programa. Por meio das Comissões de Proteção e Prevenção à Violência contra a Criança e o Adolescente, cuja criação foi autorizada pela Lei Estadual nº 17.253, de 2020, as instituições devem seguir fluxos para comunicar ameaças de morte.
Uma nota técnica foi elaborada pelo Centro de Apoio Operacional da Infância e da Juventude (Caopij) para orientar o caminho a ser percorrido. O instrumento foi redigido “a partir do aumento de relatos que descrevem a impossibilidade de alunos da rede pública de ensino frequentarem a escola devido à existência de ameaças de morte”, de acordo com o documento publicado em 2024.
“O papel da escola é fundamental porque ela é a principal porta de entrada quando falamos em descoberta de casos de violência contra crianças e adolescentes. É nas escolas que a maioria dos casos são revelados”, diz Lucas Azevedo, promotor e coordenador do Caopij.
Foi pensando nesse cenário que o Ministério Público cearense, por intermédio do Centro de Apoio Operacional da Educação (Caoeduc), lançou o programa “PREVINE Violência nas Escolas, não!”, em 2023.
O coordenador do PPCAAM no Ceará reitera a necessidade da rede de educação estar conectada com outras redes de proteção e assistência. A equipe inclusive foi visitar a escola de Sobral em que dois estudantes foram mortos para apresentar o programa.
“A gente precisa que cada serviço público, equipamento, escolas tenha seu plano de prevenção às violências, aos homicídios. Nós não vamos resolver o problema de toda a violência do Estado só através do PPCAAM”, afirma.