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"Atrás da estante" escancara intimidade de casal de judeus que comandou livraria pornô gay
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João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.

João Gabriel Tréz arte e cultura

"Atrás da estante" escancara intimidade de casal de judeus que comandou livraria pornô gay

| NETFLIX | Documentário retrata trajetória do casal de judeus que comandou por mais de 30 anos uma livraria que se destacou como um dos principais pontos da socialização gay nos EUA
Karen e Barry Mason sustentaram a família por mais de três décadas a partir do trabalho na livraria (Foto: Netflix / divulgação)
Foto: Netflix / divulgação Karen e Barry Mason sustentaram a família por mais de três décadas a partir do trabalho na livraria

Rachel Mason estreia no cinema na direção de Atrás da Estante, filme no qual decidiu se debruçar na trajetória de seus pais e família. O documentário é protagonizado por Karen e Barry Mason, cuja história peculiar ganha alcance global com a entrada da obra, lançada originalmente no Festival de Cinema de Tribeca, no catálogo da Netflix. A partir disso, a ocupação de décadas do simpático casal de judeus foi revelada para o mundo: foi gerindo uma livraria e loja de artigos pornográficos voltada ao público gay que eles sustentaram a família ao longo de mais de três décadas. O documentário chama atenção pela abordagem íntima dos fatos e abre espaço para discutir cruzadas morais, política, sexualidade e tecnologia.

Pelo ponto de vista da filha dos retratados, o filme tenta explicar o contexto que levou esse casal hétero, com vivência religiosa, a acabar comandando a Circus of Books, que chegou a ser em décadas passadas um dos principais "impérios" da pornografia gay na Califórnia. Algumas das passagens mais interessantes do filme só são possíveis por ele ser um investimento totalmente pessoal e íntimo da filha do casal retratado. Algumas das menos interessantes, infelizmente, também.

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No percurso de se debruçar nas memórias dos pais, o documentário oferece, por exemplo, lances da rica e curta carreira de Karen enquanto jornalista, a partir da qual ela chegou a entrevistar Larry Flynt, polêmico empresário estadunidense que popularizou a pornografia no país; como também o percurso que levou o casal, em meio a uma cruzada moralizante contra a pornografia e a "obscenidade" que se abateu sobre os EUA entre os anos 1970 e 1980, a começar a distribuir a revista Hustler, publicação da editora de Flynt.

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O documentário mostra que Karen e Barry chegaram até a se envolver na produção de filmes pornográficos, ajudando na distribuição de produções que fizeram sucesso na época. Observar a relação objetiva do casal com a sua lida diária é um dos pontos altos do filme, assim como as próprias descobertas que a cineasta faz da "vida secreta" dos pais - muitos dos fatos retratados são, também, novidade para ela enquanto filha, o que a aproxima da posição do espectador.

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Um dos pontos de aprofundamento mais interessante do documentário é o lado do registro histórico da própria Circus of Books, que funcionou como pólo de socialização, pertencimento e história para a comunidade gay da Califórnia, um "oásis" afetivo e seguro em meio a um contexto que era bem mais difícil para a expressão das diversidades. Além da parte sexual, o espaço vendia literatura acadêmica e publicações independentes voltadas a discussões de sexualidade. Depoimentos de ex-funcionários e clientes trazem esse tom memorialístico mais geral, saindo das especificidades do casal protagonista e da família. Mesmo assim, o filme consegue ter costuras interessantes entre os contextos íntimo e geral, como quando mostra o modo que Karen e Barry acompanharam - de perto, mas de longe - a escalada da crise da aids nos anos 1980 e 1990.

Outra aproximação rica é aquela que diz respeito ao registro do processo de derrocada da Circus of Books frente ao poder da Internet e da tecnologia. Uma iniciativa pautada em mídias físicas, tradicionais, a loja tinha no catálogo itens que, com a chegada das plataformas online, passaram a ser considerados mais obsoletos, como fitas VHS, DVDs e revistas de conteúdo adulto. É especialmente reveladora a cena em que Karen mostra um gráfico de vendas que indica 2008, com a crise econômica dos EUA e um maior crescimento de alcance da Internet, como o ano que marca o início da queda de lucratividade da livraria. É uma sequência que marca a mistura de afetos, negócios e representatividade que define o espaço.

Com tanto a falar, o filme acaba dedicando tempo demais a uma questão familiar - no caso, a sexualidade de John, um dos filhos do casal. Há uma ligação entre a loja e o fato, mas a escolha da diretora de sair de uma observação mais equilibrada entre os contextos para uma mais específica enfraquece um pouco o documentário. As questões postas são importantes, trazem reflexões sobre religião, aceitação, processos familiares, então não é algo que desabone as qualidades que Atrás da Estante tem, mas o fator mais peculiar e rico acaba se esvaindo.

Atrás da Estante

Disponível na Netflix

Foto do João Gabriel Tréz

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